A LUTA COM O DEFUNTO - Narrativa Clássica de Horror - Anônimo do séc. XIX


 

A LUTA COM O DEFUNTO

Anônimo do séc. XIX



Uma senhora alemã do México noticia no Neuen Freien Presse, de Viena, um acontecimento cuja veracidade parece realmente duvidosa.

Entretanto, o fato pareceu àquela referida folha tão interessante, que ela o deu à publicidade, deixando aos profissionais a tarefa de decidir se uma tal coisa é concebível ou não.

A senhora escreve de Chihuahua, no México, o seguinte:

Achamo-nos em Chihuahua, cidade de 20.000 habitantes, Norte do México. Vários alemães aqui vivem e trabalham.

Uma manhã, morre um moço alemão, vítima de uma moléstia sem nome, que arrebata prematuramente grande número de estrangeiros imprudentes, que não querem deixar neste clima os seus antigos hábitos, o abuso especialmente da cerveja e dos alcoólicos fortes.

O falecido compatriota foi dado à sepultura com a maior pompa possível. O coveiro Juan González só abre as covas que se pagam, e desta vez mereceu bem a sua remuneração. Não obstante, o seu trabalho não foi perfeito, pois, no momento de se descer o féretro, se verificou, que a cova era por demais curta para ele.

Embalde se tentou forçá-lo, pois não se conseguiu introduzi-lo. Alguns dos carregadores trepam sobre o caixão, para fazê-lo descer pelo peso: a tampa parte-se, desprende-se, o caixão coloca-se obliquamente e um grito geral de horror prorrompe de todos os peitos.

O corpo inanimado do belo rapaz de ombros largos saiu fora do caixão, vestido de sobrecasaca e gravata branca, com os braços cruzados sobre o peito, um espetáculo comovente.

Todos voltam as faces, enquanto Juan González aumenta a cova e remexe com a pá o interior das sepulturas vizinhas. Afinal, chega à conclusão a cruciante obra, e o mudo mancebo, a quem um amigo, na língua da pátria, profere o último adeus, pôde gozar do eterno repouso. Abalados até o mais íntimo da alma, retiraram-se todos do cemitério.

Juan González continua, indiferente, a abrir mais uma cova.

Na noite seguinte, um velho mexicano, que morava na proximidade do cemitério, julgou ouvir um estridente grito de socorro. Nesse momento, desabava uma medonha tempestade.

A chuva despejava-se em torrentes e os trovões estouravam como se as portas do inferno se tivessem escancarado, os relâmpagos e os raios retalhavam a negra noite.

E, no meio dos estampidos da fúria horrível da procela, o confrangente som de uma voz humana! O que querer isso dizer? O velho mexicano acorda seus filhos, e, bem armados, exploram as circunvizinhanças da casa. Nada encontraram que lhes parecesse suspeito.

Foi engano meu — disse consigo o velho —; deve ser uma dessas alucinações tão frequentes em ocasiões de tempestade…

Mas eis que, na manhã seguinte, subitamente se precipitam em sua cabana, pálidos como a morte, dois conhecidos seus. Tinham ido cedo ao campo santo encomendar uma sepultura para um amigo, falecido nessa noite, quando, ao lá chegar, foram surpreendidos pelo mais medonho espetáculo: Juan González, o coveiro balbuciaram eles, benzendo-se , travou uma luta com um defunto, e o defunto agarrou-o, apertando-o entre os braços, e estrangulou-o.

A polícia foi imediatamente avisada, e chamados os médicos. Penetraram hesitantes no cemitério e ficaram todos como que gelados de terror diante da indescritível cena que se lhes apresentava.

Juan González! — exclamaram eles.

Não restava o menor dúvida: era bem ele mesmo; não podiam ver seu rosto, porque o corpulento cadáver do mancebo o ocultava em seu apertado amplexo. E Juan González não respondia! O Sol já se erguera brilhante, viram uma cova aberta, a pá junto a ela, e, um pouco adiante, outra cova e um caixão vazio.

Mas como pôde isto ter lugar? Como pôde Juan González cair em tal situação?

A explicação não pode ser senão a seguinte.

O coveiro já tinha sido uma vez condenado por causa de roubo de sepultura. Com certeza, desta vez, foi o traje preto novo do mancebo alemão que o seduziu.

O pobre homem não resistia à tentativa de furtar a bonita sobrecasaca. A tempestade já roncava no horizonte quando ele entrava no cemitério. Depressa, antes que a tormenta desabe, resolve executar o seu plano. A terra, movida de fresco, facilita a abertura da cova; a ímpia tarefa não o aterroriza; a morte é o seu ofício, é dela que vive; em poucos momentos, aparece o cadáver; seus dedos tocam no domingueiro traje; que pano fino! Mas os braços estão fortemente apertados sobre o peito, como se quisesse, em contração titânica, segurar o derradeiro terno.

De que modo vencer a resistência?

De súbito, ocorre-lhe uma ideia: carregar o cadáver, colocá-lo de pé no canto do muro para despi-lo ao seu gosto, sem risco de dilacerar a roupa.

Dito e feito.

Juan González é de forte musculatura; com as duas mãos, abre à força os braços do cadáver e insinua-se entre eles, peito contra peito, para mais rapidamente sacar a sobrecasaca. Mas — ó horror! — os braços se contraem violentamente, cruzam-se sobre as suas costas e o apertam em um círculo de ferro.

É em vão que, em supremo esforço, se debate para se desprender; o morto mantém firme em suas garras o peso vivo e não o solta Um corpo inanimado não é de fato um corpo inerte e tampouco desaparece com o último bocejo toda a força muscular.

A rigidez cadavérica assemelha-se muito a uma atividade funcional, em que as forças acumuladas no organismo se manifestam em extrema energia.

Foi sem dúvida em um tal momento que o ladrão de sepulturas foi apertado pelo cadáver. Baldados foram todos os seus esforço na luta, em plena noite, com um homem morto. Foi-lhe inútil a hercúlea força; o morto tinha mais força do que ele. Torce-se e retorce-se para só se desvencilhar do medonho abraço, gélidos suores correm-lhe da fronte; grita, geme e chora, lança um brado de desespero pedindo socorro; só o lívido relâmpago, seguido de sinistro trovão, responde ao seu angustiado apelo através das espessas trevas.

Aterrorizado, começa a ver o cadáver com os olhos arregalados, a arreganhar-lhe os dentes; a razão se esvairá, os sentidos fogem-lhe, cai afinal sem consciência em prolongado delíquio, subjugado pelo defunto vingador da criminosa audácia.

Quando, não sem grande dificuldade, o libertaram, na manhã seguinte, do pavoroso amplexo, Juan González não estava ainda inteiramente morto: percebia-se-lhe algum fraco movimento respiratório. Foi imediatamente transportado para o hospital, onde, depois de algumas horas de socorros, voltou a si e pediu logo um confessor. Teve ainda força para confessar o seu ímpio crime; mas estava exausto e a lembrança da horrível cena deu-lhe o golpe de graça. '

Jesus, Maria, José! — vociferava ele. — Eu vi através dos relâmpagos, que alumiavam a noite do inferno, o semblante cheio de raiva daquele enorme homem, que me esmagava nos seus formidáveis braços... assim... assim...

O pobre homem não pôde mais continuar. Uma ligeira convulsão percorreu-lhe o corpo, virou para trás, estava morto.

À tarde do mesmo dia, foi colocado na mesma sepultura, que ele mesmo abrira junto à do alemão.”



Fonte: “O Cearense”/CE, edição de 29 de fevereiro de 1888.




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