MÉDIUM - Conto Clássico Sobrenatural - Pío Baroja
MÉDIUM
Pío Baroja
(1872 – 1956)
Sou
um homem inquieto, nervoso, muito nervoso. Mas, ao contrário do que dizem os
médicos que me examinaram, não estou louco. Tudo analisei tudo, tudo estudei
profundamente, mas vivo inquieto. Por quê? Ainda não descobri.
Há
muito tempo que durmo bastante, com um sono sem sonhos. Pelo menos, quando
acordo, não me lembro se sonhei. Mas, talvez sonhe, embora ignore por que creio
nisto. Talvez eu esteja sonhando agora, enquanto falo. Mas durmo muito. Uma
prova clara de que não estou louco.
Minha
medula está sempre vibrando e os olhos de meu espírito não fazem mais que
contemplar uma coisa desconhecida, uma coisa cinzenta que se agita ao ritmo compassado
das pulsações de minhas artérias cerebrais.
O
meu cérebro não pensa, mas, ainda assim, permanece num estado de tensão. Ele
poderia pensar; contudo, não pensa... Ah, vós estais a sorrir? Duvidais de
minha palavra? Então, estais certo. Adivinhásseis. Há um espírito que vibra
dentro de minha alma. Contar-vos-ei.
A
infância é linda, não é mesmo? Mas, para mim, a fase mais horrenda da vida.
Quando criança, eu tinha um amigo. Ele se chamava Román Hudson. Seu pai era
inglês; sua mãe, espanhola.
Eu
o conheci no Instituto. Era um bom garoto. Com certeza, ele era um bom menino.
Muito bom, muito amável. E eu era carrancudo e brusco.
Apesar
de tais diferenças, tornamo-nos amigos e andávamos sempre juntos. Ele era um
bom estudante, enquanto eu era rebelde e desinteressado. Mas como sempre foi um
bom camarada, não lhe houve inconveniente algum em levar-me à sua casa e
mostrar-me sua coleção de selos.
A
casa de Román era bem grande e ficava perto da praça das Barcas, numa ruela
estreita, próxima a uma casa onde se cometera um crime, do qual muito se falou
em Valência. Não disse ainda que passei a minha infância em Valência. A casa
era triste, muito triste, tanto quanto pode ser triste uma casa, e tinha na
parte de trás um extenso pomar, com as paredes cheias de trepadeiras de pétalas
brancas e roxas em forma de sino.
Meu
amigo e eu brincávamos no jardim, no jardim das trepadeiras, e num amplo
terraço lajeado, que tinha sobre as cercas enormes vasos de pitas.
Certa
feita, achamos por bem fazer uma expedição pelos telhados e acercamo-nos da
casa onde ocorrera um crime, que, por seu mistério, nos atraía.
De
volta, descemos do telhado e fomos conduzidos a uma sala ampla e tristonha.
Junto a uma varanda estavam sentadas a mãe e a irmã de meu amigo. A mãe lia; a
filha bordava. Não sei por quê, elas me assustavam.
A
mãe, com sua voz severa, deu-nos um sermão por conta de nossa correria e depois
começou a fazer-me um sem-número de perguntas acerca de minha família e de meus
estudos. Enquanto a mãe falava, a filha sorria; mas o fazia de uma maneira tão
estranha, tão estranha...
—
Tens de estudar — disse, concluindo, a mãe.
Saímos
da sala, fui para casa e, durante a tarde e as noite inteiras, não fiz outra
coisa senão pensar naquelas duas mulheres.
A
partir daquele dia, evitei como pude ir à casa de Román. Um dia, vi sua mãe e
sua irmã quando saíam da igreja. Estavam ambas enlutadas. Olharam-me; eu gelei
ao revê-las.
Concluído
o curso, já não mais via Román. Tudo ia às mil maravilhas quando, certo dia,
chamaram-me à sua casa. Disseram-me que o meu amigo adoecera. Fui. Eu o
encontrei na cama, chorando. Em voz baixa, disse-me que odiava a sua irmã. No
entanto, a irmã, que se chamava Ángeles, cuidava dele com esmero e carinho. Mas
ela tinha um sorriso tão estranho, tão estranho...
Uma
vez, quando ela o agarrou pelo braço, Román fez uma careta de dor.
—
Que tens? — perguntei.
Ele
me exibiu uma enorme marca negra, que lhe rodeava o braço como um anel.
Depois,
em voz baixa, murmurou:
—
Foi a minha irmã.
—
Ah! Ela...
—
Tu não sabes a força que ela tem. Ela é capaz de partir um vidro com os dedos.
E há algo mais estranho: é capaz de mover um objeto qualquer, de um lado para o
outro, sem tocá-lo.
Alguns
dias depois, Román disse-me, tremendo de terror, que, há cerca de uma semana, às
doze horas da noite, a campainha da escada tocava, abria-se a porta, mas não
era ninguém.
Ramón
e eu fizemos inúmeras experiências. Ficávamos próximos à porta... A campainha
chamava, chamava... Abríamos a porta... Ninguém. Deixávamos a porta
entreaberta, para que pudéssemos abri-la prontamente... A campainha chamava...
Ninguém.
Por
fim, tiramos o batedor da campainha, mas a campainha continuou a tocar, a
tocar... Olhamo-nos estremecidos de terror.
—
É a minha irmã! É a minha irmã! — disse Román.
Disto
convencidos, procuramos os amuletos por toda parte e pusemos em seu quarto uma
ferradura, um pentagrama e várias inscrições triangulares com a palavra mágica
“Abracadabra”.
Inútil,
tudo inútil. As coisas continuaram a saltar de seus lugares, e nas paredes
desenhavam-se sombras sem faces e sem contornos.
Román
definhava e, para distraí-lo, sua mãe comprou-lhe uma bela máquina fotográfica.
Todos os dias, nós íamos passear juntos e levávamos conosco a câmera em nossas
expedições.
Ocorreu
à mãe de meu amigo, certa feita, tirar uma fotografia dos três familiares
juntos e enviá-la aos parentes na Inglaterra. Román e eu montamos um toldo de
lona no telhado e, sob ele, puseram-se a mãe e os dois filhos. Foquei o grupo
e, para evitar que a fotografia não saísse a contento, registrei duas chapas.
Depois, Ramón e eu cuidamos de revelá-la. As fotografias saíram bem; contudo,
havia uma mancha escura sobre a cabeça da irmã de meu amigo.
Deixamos
secar as chapas e, no dia seguinte, colocamo-las na prensa, ao Sol, para tirar
os positivos.
Ángeles,
a irmã de Román, foi conosco ao terraço. Quando vimos a primeira prova, olhamo-nos
eu e Román sem dizermos uma palavra. Sobre a cabeça de Ángeles via-se uma
sombra branca de mulher de feições semelhantes às suas. A segunda prova exibia
a mesma sombra, mas numa atitude diferente: inclinava-se sobre Ángeles, como se
lhe falasse ao ouvido. O nosso terror foi tão grande que Román e eu ficamos
mudos, paralisados. Ángeles olhou as fotografias e sorriu, sorriu. E isto é que
era sério.
Saí
do terraço e desci as escadas da casa tropeçando, caindo, e quando cheguei à
rua me pus a correr, perseguido pela lembrança do sorriso de Ángeles. Quando
entrei em casa, ao passar por um espelho, via-a no fundo da Lua, sorrindo,
sempre sorrindo.
Quem
disse que eu estou louco? Mentira! Isto é assim porque os loucos não dormem,
mas eu durmo... Ah! Pensáveis que eu não sabia disto? Os loucos não dormem, mas
eu durmo. Desde que nasci, ainda não acordei.
Imagem: PS/Copilot.
Esse autor é muito bom, mas pouco conhecido. Lembro de ter conhecido ele num conto dele publicado na Calafrio antiga.
ResponderExcluiramigo Barão, esse conto é GENIAL !
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