O APAVORANTE TOQUE DA MORTE - Conto Clásico de Terror - Robert E. Howard


 

O APAVORANTE TOQUE DA MORTE

Robert E. Howard

(1906 – 1936)

Tradução de Paulo Soriano

 

Quando a meia-noite cobrir a terra

com sombras cruas e sinistras,

Salve-nos Deus do beijo traiçoeiro

de um homem morto na escuridão.

 

O velho Adam Farrel jazia morto na casa onde vivera, sozinho, durante os últimos vinte anos. Era um ermitão silencioso e intratável, em cuja vida jamais tivera amigos. Agora morto, somente dois conhecidos seus velavam-lhe o corpo.

O Dr. Stein levantou-se. Pela janela, olhava o advento do crepúsculo.

— Então, você acha mesmo que pode passar cá a noite? — perguntou ao seu companheiro.

O homem, chamado Falred, anuiu.

— Sim, certamente. Creio que esta tarefa é minha.

— Eis uma tradição de toda inútil e primitiva: velar os mortos — comentou o médico, preparando-se para partir. — Mas creio que, por decência, teremos que nos curvar aos costumes. Talvez eu consiga achar alguém que venha auxiliá-lo em sua vigília.

Falred encolheu os ombros.

— Duvido muito! Farrel não era nem um pouco querido. Poucas pessoas acudiam ao seu trato. Eu, mesmo, mal o conhecia; contudo, não me importo em velar-lhe o cadáver.

O Dr. Stein retirava as luvas de borracha. Falred observava aquele procedimento com um interesse quase tangente ao fascínio. Um leve e involuntário estremecimento fê-lo vibrar quando se lembrou da sensação táctil que lhe provocavam aquelas luvas — algo escorregadio, frio e pegajoso, tal qual o toque da morte.

— Terá que ficar sozinho esta noite, caso eu não encontre ninguém — observou o médico ao abrir a porta. — Você não é supersticioso, não é mesmo?

Falred sorriu.

— Não muito. Para dizer a verdade, pelo que sabemos do temperamento de Farrel, é preferível velar-lhe o corpo a ter sido, em vida, um hóspede seu.

A porta se fechou e Falred assumiu a vigília. Sentou-se na única cadeira enfiada no quarto, olhando, às vezes, para aquele volume mortuário — disforme e coberto de lençóis — que jazia sobre a cama, à sua frente. Então pôs-se a ler, sob à fraca luz do candeeiro, que jazia sobre uma mesa rústica.

 

 


 

Lá fora, a escuridão descia rapidamente; finalmente, Falred largou a revista para descansar a vista. Vislumbrou novamente o fardo que, em vida, fora Adam Farrel. Perguntou-se qual seria a peculiaridade na natureza humana que tornava a visão de um cadáver não apenas repulsivo, mas, sobremodo, a essência do horror para os que ainda viviam.

“Ignorância irracional, que extrai das coisas mortas a lembrança da morte inexorável” — ele concluiu, apaticamente.

Pôs-se, então, a divagar, ociosamente, sobre o que a vida reservara àquele velho sombrio e rabugento; não tinha ele parentes nem amigos, e raramente saía da casa onde fenecera. As tradicionais histórias sobre a riqueza acumulada pelo morto avarento haviam-se disseminado, mas Falred, quanto a isto, nenhum interesse albergava: passava-lhe bem longe a tentação de revirar a casa em busca de um possível tesouro escondido.

Encolhendo os ombros, Falred retomou a leitura. Aquela tarefa era mais enfadonha do que ele havia pensado. Passado um tempo, percebeu que, sempre que levantava os olhos da revista, direcionando-os à cama e seu sombrio ocupante, assustava-se involuntariamente, como se tivesse, por um instante, esquecido a presença do homem morto e fosse, desagradavelmente, dela lembrado. A perturbação era leve e instintiva, mas aquele sobressalto fazia-o irritar-se consigo mesmo. Então notou, pela primeira vez, o silêncio absoluto e mortal que envolvia a casa — um silêncio aparentemente compartilhado pela noite, pois som algum chegava-lhe da janela. Adam Farrel escolhera viver o mais longe possível dos vizinhos e ali não chegava qualquer ruído proveniente de outras casas.

Falred agitou-se, como se quisesse livrar a mente de especulações desagradáveis, ​​e voltou à leitura. Uma súbita rajada de vento entrou pela janela e fez tremer a luz do candeeiro, que se apagou subitamente. Falred, praguejando baixinho, tateou na escuridão em busca de fósforos, mas queimou a ponta do dedos na manga do candeeiro. Riscou um fósforo, reacendendo-o. Mas, ao olhar para cama, levou um choque terrível. O rosto de Adam Farrel mirava-o cegamente. Tinha os olhos mortos arregalados e vazios, emoldurados por umas feições cinzentas e retorcidas. Ainda que institivamente estremecesse, a sua razão explicou o aparente fenômeno: o lençol que cobria o cadáver houvera sido estendido descuidadamente sobre o rosto e a súbita rajada de vento tinha-o feito escorregar, deslocando-o lateralmente.

No entanto, havia algo de horrível em tudo aquilo — algo terrivelmente sugestivo —, como se, sob o manto da escuridão, uma mão morta tivesse jogado o lençol para o lado, como se o cadáver estivesse prestes a se reerguer...

Falred, um homem de muita imaginação, encolheu os ombros diante desses terríveis pensamentos e cruzou a sala para recolocar o lençol em seu lugar. Os olhos mortos pareciam fitá-lo malevolamente — fitá-lo com uma maldade que transcendia o caráter iracundo do homem, quando vivo. Falred sabia que aquilo tudo era produto de uma vívida imaginação. Cobriu novamente o rosto acinzentado, contraindo-se quando a sua mão tocou a carne fria, escorregadia e pegajosa: o toque da morte. Estremeceu com a natural repulsa dos vivos pelos mortos e voltou para a cadeira e a revista.

Por fim, sentindo-se sonolento, deitou-se num sofá que, por algum estranho capricho do proprietário original, fazia parte do escasso mobiliário do quarto, e preparou-se para dormir. Resolveu deixar a lamparina acesa, dizendo a si mesmo que os costumes recomendavam que se deixasse a luz acesa para os mortos. Assim ponderou porque não estava disposto a admitir o quão lhe era desagradável ter de permanecer deitado, na escuridão, ao lado de um cadáver. Então cochilou, mas acordou assustado. Olhou para a cama coberta com lençóis. O silêncio reinava sobre a casa e lá fora estava muito escuro.

A meia-noite se aproximava, acompanhada de seu sinistro domínio sobre a mente humana. Falred olhou novamente para a cama onde jazia o cadáver e achou a visão daquele ente coberto por um lençol deveras repulsiva. Uma fantástica ideia nascera e crescera em sua mente: sob o lençol, o mero corpo sem vida havia se tornado uma coisa estranha e monstruosa, um ser hediondo e consciente, que o observava com olhos que ardiam através do tecido. Ele explicava, a si mesmo, tal pensamento — uma mera fantasia, é claro — como uma alusão às lendas de vampiros, mortos-vivos e coisas do gênero; ou seja, como uma referência aos temíveis atributos com os quais os vivos cobriram os mortos por incontáveis ​​eras, desde que o homem primitivo reconheceu, pela primeira vez, na morte, algo horrível e desvinculado da vida. O homem teme a morte — pensou Falred — e parte desse medo arrojou-se aos mortos, de modo que eles também passaram a ser temidos. E a visão dos mortos gera pensamentos terríveis, dando origem a medos obscuros, de hereditária memória, espreitando nos sombrios recantos do cérebro.

De qualquer forma, aquela coisa silenciosa e oculta dava-lhe nos nervos. Pensou em descobrir o rosto, partindo do princípio de que a familiaridade gera o descaso. A visão das feições, calmas e imóveis na morte, baniria — pensou ele — todas as conjecturas selvagens que o assombravam, apesar da repulsa. Mas a ideia daqueles olhos mortos, fitando à luz do candeeiro, era-lhe intolerável; então, finalmente, apagou o lume e deitou-se. Aquele medo apoderara-se dele de forma tão insidiosa e gradual que ele não percebera a sua real dimensão.

Porém, com a extinção da luz, que lhe furtava a visão do cadáver, as coisas assumiram o seu verdadeiro caráter e proporções. Falred, então, adormeceu quase instantaneamente, com um leve sorriso nos lábios, como uma lembrança de sua anterior insanidade.

Mas acordou de repente. Há quanto tempo estivera dormindo, ele não sabia. Sentou-se, o pulso latejando freneticamente, o suor frio escorrendo pela testa. Ele soube imediatamente onde estava e se lembrou do outro ocupante do quarto. Mas o que o havia despertado? Um sonho — sim, agora se lembrava —, um sonho hediondo, em que o morto se levantava da cama e atravessava o quarto com passos rígidos, com olhos ígneos e um esgar — malicioso e terrível — congelado nos lábios acinzentados. Falred parecia estar imóvel, indefeso; então, quando o cadáver estendeu uma mão retorcida e hedionda, ele acordou.

Esforçou para romper a escuridão, mas o quarto era treva pura e lá fora a negrura era tão densa que nenhum raio de luz se escoava pela janela. Estendeu a mão trêmula em direção à lamparina, mas a recolheu prontamente, como se tivesse, diante de si, uma serpente escondida. Ficar sentado ali no escuro com um cadáver diabólico já era bastante ruim, mas ele não ousou acender a lamparina: temia que sua razão se apagasse como uma vela diante do que poderia ver. O horror — severo e irracional — assenhorou-se completamente de sua alma. Já não questionava os medos instintivos que afloravam. Retornvam-lhe, agora dignas de crédito, todas aquelas lendas que já ouvira. A morte era uma coisa hedionda, um horror devastador, conferindo ao homem sem vida uma horrenda malevolência. Quando vivo, Adam tinha sido simplesmente um homem rude, mas inofensivo; agora, ele era um terror, um monstro, um demônio à espreita nas sombras do medo, pronto para saltar sobre os homens com garras profundamente mergulhadas na morte e na insanidade.

Falred ficou sentado ali, com o sangue gelado nas veias, e travou sua batalha silenciosa. Débeis lampejos de razão começaram a atenuar o seu medo quando um som suave e furtivo novamente o congelou. Não reconheceu aquilo como o sussurro do vento noturno no parapeito da janela. Sua fantasia frenética tomava-o sussurro de passos da morte e do horror. Ele saltou do sofá e ficou indeciso. A ideia de uma fuga agitava-se em sua mente, mas ele estava confuso demais para formular qualquer plano de fuga. Até mesmo seu senso de direção desapareceu. O medo embrutecera a sua mente a pronto de fazê-lo incapaz de pensar racionalmente. A escuridão se espalhava, em longas ondas, ao seu redor, e sua sombra e o seu vazio subjugaram o seu cérebro. Agora, os seus movimentos eram apenas instintivos. Parecia estar preso por correntes poderosas e seus membros respondiam lentamente ao seu comando, como os de um débil mental.

Um terrível horror germinou dentro dele — a terrível sensação de que o homem morto estava em seus calcanhares, fluindo furtivamente para atacá-lo pela retaguarda. Já não pensava em acender a lamparina; já não pensava em nada. O medo dominou completamente o seu ser; não mais havia espaço para o que quer que fosse.

Ele recuou lentamente na escuridão, com as mãos estendidas para trás, sentindo instintivamente o caminho. Com um esforço terrível, agitou parcialmente as névoas de horror que se lhe acumulavam, e, com o suor frio pegajoso sobre o corpo, lutou por se orientar. Não conseguia ver nada, mas a cama estava do outro lado do quarto, à sua frente. Ele estava se afastando dela. Era ali que jazia o morto, segundo todas as leis da natureza; se a coisa estivesse, como ele sentia, atrás dele, então as velhas histórias eram verdadeiras: de fato, a morte implantava nos corpos sem vida uma animação sobrenatural, e os homens mortos vagavam pelas sombras para exercer sua vontade medonha e maligna sobre os filhos dos homens. Ora — ó meu Deus! —, o que era o homem senão uma criança chorosa, perdida na noite e assolada por coisas assustadoras, vindas dos abismos negros e dos terríveis vazios desconhecidos do espaço e do tempo? Ele não chegou a essas conclusões por meio de um processo racional: os corolários, perfeitamente desenvolvidos, saltaram em seu cérebro atordoado pelo terror. Falred recuou lentamente, tateando, agarrando-se ao pensamento de que o homem morto deveria estar à sua frente.

Então, as suas mãos, lançadas para trás, encontraram algo — algo escorregadio, frio e pegajoso — como o toque da morte. Um grito ecoou, seguido pelo estrondo de um corpo caindo.

Na manhã seguinte, os que foram à casa do homem falecido encontraram dois cadáveres no quarto. O corpo coberto por um lençol de Adam Farrel jazia imóvel sobre a cama; do outro lado, jazia o cadáver de Falred, sob a prateleira onde o Dr. Stein, distraidamente, deixara as luvas: as luvas de borracha, escorregadias e pegajosas ao toque de uma mão tateando no escuro — a mão de alguém que foge do próprio medo —, luvas de borracha, escorregadias, úmidas e frias como o toque da morte.


Imagens: PS/Copilot.


Comentários

  1. barão amigo, vou ler os contos novos. Cara, esse Copilot é incrível na geração de imagens.

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  2. ...me lembro de ter lido em espanhol esse conto, uma vez. Achei terrorífico demais, o que mostra que o Howard é muito bom nos contos de terror, mas pena que por causa do Conan ele só seja mais lembrado pelos contos do famoso bárbaro fortão.

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  3. barão, li todo. Muito bom o Howard nesse estilo de terror. A tradução ficou ótima. Tomara que publiques mais desse estilo do Howard, Terror. Ele ficou mais conhecido por causa do Conan, mas ele tem ótimos contos de terror.

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