MISÉRIAS PARISIENSES - Conto Trágico - A. de Oliveira Costa


 

MISÉRIAS PARISIENSES

(Sempre em pé)

A. de Oliveira Costa

(Séc. XIX)

 

Quem visita os esplendidos estabelecimentos denominados Bon-Marché, Louvre e Printemps, onde, às vezes, a venda de um só dia excede de um milhão e meio de francos, não pode imaginar quantas torturas se inflingem às principais autoras dessa insolente prosperidade—às humildes empregadas.

Estrangeiros, provincianos, e até parisienses, ficam embasbacados ante as suntuosidades da moda, notam a prodigiosa atividade do pessoal, admiram a sua constante afabilidade —comprazendo-se com egoísmo nessa beleza imensa, excepcional —, sem se preocuparem das verrugas de tantas magnificências.

No seu romance Au Bonheur des Dames, Zola descreveu minuciosamente uma destas lojas-leviatãs, nas quais lida com afinco importante população, escravizada pelos. bojudos capitalistas, pelos patrões-negreiros.

De todas as pessoas que se extenuam nesses incomensuráveis armazéns, ou em outros mais modestos, as mais interessantes são incontestavelmente as mulheres condenadas a sentinelas perpétuas, piores que as galés, piores que a legendária grelha de S. Lourenço.

Era num deles que estava plantada a caixeirinha Leontine, espetada nem mais nem menos à porta da rua, pois só devia mexer-se para servir os fregueses. Sol, chuva, raios, trovões encontravam a impávida., ao lado dos sapatos, chinelos e tapetes que oferecia aos transeuntes.

Apesar das suas vinte e cinco primaveras, a rapariga definhava horrivelmente. Um véu de tristeza toldava-lhe os belos olhos azuis. E havia de quê!... Dez anos de atitude perpendicular, a imitar coqueiros!...  Crescera bastante, mas nada de engrossar. Representava uma excelente vara para matar cobras.

Todos diziam que ela entisicava. Pudera não! A comer quase sempre batatas fritas, rabanetes, chouriços de sangue de porco, e beber água suja do Sena!

Realmente, os médicos queriam gracejar, receitando-lhe vinho de Bordeaux e carnes suculentas, a ela, tão desgraçada, cuja pobreza franciscana produzia calafrios!

E, se gastasse dinheiro em comida, como poderia sustentar a mãe, a triste velhota entrevada?

Não... Preferia morrer a deixar carregá-la para o hospital, a vê-la ainda mais melancólica nesses salões imensos, onde, cada dia, arquejavam agonizantes; e as lágrimas saltavam dos olhos dos moribundos, privados dos supremos beijos da família!,.. Não!... Cem vezes não!... Seria melhor tornar-se transparente, perecer à míngua, sucumbir miseravelmente, qual cão abandonado.

Efectivamente, era o caminho que tomava. A tosse trovejava formidável nas cavernas do seu peito descarnado e exangue, as pernas se enfraqueciam, os pulmões desfaziam-se em escarros purulentos.

Uma noite, entrando no seu quartinho do sétimo andar—onde tanto frio fazia no inverno, e tanto calor no verão, encontrara a mãe completamente carbonizada. Desmaiando, a desditosa mulher caíra num braseiro capaz de assar um boi.

Os jornais relataram a desgraça, lastimando, com grande espalhafato, a sina de Leontine; mas ninguém pensou em socorrê-la, nem pelo menos se ocupa do enterro.

O patrão adiantou-lhe o ordenado de um mês, resmungando muito, e praguejando contra as tonteiras da velhice, e as exigências da mocidade.

*

Os urubus não suaram descendo o cadáver. A defunta estava reduzida a um rolo de tabaco, e as tábuas do caixão eram bem finas, da grossura do dinheiro que tinham custado.

A filha, sozinha, lamentável, com os olhos injetados de sangue, os lábios rachados pelas gélidas rajadas de janeiro acompanhara o lúgubre carro negro até o Campo dos Nabos, o ultimo jazigo dos pobres, dos desvalidos, sem túmulos nem epitáfios.

Quando as pás dos coveiros acabaram de cobrir de terra a única afeição da sua vida, ela soluçou, e uma golfada ensanguentou-a seu lenço húmido de lagrimas. Voltou à loja depressa, pois só tinha licença para ir ao cemitério. O patrão não costumava brincar com os seus devedores!

Comprimindo no íntimo do coração as suas terríveis angústias, continuava a sorrir aos fregueses, gabando os seus artigos, mostrando-se amável, advogando a causa do seu próprio algoz. Já eram passados três dias, e ainda não conseguira dormir. Tinha pesadelos, sufocava....

Entretanto, não havia meio de deitar-se. Era indispensável trabalhar, trabalhar até o derradeiro suspiro.

E ele não tardou...  Na rua, à luz viva do gás da civilização, num violento arranco, produzido pela tosse, Leontine fora fulminada. Morrera como vivera — em pé.

Paris — 1886.

 

Fonte: O Mequetrefe, edição de 10 de outubro de 1886.

Ilustração: Théodule Ribot (1823 – 1891).

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