O GUARDIÃO DO DEFUNTO - Narrativa Clássica Sobrenatural - Lúcio Apuleio


 

O GUARDIÃO DO DEFUNTO

Lúcio Apuleio

(c. 125 – c. 170)


“— Sendo órfão de pai e mãe, e tomando conhecimento da grande fama de Olimpo — disse Télifron —, parti de Mileto àquela província, já que morria de vontade de conhecê-la. Caminhando pela Tessália, cheguei à cidade de Larissa, imbuído de maus presságios. E, enquanto passeava, olhando tudo à minha frente, vi que a minha bolsa escasseava; então, procurei um remédio para a minha pobreza. Assim andando, vi um ancião, de boa estatura, no meio da praça, exclamando:

Se alguém quiser guardar um morto, ajuste comigo o preço.

Perguntei a um dos que passavam:

O que é isso? Por aqui se costuma guardar os mortos?

Ele me respondeu:

Calma, irmão, que bem me pareces um estrangeiro, e justamente por isso não sabes que estás em plena Tessália, onde as feiticeiras cortam o nariz e as orelhas dos mortos, e os empregam em suas artes e encantamentos.

Diga-me — disse-lhe —, por tua vida, como é essa vigilância que rendem aos defuntos?

Primeiramente — respondeu-me ele —, deves, durante toda a noite, manter os olhos bem abertos e sempre voltados ao corpo do falecido, sem nunca tirá-los dali. É que — caso tu te distraias — há mulheres malignas, que, transformadas em qualquer animal de sua escolha, penetram onde tu estiveres, e depois se escondem, convoladas em aves, cães, ratos e mesmo moscas. E, estando no recinto, com seus encantos malditos, atacam e deixam sonolentos aqueles que estão de vigia, de maneira que não há quem possa contar quantos malefícios essas mulheres terríveis fazem à conta de seus nefandos vício. E por este tão grandioso trabalho não se paga além de quatro ducados de ouro, mais ou menos. Mas esqueci-me de dizer o mais importante: se o guardião, na manhã seguinte, não devolve íntegro o defunto — tal como lhe foi entregue —, tudo o que no morto acharem cortado e diminuído haverão de cortar na carne do vivo, para restituir ao morto o que lhe faltar.

Ao ouvir isso, animei-me ao extremo e, aproximando-me do pregoeiro, disse-lhe:

Podes parar o teu pregão, porque eis aqui quem guardará o morto. Diz-me: que contraprestação haverão de dar-me?

Ganharás mil moedas — respondeu-me o pregoeiro. — Vê, contudo, meu jovem: o corpo a ser guardado pertence a um dos príncipes desta cidade. Portanto, toma cuidado para protegê-lo das harpias malignas.

Eu lhe disse, então:

Para que me dizes isto? Não vês que sou um homem de ferro, imune ao sono? A verdade é que enxergo melhor que um lince. Tenho bem mais olhos do que Argus (gigante mitológico com cem olhos, metade dos quais permaneciam aberto quando dormia).

Mal terminei de falar, o velho homem me levou a uma casa, que mantinha as janelas fechadas. Fez-me entrar por um postigo e me conduziu a uma câmara sem lume, onde estava uma senhora vestida de luto. Chegando-se a ela, disse o ancião:

Este é o homem que irá guardar o teu marido.

Disse-me ela:

Vê bem, irmão: é preciso que cumpras vigilantemente o teu encargo.

Senhora — respondi-lhe —, deixa-te disto e dá-me algo de comer.

Isto a agradou. Ela, então, meteu-me num aposento onde estava o defunto, coberto com lençóis brancos, ao qual juntou sete testemunhas. Então, chorando e levantando o lençol, descobriu, perante as testemunhas, o morto, exibindo-lhe integralmente o corpo. Um notário assentou o fato num registro.

Vedes aqui o nariz inteiro, os olhos ilesos, as orelhas perfeitas, os lábios completos e a barba maciça? — disse ela. — Vós, fiéis cidadãos, são de tudo testemunhas.

Dizendo isto, mandou que me providenciassem uma lamparina com azeite, um jarro de vinho, pão e queijo.

 Enfim, todos foram embora e eu fiquei sozinho. Mas, esforçando-me ao máximo, temendo não levar adiante a guarda noturna, esfregava os olhos, cantava, andava e falava por demais.

Já bem tarde da noite, dominou-me um grande medo. Nisto, uma doninha entrou no aposento e mirou-me fixamente a cara. Eu, vendo um animal tão pequeno, que me olhava com tanta seriedade, indignei-me e disse-lhe:

Ó fera suja e má, por que não sais daqui e te encerras com os ratinhos, teus pares, antes que experimentes o mal que te posso causar?

Com isso, a doninha evadiu-se. E não tradou muito a que eu caísse num sono profundo, como se jogado no centro dos abismos. E o sono era tal que o deus Apolo não conseguiria discernir facilmente qual de nós dois, naquele quarto, estava mais morto. Assim — desarmado e desprotegido —, não permanecia onde realmente estava. Finalmente, enquanto o galo cantou, acordei num grande sobressalto e temor, e, empunhando a lamparina, fui apressadamente ver o morto. Mui diligentemente, examinei todo o seu corpo e me certifiquei de que tudo estava inteiro e em seu devido lugar.

E nisto veio a manhã. Eis que, chorando, entrou a mulher. E, demonstrando grande tristeza, com ela entraram as sete testemunhas da noite anterior. Lançando-se sobre o corpo, a viúva beijou-o várias vezes. E, olhando e examinando o cadáver, achou que este estava intacto e perfeito. Então, a mulher chamou seu mordomo e ordenou que me pagasse pela boa guarda que eu havia feito. Depois me pagaram e a senhora me disse:

Olha, meu jovem, tudo o que precisares nesta casa, enquanto aqui estiveres, podes pedir. O bom serviço que prestaste ser-te-á retribuído.

Como não esperava tal proveito, prazerosamente peguei meus resplandecentes ducados, e, como que surpreso, passeio-os de uma mão para a outra. E, dando graças à senhora por tão bom pagamento, dirigi-me à praça e fui comer numa taverna. Depois, saí para passear na mesma praça, onde fiquei a pensar na miséria deste mundo mesquinho e trabalhoso, e na cegueira das maléficas mulheres que, com seus encantos e feitiços, querem buscar deleites e torpezas para satisfazer seus depravados e nefandos apetites, sem cuidar de que o soberbo Plutão, no futuro, irá castigá-las cruelmente.

Foi quando o corpo do falecido, chorado e pranteado, passou, com grande pompa, pela praça, acompanhado de muita gente, e seguiu até o seu sepulcro. Lá chegando, aproximou-se um velho senhor, muito consternado, a chorar e a manear os seus honrados cabelos grisalhos. E, com as duas mãos, agarrou o túmulo onde estava o morto, dizendo:

Pela fé que mantendes, ó cidadãos, e pela misericórdia da República, socorrei o triste morto e castigai severamente a grande traição e maldade que essa nefasta e perversa mulher cometeu; porque, com ervas venenosas, ela matou esse infeliz, filho de minha irmã, para agradar ao seu amante e devorar os bens do falecido.

De tal maneira falou e queixou-se o bom velho que, tendo ouvido aquelas palavras, o povo indignou-se com a mulher. Alguns clamaram por lenha para queimá-la viva e outros instaram a apedrejá-la até a morte.

Ela, com palavras bem-compostas e pensadas, se escusava, jurando pelos deuses a sua inocência.

O ancião, então, disse:

Se é assim, ponhamos o assunto nas mãos da Providência divina, que desvelará o fato. E, para tal fim, contamos com Zacles, um Egípcio, sacerdote de Plutão e Prosérpina, que traz os mortos das profundezas para esclarecer o que lhe for perguntado.

Quando o velho homem disse isso, toda a gente se alegrou. E, tendo sido trazido o sacerdote, implorou-lhe afincadamente que lhe desvendasse tão hedionda maldade.

O sacerdote debruçou-se sobre o corpo e, tomando uma certa erva que trazia consigo, colocou-a em três partes do cadáver — na boca, no peito e na mão esquerda. Depois, tendo-se voltado ao Sol poente, começou a rezar placidamente.

Toda a gente via que um portentoso milagre estava por acontecer. Eu, que queria muito saber o que se passava com o meu morto, aproximei-me o quanto pude do sepulcro. E, encontrando uma pedra para apoiar os pés, pude assistir perfeitamente a tudo.

Aos poucos, o cadáver reanimou-se. Então, levantou-se e se pôs a falar, dizendo:

Por que me fazes voltar a este mundo, depois de ter vindo do rio Láteo e ter passado pelo lago Estígio? Deixa-me, deixa-me em meu repouso.

Tendo assim falado a alma do morto, disse-lhe o sacerdote:

Por que não te manifestas e declaras a todos a causa de tua morte? Não sabes que, com os meus encantamentos, posso chamar as fúrias infernais para que te atormentem os membros?

O defunto levantou-se e se pôs a falar para as gentes:

Fui morto pela traição e pela astúcia de minha esposa, que maculou a minha cama, comprazendo-se no adultério.

Então a mulher respondeu com grande ânimo, altercando com o marido e resistindo-lhe aos argumentos.

Ouvindo isto, as pessoas divergiram: uns disseram que aquela pérfida mulher deveria ser enterrada viva com o corpo do marido; outas, que nenhum crédito deveria ser dado às mentiras de um cadáver.

Mas dissiparam-se as dúvidas quando o falecido, dando um grande gemido, disse:

Eu vos darei um sinal muito claro de toda a minha verdade e manifestarei o que ninguém mais sabe.

Então, apontando o dedo para mim, o cadáver continuou, dizendo:

Saibais que, enquanto — muito bem e diligentemente — esse tão sagaz e astuto guardião zelava por mim, quiseram as bruxas cortar-me o nariz e as orelhas. Mas, não podendo enganar a sua destreza e boa guarda, lançaram-lhe num pesado sono. Enquanto o meu guardião estava assim desfalecido, as bruxas puseram-se a chamar por meu nome. Estando o meu corpo morto, não pôde prestamente responder aos serviços da arte mágica. Mas sendo o guardião — que estava vivo, malgrado sepultado no sono — meu homônimo, levantou-se àquele chamado, sem saber quem o invocava. Instado a que, por si mesmo, andasse como uma alma morta pela casa, que mantinha as portas fechadas, as bruxas, por uma fenda, cortaram-lhe o nariz e as orelhas. Enfim, ele recebeu a carnificina que me estava reservada. E para que a artimanha não fosse notada, mui sutilmente pregaram-lhe na cara, feitos de cera, orelhas e nariz postiços, idênticos aos seus. E agora se vê o homem infeliz regozijando-se pelo bom pagamento que lhe deram, mas não pela proteção e vigilância despendidas ao meu corpo, senão pela perda de seu nariz e orelhas.

Tendo assim falado o morto, eu, assustado, levei a mão à cara, mas ela trouxe consigo o meu nariz; agarrei as orelhas, mas elas caíram-me das mãos. Quando os que estavam à minha volta viram aquilo, miraram-me e abanaram as cabeças. Enquanto eles se riam, eu, cabisbaixo, dali saí discretamente, e, desde então, porque deveras mutilado, jamais regressei à minha terra natal. Assim, com os cabelos compridos, disfarço a falta de orelhas; e, com este pano, cubro a feiura do meu nariz desventurado”.

Quando Télifron terminou de contar a sua história, os que estavam à mesa, já exaltados pelo efeito do vinho, deram grandes risos e voltaram a beber abundantemente.



Excerto de Metamorfoses ou O Asno de Ouro.

Versão em português de Paulo Soriano, a partir da tradução ao espanhol de Diego López Cotegana (1455 – 1524).

Imagem: PS/Perchance.



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