SEMANAS OU MESES OU ANOS OU SÉCULOS - Conto Clássico de Terror - Campo Ricardo Burgos López

 




SEMANAS OU MESES OU ANOS OU SÉCULOS

Campo Ricardo Burgos López

Tradução de Paulo Soriano

 

1

Quando acordou, Teófilo Forero percebeu que estava numa rústica cama de madeira, envolto apenas num cobertor semelhante a uma lã grosseira. Vestia um pijama delgado, talvez de algodão, e, por uns instantes, vislumbrou aquele ambiente:  ressentindo-se de quadros e de janelas, havia um quarto amplo, espaçoso, emoldurado por tijolos revelhos; nas paredes, havia uma porta fechada e alguns castiçais acesos; além da cama e de si mesmo — ele acabara de acordar —, nada mais ressaltava-se. Por alguns instantes, perpassaram-lhe à memória, confusamente, algumas cenas: via-se deitado noutro quarto, sem dúvida mais moderno (um hospital?). À sua volta, estava algo que se assemelhava a um médico e a uma enfermeira, a observá-lo; viu que, a certa altura, o médico esforçava-se por reanimar o seu peito desnudo; depois, percebeu que o doutor e a enfermeira o observavam com ares de pura impotência.

— Está morto — disse o médico. Chegamos tarde demais.

Quem estava morto? Seria o próprio Teófilo? Por mais alguns instantes, Teófilo permaneceu com os olhos fechados, mas só lhe vinham à mente imagens desconexas e caóticas: estava ele vestido com as vestes sacerdotais, celebrando uma missa nalguma igreja; estava num confessionário, a ouvir um penitente; estava a erguer hóstia; a orar num genuflexório; a caminhar por uma rua qualquer. Subitamente, Teófilo lembrou-se de que era padre e de que, no que lhe pareceram horas atrás, sentira que o coração estourara no peito e que houvera desmaiado. Depois, voltaram-lhe à memória as imagens confusas de si mesmo, numa cama de hospital, além da visão de algo semelhante à de um médico e de uma enfermeira, que se esforçavam por sobre o seu corpo, e... nada mais. O que estava acontecendo? Onde estava ele, agora? Lentamente, Teófilo despiu-se do cobertor, notou que não tinha chinelos e, assim, descalço, pôs os pés no piso de tijolo e dirigiu-se à porta, que estava trancada. Onde estaria? Sem saber como proceder, Teófilo voltou a esquadrinhar aquele quarto e comprovou, por fim, que nada havia além do que já vira; por alguma razão, olhou por debaixo da cama: nada viu. Passados uns bons instantes, sentou-se na cama e foi, novamente, assaltado por imagens confusas.

— Eu sou Teófilo!  — disse a si mesmo, em voz alta. — Sou o padre Teófilo Forero!

Somente o silêncio cuidou de responder-lhe.

Transcorreram alguns minutos ou horas? Não havia como saber. Que lugar era aquele? Onde se encontrava? Vagamente, veio-lhe à consciência a evocação de curvar-se perante um crucifixo, de ser ordenado por um bispo, de ser observado por uma bela jovem. Quem era ela? Por que aquela mulher lhe parecia a um só tempo familiar e desconhecida? Confuso, levantou-se mecanicamente, dirigiu-se à porta, agarrou a maçaneta e, desta vez, a porta se abriu. Assombrado, Teófilo ficou estático por um segundo. Depois, reagiu e atravessou o umbral; viu que estava num corredor com não mais de dois metros de altura, no qual a única porta era a sua; aqui e ali havia alguns candelabros presos às paredes e algumas velas acesas, mas isso era tudo. Teófilo olhou para a esquerda e para a direita e, em ambas as direções, o corredor acabava por mergulhar na escuridão; desorientado, optou por seguir à direita. Enquanto caminhava, reparava que, periodicamente, a única coisa que quebrava a monotonia das paredes de tijolo eram os candelabros com as velas acesas, nada mais: de resto, só a escuridão; também só se ouviam os próprios passos, pois o silêncio era total. Para onde o conduziria aquele corredor? Por que não havia outras portas, quartos ou salas? Novamente, por tempo indeterminado, Teófilo caminhou na débil penumbra, até que, finalmente, vislumbrou uma porta fechada; agarrou a maçaneta com as mãos e abriu-a./

3

No cômodo — onde não havia janela — nada se via.  Não havia, sequer, o que quer que seja fixado às paredes; havia somente os habituais castiçais e velas de sempre; as paredes eram feitas do mesmo tijolo corroído que lhe era de pleno conhecimento. Durante algum tempo, Teófilo ficou a contemplar aquele espetáculo estéril; mas, depois, decepcionado, saiu do cômodo e se pôs a percorrer aquele mesmo corredor, dotado dos mesmos castiçais e das mesmas velas a alumiar, periodicamente, o mesmo caminho na escuridão. Depois de muito deambular em silêncio, ouvindo unicamente os próprios passos sobre a pedra, encontrou, a certa altura, outra porta; curioso, dela aproximou-se e a descerrou, mas somente para encontrar o mesmo espetáculo do cômodo anterior: nada; tão-somente mais um cômodo vazio.

4

Passado um bom tempo, Teófilo já não mais sabia o quanto havia deambulado por aqueles sombrios corredores, que não pareciam ter fim; num certo instante, sentiu-se cansado e, ali mesmo, no corredor, sob as velas de um candelabro, encolheu-se no chão e adormeceu.  Quando acordou, tudo permanecia como antes:  a mesma luz de velas, o mesmo corredor semiescuro, o mesmo silêncio. Teófilo pôs-se, de novo, a caminho e, passado algum tempo, apareceu-lhe uma porta; abriu-a e voltou a deparar-se com apenas paredes de tijolo e chão de pedra, nada mais. Perplexo, o homem prosseguiu, caminhando e caminhado; de vez em quando, a monotonia das paredes do corredor era rompida por uma porta; ele, de supetão, a abria, mas tão-somente para encontrar os mesmos cômodos vazios. O que seria aquilo? Onde estava ele? Certa vez, desesperado, gritou, mas as paredes limitaram-se a devolver o eco do seu brado, nada mais.

5

Passaram-se novos tempos sem que se pudesse saber a sua dimensão (talvez horas, talvez dias, talvez semanas — não havia como calculá-lo, porque o ambiente em que circunscrito Teófilo não se alterava: eram sempre os mesmos corredores vazios e obscuros, sempre os mesmos candelabros e suas mesmas velas, sempre as mesmas portas que, ao abrirem-se, davam espaço a âmbitos vazios, sempre aquele mesmo silêncio). Por vezes, Teófilo sentia-se cansado e simplesmente adormecia no chão de um quarto e, ao despertar, saía do cômodo para continuar a mesma peregrinação pelos corredores. Certa feita, todavia, algo aconteceu. Encontrou uma porta desconhecia e, ao abri-la, deparou-se com o previsível espaço vazio; mas, ao rastrear o ambiente, notou a presença de um envelope de carta branco, caído no chão, enfurnado num canto. Estranhando tudo aquilo, Teófilo abriu o envelope e nele encontrou um papel dobrado; aberta, a folha dizia-lhe: "Teófilo Forero: estás morto e estás no Inferno".

O homem ficou estupefato com o conteúdo daquela missiva. Olhou-a de todos os lados e constatou que a sentença exposta houvera sido escrita à mão, desenhada numa letra que lhe era desconhecida. Nada mais. Assombrava-o o fato de que a mensagem era a si dirigida, confirmando aquilo de que já suspeitava (a sua própria morte), enquanto deambulava pelos gélidos corredores, e que exprimia uma condenação irremissível. Cansado de tanto caminhar, Teófilo sentou-se no chão e ficou a olhar para a página. Quem havia escrito aquilo? Teria sido Deus? Teria sido o diabo? Algum outro ser sobre-humano?  Ali sentado, refletiu sobre as recordações que lhe vinham à mente em rajadas caóticas; veio-lhe, enfim, o retorno da lembrança de que, quando vivo, havia sido sacerdote; de que, um dia, sofrera um enfarto e morrera num hospital; o semblante de uma mulher bonita também lhe ocorria à mente; entretanto, por mais que se esforçasse, não conseguia identificá-la.  Quem seria ela? Ali mesmo, sentado no chão frio, lembrou-se de que, quando era padre, falara muitas vezes do Inferno como um lugar onde haveria fogo, enxofre, demônios e condenados, mas ali não havia nada daquilo. Estaria nalgum lugar do Inferno, por ele ignorado, e ao qual se chegava percorrendo aqueles corredores sombrios, seguindo uma direção aleatória? Nada disso importava. Ele nada entendia. Meditando por muito tempo (mais uma vez, nunca ela sabia a extensão temporal, porque não havia uma forma de mensurá-la), Teófilo perguntou intimamente se merecia o Inferno e, embora, a princípio, quisesse negá-lo, decorrido algum tempo, pensou que ali não se lhe era possível mentir como no mundo, e que o veredito caía-lhe à perfeição: houvera sido um mau padre — de fato, tinha sido um péssimo padre — e um ser humano vergonhoso; estivera totalmente ao lado dos poderosos contra os fracos;  permanecera sempre ao lado dos ricos, em detrimento dos pobres; fincara-se todo o tempo em prol das potestades, mas em desfavor dos despossuídos; estivera sempre ao lado do status quo e, jamais, na companhia daqueles que o desafiavam; houvera sido, por toda a vida, um lambe-botas. O veredito, então, era irretocável, e não havia como justificar-se; ao invés de quando se está vivo, a mente, no inferno, somente nos permite externar a verdade: a isto, não nos é dado escapar.

6

Durante muito tempo, Teófilo permaneceu deitado no chão gelado sem fazer nada; notou que, embora sentisse frio, não sentia fome; reparou que as velas acesas no candelabro da parede jamais se consumiam e ofereciam sempre uma luz constante; percebeu que nunca ouvia algum som distinto do de sua respiração (sim; mesmo morto, ele respirava). O que havia de fazer? Alguma coisa? Estaria condenado a vaguear eternamente por aqueles corredores e quartos sem encontrar nada diferente do que tinha encontrado até então? Tomou novamente a folha de papel com a sentença e a leu. Era evidente, pelo que lá estava escrito, que pelo menos alguém tinha notado a sua presença, pois lhe tinham escrito, dizendo o seu nome corretamente e explicando-lhe a nova condição. Outros dias ou semanas ou meses ou anos passavam e o homem ficava apenas deitado no chão a olhar para o teto, nada mais. Uma vez, o condenado pensou que não tinha nada a perder se voltasse a explorar os corredores e os cômodos da estrutura diabólica em que estava confinado, e, então, retomou as suas deambulações.

7

Transcorreu, assim, mais um pouco do que se poderia chamar de "tempo" e nunca houve qualquer mudança em relação ao que Teófilo já sabia; uma vez, sentado num corredor, o homem pensou se poderia suicidar-se batendo com a cabeça na parede, mas, mais uma vez, soube que era absolutamente inútil, pois, em se estando morto, mesmo que se queira, não se pode voltar a morrer. Noutra ocasião, Teófilo gritou o mais alto que pôde e só conseguiu ouvir alguns ecos de sua própria voz. Um dia (e "um dia" é apenas uma expressão retórica, pois ali não havia dias nem noites), o homem entrou num novo quarto e encontrou-o despido de tudo, à exceção de um outro envelope de papel branco, deitado num canto, que Teófilo se apressou imediatamente a abrir. Ao fazê-lo, deparou-se com uma folha de papel que, ao ser desdobrada, estava em branco dos dois lados. O padre ficou a olhar para ela "durante muito tempo", sem nada entender, e depois atirou-a ao chão. O que significava aquilo? Será que alguém ou alguma coisa tentava comunicar-se com ele? Será que alguém ou alguma coisa zombava dele? Será que o Inferno também consistia nesta zombaria eterna?

8

Outro lapso de “tempo” decorreu sem variação alguma. Certa feita, enquanto dormia no chão de algum cômodo vazio, ele sentiu que alguém lhe beijava a boca e, então, despertou. Não havia ninguém; Teófilo sentiu medo e novamente se perguntou se alguém zombava dele.

9

A meditar, encolhido, nalgum corredor, o condenado concluiu que, apesar de tudo, não estava sozinho. Certo era que alguém deveria tê-lo levado para a cama no primeiro quarto, depois do ataque cardíaco; que alguém lhe escrevera uma carta que agora levava no bolso do pijama; que alguém o beijara enquanto dormia. Quem lhe fizera aquilo? Teria sido Deus? Satanás? Um anjo? Um demônio? Algum outro ser simplesmente impensável? Em sua reflexão, Teófilo lembrou-se, também, de sua família: onde estariam os seus pais? Onde estaria os seus irmãos? Onde estariam os seus avós? Fora ele o único membro de sua família que acabou no Inferno? Todos os outros membros do seu clã estavam no céu?

10

Passado um número de dias impossível de precisar, outra vez Teófilo permaneceu, durante muito tempo, estirado no chão de um quarto, sem fazer nada, quando, de repente, ouviu uma voz feminina a sussurrar-lhe ao ouvido direito:

— Mexe-te — foi tudo o que disse.

Imediatamente, o homem virou a cabeça para ver quem lhe falava, mas não encontrou ninguém: fora ele, não havia vivalma naquele quarto. Não percebeu a razão, mas, sentindo um medo imediato, ergueu-se e abandonou o cômodo.

11

Era evidente que havia alguém além dele naquele prédio que parecia não ter fim. Quem seria? Algum ser invisível? Alguma espécie de entidade maligna? O quê?

12

Numa das muitas ocasiões, Teófilo ficou imóvel no chão de um quarto por largo “tempo”, ora dormindo sem sonhos, ora acordando e meditando sobre assuntos diversos. Por algum motivo, sentou-se, agarrou a maçaneta da porta e tentou abri-la, mas não conseguiu: estava trancada. Frustrado, bateu várias vezes com os punhos na porta, mas nada mudou. O que podia fazer? Quem tinha trancado a porta pelo lado de fora, tal como da primeira vez em que aparecera no Inferno? Quanto tempo duraria aquilo? O que aquilo significava? Entre irritado e perplexo, o homem espichou-se no chão sem fazer mais nada.

13

Desde então, passou-se um lapso de tempo indeterminado (Semanas? Meses? Anos? Séculos?). Teófilo perdeu a conta do número de vezes que se levantou e tentou abrir a porta, mas somente para descobrir que esta continuava trancada do lado de fora. Perdeu, também, a conta do número de vezes que adormeceu e acordou naquele mesmo quarto. Igualmente, perdeu a conta do número de vezes que matutou sobre a mesma coisa.  Teófilo já perdeu todas as contas de todos os gêneros e há semanas ou meses ou anos ou séculos que nada muda onde ele permanece. Há semanas ou meses ou anos ou séculos que aquele quarto é o mesmo. Há semanas ou meses ou anos ou séculos que já não mais há tempo.

 

Imagem: Francisco Zurbarán (1598 – 1664).

Este conto foi publicado originariamente, em português e espanhol, na revista Relatos Fantásticos. Para acessá-la, clique AQUI.


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