ENTERRADA VIVA - Conto Clássico de Horror - Aldo Delfino
ENTERRADA VIVA
(Lenda ouro-pretana)
Aldo Delfino
(1872 – 1945)
Hoje,
o prédio que existe nesse vasto terreno, a que chamam Jardim Botânico, está em
ruínas.
Ao chegar-se, logo que se atravessa um pátio
verdejante de relvas e se abre o portão, avistam-se a frente da casa, a entrada
empedrada e as janelas altas.
Pelo
que se vê ali, parece conservar-se em estado regular o edifício.
Dando-se
volta, porém, o que se encontra é um espetáculo doloroso.
As paredes estão meio caídas. Puas, terra,
pedras, telhas partidas dão um aspecto desolador ao local.
E
um ou outro lance do prédio, inclinado, fora do prumo, espera somente a
primeira tempestade para aumentar o sibilo do vento com o ruído da queda.
Entretanto,
esse terreno atualmente em abandono, essa casa destruída já tiveram dias de
prosperidade.
As
coisas parecem viver como os homens. Houve ali felicidade e alegria, houve
também, depois, dores cruciantes, gritos de raiva, lagrimas desesperadas e
episódios trágicos.
Hoje
não é mais do que uma ruína, comoventes destroços da batalha do tempo contra a
vida.
Enquanto
a cidade foi próspera, estava o Jardim Botânico em contínuos melhoramentos.
Extensa
cultura de chá se desdobrava pelas sinuosidade dos morros; jabuticabeiras, em
renque, davam-lhe lugares pitorescos, cheios de sonolenta tristeza, à meia
sombra de suas ramagens.
Lagos
cristalinos refletiam, como espelhos, os aspectos variados do céu.
E
por toda parte árvores frutíferas e plantas raras faziam o Jardim Botânico um
lugar delicioso.
Procuravam-no
os pobres, comendo à sombra dos seus arvoredos, e os abastados, para os seus
banquetes, ao suave farfalho das plantas e sob o tranquilo e vasto pálio
azulado do espaço.
Depois
veio a decadência: mudaram a capital, e a ação oficial não se fez mais sentir.
E
o Jardim Botânico, magnífico, em uma epidemia, foi transformado em hospital de
variolosos.
Agora,
não mais festas ou risos pelas grandes salas claras; não mais, sob as
sombreadas alamedas, o gargalhar das crianças.
Não
subiam mais os alaridos dos brinquedos pueris ao espaço; e às tardes e às
manhãs não se viam chegar e partir os grupos alegres dos que pediam àquele
remanso o repouso necessário ao espírito e o descanso ao corpo.
As
vastas salas estavam repletas de leitos.
As
alegrias trocaram-se em dores.
Havia
um coro de gemidos e o estertor de agonias.
Não
plantaram mais árvores; o Jardim Botânico fora abandonado.
Por
toda parte crescia o mato. E como o cemitério era longe, enterravam ali mesmo
os falecidos.
Ainda
chegavam, pela manhã e à tarde, grupos; já não vinham rindo, entretanto.
E
os que entravam, moribundos, muitas vezes viam fazer os enterramentos.
O
terror se espalha.
Emigraram
as aves, e as cobras, que vinham dos morros próximos, desciam por entre o mato
alto, que crescia.
E
os corvos, com o cheiro do hospital maltratado, apareceram pelo ar. fazendo
grandes círculos negros.
O
administrador, logo que assumiu o cargo, começou a beber desbragadamente para
afugentar os dolorosos fantasmas das misérias humanas e dos sofrimentos a que
não estava habituado.
Depois,
aos poucos, se familiarizou.
Convidava
amigos para jantar, e, enquanto os doentes agonizavam e faleciam, ele e os seus
convivas se banqueteavam.
Por
fim, excitados pelo álcool, cantavam até altas horas mortas.
Eram
serenatas fúnebres, em que os risos das canções ficavam, às vazes, cheios de
pragas, gritos ferozes e gemidos agônicos.
*
O
senhor administrador se divertia.
É
verdade que, por vezes, no terminar das orgias, parecia-lhe ver surgir pelos
campos, vestindo grandes sudários alvos, espectros.
Aparecia-lhe,
continuamente, uma figura singular de mulher, falando e gesticulando sozinha,
chamando-o de devasso e de ébrio, com as pústulas dos varioloso ainda mal
fechadas.
Os
cabelos erguiam-se-lhe, e um receio inexplicável lhe fazia correr pelo corpo
todo suores frios.
Bebia,
nessas ocasiões, copo sobre copo, até que, completamente ébrio, caía adormecido
em qualquer lugar.
Outras
vezes, a tremer, alcoolizado, ficava pelas enfermarias maltratando os doentes e
rindo-se de seus sofrimentos e gemidos, até que amanhecia.
Durante
o dia, dormia.
Tomou
um desvairado terror pela noite.
Organizava,
agora, grandes ceias, que prolongava pela noite em fora, não deixando
retirar-se os convivas senão dia claro.
Mulheres
quase boas, ainda tendo no rosto cicatrizes novas da moléstia, eram trazidas às
orgias.
E
os cantos, as saúdes, tinham qualquer coisa de diabólico, seguidos dos gemidos
das doentes e dos olhares ainda parecendo febris das convalescentes.
Nem
assim, as visões do senhor administrador tinham fim.
Agora,
tinha-as também de dia, quando, acaso, acordava.
Uma
vez, depois de correr até alta noite as enfermarias, encontrou-se, ao
despertar, com um rio de Sol no rosto, na cama de uma agonizante, que o puxava
para si.
Deu
um grito e ergueu-se num pulo.
Era
o doente que lhe aparecia! A mesma cara tumefacta, as mesmas feridas abertas e
cheias de pus.
No
fundo daquelas chagas, nos olhos grandes tranquilos, fixos, percebiam-se
trágicos e desesperados sofrimentos.
Então,
o senhor administrador, falando só, irritado, para certificar-se se era mesmo
aquela a visão que o seguia, percorreu, um a um, os leitos dos enfermos.
Todos
tinham os mesmos restos: túmidos, ulcerados, disformes e horríveis.
Eram
outros tantos espectros!
*
Nessa
noite, deu o senhor administrador uma ceia esplêndida.
Não
podia dormir, divertia-se.
Na
cidade, a epidemia recrudescia.
Nos
últimos dias, mais do que nunca, chegavam variolosos. Não havia mais leitos.
Punham os doentes no chão, em esteiras.
O
ar estava impregnado de exalações.
Já
não enterravam bem os mortos, fatigados pelo trabalho excessivo, e descuidados
por pouca vigilância.
E
pelo céu claro, azulado, tranquilamente flamante, cada vez aparecias mais
corvos.
Os
gemidos eram seguidos, altos, dolorosos, como os troncos das grandes árvores
torcidos pelo temporal nas matas virgens.
Nada,
entretanto, impedia a orgia.
Passavam
sobre as agonias os risos, as gargalhadas.
Multas
vezes, às portas das enfermarias, surgia a figura do senhor administrador, de
copo em punho, dando uma ordem.
*
Foi
numa dessas noites que uma febricitante, acordando ao gargalhar estridente da
orgia, seminua e gritando, correu para fora do hospital, para a noite
estrelada, e para os campos em flor.
Enfermeiros
seguiram-na.
Ela
ia correndo sempre, arremessando-se ao acaso, de braços ao ar...
Quem
a visse, pelo campo em fora, havia de ter a impressão doentia de uma visão.
Ia
a mísera gritando, como berrando iam os que procuravam detê-la. Da sala da
orgia, o senhor administrador ergueu-se repentinamente. Tinha os olhos
esbugalhados, a boca torcida num ríctus doloroso; e, nisso, deixando cair o
copo cheio, estendendo os braços para a janela, mostrava o campo e a noite:
—É
ela! Agora digam que não é espectro!
Lá
correm os enfermeiros atrás dessa maldita visão!
Todos
riram. Pensavam os convivas ser um dos costumeiros duendes.
Depois
se ouviram gritos.
Levantaram-se,
cambaleantes, e chegaram à janela.
Lá,
ao longe, se moviam grupos.
Vozes
vinham morrendo à distância. E a pobre enferma, correndo sempre, encontrando-se
à beira de um lago, precipitou-se nele. À margem pararam os que a seguiram.
—
Que fazer? Não tinham canoa. Lembraram-se de chamar o senhor administrador.
—
No estado em que está — disse rindo um dos enfermeiros —, de cousa alguma nos
pode valer.
Não
foi, porém, necessário. Ele aí vinha. Andava como um sonâmbulo, jogando as
pernas para a frente.
Os
braços, em gesticulação contínua, pareciam agredir inimigos invisíveis. Afinal,
chegou à beira do lago.
Os
enfermeiros jogavam, agora, cordas a que tinham atado pedras às pontas, em
direção ao lugar em que se debatia a mulher.
Algumas,
caindo-lhe sobre o corpo, tiraram um ruido surdo. Conseguiram, por fim,
arrastá-la à margem.
Estava
inerte, parecia morta.
O
senhor administrador adiantou-se logo. Tinha o olhar fixo, as mãos convulsas e
as pernas trêmulas.
—
Viram-na? Quero ver-lhe o rosto.
E
quando chegou e viu a cara da enferma, chagada, inchada, exclamou, num recuo
brusco:
—É
ela!
Os
assistentes riam-se.
Discutiam
os enfermeiros se a criatura estava viva ou morta, não se incomodando muito com
o senhor administrador, a cujas visões já estavam acostumados.
—
Está morta. Enterremo-la aqui mesmo. Para que mais trabalho?
E,
chamando o coveiro, à meia luz da noite, começaram a abrir a sepultura.
O
ferro cortava o chão com sons tão lúgubres, que faziam passar na alma um
arrepio de pavor.
Quando
o coveiro, por fim, entrava dentro da cova, atirando cá fora a terra,
reclamaram que acabasse com aquilo. Afinal, estava pronta.
Ao
pegarem, porém, na mulher para lançá-la à sepultura, o corpo se moveu, e a
desgraçada sentou-se e abriu os olhos.
O
senhor administrador deu um grito. Era o mesmo olhar de febre que ele conhecia,
era o seu duende, que ele tinha em sua frente!
—Enterrem-na!
E
agitava os braços, berrava, batendo os pés, numa fúria.
A
enferma, então, pareceu compreender o que se passava. Levantou-se e deitou a
correr outra vez. Foi agarrada logo.
—Enterrem-na! Não ouviram?
Aquilo
não podia durar eternamente.
Os
enfermeiros estavam cansados, tinham mais doentes a tratar.
Já
haviam, às constantes lidas com as misérias humanas e com a morte, perdido o
respeito aos sofrimentos alheios.
Atiraram
com a infortunada mulher à sepultura, entre um berreiro infernal do senhor
administrador e brados angustiosos da vítima. A terra jogada apressadamente em
breve lhe cobriu o corpo e lhe abafou as súplicas.
—
Agora — disseram às gargalhadas os assistentes —, não virás mais assombrar os
vivos!
O
coveiro, indiferente, batia as mãos cheias de terra.
O
céu dourava ao reflexo do Sol.
E
os corvos, percebendo o dia, esvoaçavam já, com grandes o forte batimentos de
asas, formando círculos negros pelo azul do espaço.
Belo Horizonte, 1908.
Fonte: “Jornal do Commercio”/RJ, edição vespertina
de 21 de março de 1910.
Ilustração: Paul Delaroche (1797–1856).
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