NAUFRÁGIO PSICOLÓGICO - Conto Clássico Sobrenatural - Ambrose Bierce


 

NAUFRÁGIO PSICOLÓGICO

Ambrose Bierce

(1842 – c. 1914)

Tradução de Paulo Soriano

 

No verão de 1874, eu fora a Liverpool, a negócios, como representante da empresa Bronson & Jarrett, de Nova York. Eu sou William Jarrett; meu sócio era Zenas Bronson. A empresa faliu no ano passado e, incapaz de suportar a passagem vertiginosa da riqueza para a pobreza, ele morreu.

Encerradas as minhas atividades financeiras, e sentindo o cansaço e a exaustão a elas inerentes, percebi que uma viagem marítima prolongada seria ao mesmo tempo agradável e benéfica; por isso, em vez de embarcar, no meu retorno, em um dos muitos esbeltos navios de passageiros, optei por reservar uma passagem a Nova York no veleiro Morrow, no qual providenciei o embarque de grande e valiosas mercadorias que havia comprado. O Morrow era um navio inglês com poucas acomodações para passageiros, que, na ocasião, éramos somente três: eu, uma jovem mulher e sua criada, que era uma senhora negra de meia-idade. Pareceu-me estranho que uma jovem inglesa viajasse tão bem assistida, mas ela, posteriormente, me explicaria que a aquela senhora estivera a serviço de um casal da Carolina do Sul; marido e mulher haviam, todavia, falecido, no mesmo dia, na casa do seu pai, em Devonshire. Tal circunstância, dada sua natureza, era, por si só, suficientemente incomum para perdurar, com clareza, em minha memória, mesmo que não tivesse descoberto, conversando com a jovem passageira, que o nome do marido falecido era idêntico ao meu: William Jarrett. Eu tinha conhecimento de que um ramo de minha família se havia estabelecido na Carolina do Sul, mas sobre ele ou sobre a sua história eu nada sabia.

O Morrow partiu da foz do Mersey no dia 15 de junho e durante várias semanas tivemos brisas favoráveis ​​e céu sem nuvens. O capitão, um admirável marinheiro — e nada mais que isto — pouco nos fazia companha, embora nos acolhesse em sua mesa. Mas eu e a jovem — Janette Harford — nos tornamos amigos. Na verdade, estávamos quase sempre juntos e, tendo eu uma natureza introspectiva, muitas vezes me esforçava por analisar e definir o novel sentimento que ela me inspirava — uma atração secreta e sutil, conquanto poderosa, que constantemente me impelia a procurá-la. Meus intentos, todavia, foram inúteis. Eu só podia assegurar-me de que, pelo menos, o que eu sentia não era amor. Estando certo disto, e, também, de que ela era tão sincera quanto eu, aventurei-me uma noite (lembro que foi no dia 3 de julho), enquanto estávamos sentados no convés, a perguntar-lhe, rindo, se ela poderia me ajudar a esclarecer a minha dúvida psicológica.

Desviando a face, ela ficou em silêncio por um instante. Temi que eu me havia comportado de maneira rude e inoportuna.  Ela, então, encarou-me com firmeza, olhando-me nos olhos. Num instante, minha mente foi dominada pela fantasia mais estranha que já perpassou a consciência humana. Parecia que ela me olhava, de uma incomensurável distância, não com aqueles olhos, mas através deles, e que várias outras pessoas — homens, mulheres e crianças —, em cujas faces captei expressões evanescentes, estranhamente familiares, agrupavam-se em sua volta, lutando, com uma suave impaciência, por olhar-me através daquelas mesmas órbitas.  Navio, oceano, céu — tudo havia desaparecido. E não mais tinha consciência de nada, salvo daquelas figuras, daquele cenário extraordinário e fantástico. Então, de súbito, a escuridão envolveu-me, e dela, aos poucos, como alguém que, gradualmente, vai se habituando a uma luz mais débil, o ambiente circundante — formado por convés, mastros e cordames — voltou ao foco natural.

Harford, de olhos fechados, estava recostada na cadeira, e, aparentemente, dormia; o livro que estivera a ler jazia, aberto, sobre o seu colo. Impelido por uma razão desconhecida, olhei para o topo da página: era um exemplar daquela obra rara e curiosa, “As Meditações”, de Denneker, e o dedo indicador da mulher descansava sobre esta passagem:

 

“Permite-se a todos separar-se e afastar-se do corpo por um certo tempo. Assim como os riachos fluem a partir de outros, sendo o mais tênue absorvido pelo mais caudaloso, há certos parentes cujos caminhos se cruzam e as almas se fazem companhia, de molde que os seus corpos seguem caminhos que foram previamente designados, malgrado disto não tenham ciência.”

 

Miss Harford levantou-se, estremecendo; o Sol já se pusera no horizonte, mas não fazia frio. O vento não fluía e não havia nuvens ou estrelas no céu. Ouvia-se o eco de correria no convés. O capitão, subindo, juntou-se ao primeiro oficial, que prescrutava o barômetro.

Eu o ouvi exclamar:

— Meu bom Deus!

Uma hora depois, a imagem de Janette Harford — semivisível na escuridão e nos jorros d’água — foi arrancada de minhas mãos por arte do cruel redemoinho do navio, que agora ia a pique. Envolto nas cordas do mastro do navio, que flutuava, e ao qual eu me tinha atado, desmaiei.

Foi à luz do lampião que acordei.  Eu estava deitado em um beliche, imerso no familiar ambiente de um camarote de um navio a vapor. À minha frente, num sofá, sentava-se um homem, de pijamas, a ler um livro. Reconheci o rosto do meu amigo Gordon Doyle, que conheci em Liverpool no dia do meu embarque, quando ele próprio estava prestes a embarcar no vapor City of Prague, no qual me instou a acompanhá-lo.

Depois de alguns momentos, chamei-o.

Ele simplesmente disse:

— Diga-me.

E virou mais uma página de seu livro, mas sem tirar os olhos dele.

— Doyle — repeti. — Eles puderam salvá-la?

Ele agora se dignou a olhar para mim e sorriu-me como ar divertido. Evidentemente, pensou que eu estava ainda meio adormecido.

— Ela? A quem você se refere?

— A Janete Harford.

Seu ar divertido transformou-se em espanto; ele me encarou fixamente, mas sem dizer nada.

— Você vai acabar me contando — continuei. — Oportunamente, irá me contar.  

Um momento depois, perguntei:

— Que navio é este?

Doyle voltou a olhar-me fixamente.

— Estamos no vapor City of Prague, que segue de Liverpool a Nova York. Partiu há três semanas e tem um dos mastros partido. Passageiro de primeira classe, Sr. Gordon Doyle; idem, o lunático Sr. William Jarrett. Esses dois ilustres viajantes embarcaram juntos, mas estão prestes a separaram-se, já que é intenção resoluta do primeiro lançar o segundo ao mar.

Sentei-me, ereto.

— Quer dizer que há três semanas sou passageiro deste navio?

— Sim, há quase três semanas; hoje são 3 de julho.

—Eu estive doente?

— Não; esteve bem demais. E sempre pontual nas refeições.

—Meu Deus! Doyle, isto tudo é um mistério. Tenha a bondade de falar-me seriamente. Não fui resgatado dos destroços do navio Morrow?

Doyle ficou pálido e, aproximando-se de mim, tomou-me pelo pulso.  Um momento depois, perguntou-me, muito calmamente:

— O que sabe você sobre Janette Harford?

— Primeiro me diga: o que você sabe sobre ela?

O Sr. Doyle olhou para mim por alguns momentos, como se estivesse pensando no que iria fazer; depois, sentando-se novamente no sofá, disse:

— Por que não o farei? Estou noivo de Janette Harford, que conheci há um ano em Londres. A sua família, uma das mais ricas de Devonshire, opôs-se à nossa união. Por isso, fugimos — a rigor, ainda estamos fugindo. No dia em que você e eu, para embarcar neste navio, nos dirigimos até o cais, ela e sua fiel empregada, uma senhora negra, passaram por nós, seguindo ao navio Morrow. Como ela não consentiu em viajar no mesmo navio que eu, considerei adequado que ela embarcasse em um navio à vela, assim evitando que fosse notada e apanhada. Agora, estou alarmado com a possibilidade de que esta maldita avaria, caso não seja corrigida, nos detenha longamente, e que o Morrow chegue a Nova York antes de nós: a pobre moça não terá para onde ir.

Permeci imóvel no meu beliche — tão imóvel que mal respirava. Mas o assunto evidentemente não desagradou a Doyle, pois, após uma breve pausa, ele retomou:

— A propósito, ela é filha adotiva dos Harford. Sua mãe morreu na casa deles, ao cair de um cavalo enquanto caçava; o pai, louco de dor, suicidou-se no mesmo dia. Ninguém jamais reivindicou a criança e, depois de um tempo razoável, os Harford a adotaram. Ela cresceu acreditando que é filha deles.

— Doyle, que livro você está lendo?

— Ah, chama-se Meditações, de Denneker! A propósito, é bem estranho. Janette me deu o livro, já que, por acaso, ela tinha dois exemplares. Quer vê-lo?

Ele me atirou o volume, que se abriu ao cair. Em uma das páginas abertas havia uma passagem marcada:

 

“Permite-se a todos separar-se e afastar-se do corpo por um certo tempo. Assim como os riachos fluem a partir de outros, sendo o mais tênue absorvido pelo mais caudaloso, há certos parentes cujos caminhos se cruzam e as almas se fazem companhia, de molde que os seus corpos seguem caminhos que foram previamente designados, malgrado disto não tenham ciência.”

 

— Ela tinha... ela tem... um gosto singular pela leitura — consegui dizer, dominando a minha agitação.

—Sim. E agora talvez você tenha a gentileza de explicar como sabia o nome dela e o do navio em que ela embarcou.

—Você falava dela enquanto dormia — disse eu.

Uma semana depois, atracamos no porto de Nova York. Mas nunca mais se teve notícia do Morrow.

 

Imagem: PS/Copilot.

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