POR OCASIÃO DE UMA AUTÓPSIA - Conto Clássico Fúnebre - Anton Tchekhov



 POR OCASIÃO DE UMA AUTÓPSIA

Anton Tchekhov

Tradução de autor desconhecido do séc. XX



Em linda tarde de primavera, um médico legista e um juiz de instrução iam proceder a uma autópsia. O juiz de instrução dizia, olhando vagamente para os cavalos:

Há na natureza muitos enigmas e coisas obscuras. Até na vida cotidiana, doutor, a gente se depara com fenômenos positivamente inexplicáveis. Conheço, por exemplo, algumas mortes extraordinárias, que só os espíritas e os místicos poderiam explicar, porque um homem comum teria que abanar a cabeça diante delas, cheio de surpresa. Conheço, a propósito, o caso de uma senhora muito culta que predisse a sua morte e, sem nenhuma causa externa, morreu precisamente no dia que tinha indicado. Disse que morreria num dado momento e morreu.

Não há efeito sem causa — declarou o médico. — Se houve morte, houve causas. Quanto à predição, não é nada para espantar. Todas as nossas mulheres do povo e até as nossas senhoras têm o dom da profecia e de pressentimento…

Seja! Mas, doutor, o caso da senhora de quem falo era absolutamente diferente. Nada houve de comum entre a sua previsão e as das outras mulheres simples ou das senhoras vulgares. Era uma moça saudável, sensata, refratária a todas as superstições. Tinha o olhar muito inteligente e aquela fisionomia aberta, franca, nitidamente russa. Da senhora ou da mulher vulgar só tinha — se me permite — a beleza. Era esbelta, graciosa e tinha um cabelo admirável. Para que possa figurá-la bem, digo-lhe mais que era uma pessoa despretensiosa, cheia da mais comunicativa alegria e dessa boa disposição espirituosa que só se encontram nas pessoas inteligentes, simples e alegres. Tratar-se-á de um caso de espiritismo, de pressentimento, de misticismo ou de qualquer coisa de tal gênero? A verdade é que essa senhora troçava de tudo isso.

A carruagem parou diante de um poço. O juiz de instrução e o médico mataram a sede e esperaram que o cocheiro tivesse dado de beber aos cavalos.

Então? — perguntou o doutor, quando a briska rolou novamente pela estrada. — De que morreu a tal senhora?

Morreu de uma maneira extraordinária. Um belo, dia o marido entrou-lhe pelo quarto, dizendo que seria conveniente vender, na primavera, a velha caleche que tinham, e substituí-la por uma carruagem mais moderna e mais leve, e que também seria bom trocar o cavalo da esquerda e pôr Bobtchinski aos varais. (Era o nome de um dos cavalos). A mulher ouviu e disse:

Faze o que quiseres, agora pouco me importa: no verão já estarei no cemitério.

O marido, como é natural, encolheu os ombros e sorriu:

Não estou brincando — disse a mulher. — Falo-te seriamente que morrerei em breve.

Em breve? Por quê?

Logo depois do parto. Digo-te que morrerei depois do parto.

O marido não deu importância àquelas palavras. Não acreditava em pressentimentos e, além disso, sabia muito bem que as mulheres naquele estado têm ideias extravagantes e se entregam a toda espécie de maquinações. Depois, ela falava no caso todos os dias e o marido ria-se, chamando-lhe “vidente e possessa”. A proximidade da morte tornara-se, entretanto, a ideia fixa da mulher. Quando o marido não podia ouvi-la, ia para a cozinha falar da morte com uma velha criada e com a cozinheira.

Tenho pouco tempo de vida — dizia ela. — Depois do nascimento do meu filho, morrerei. Não desejaria morrer tão depressa, mas é o meu destino.

A criada e a cozinheira, como é natural, começavam a chorar. Quando a mulher do Pope ou alguma senhora das quintas vizinhas vinham visitá-la, a tal senhora chamava-as à parte e expandia-se a falar no mesmo assunto a sua próxima morte. Falava nela com um sorriso forçado e uma expressão de maldade, sem admitir que a contradissessem. Era elegante, andava sempre na moda, mas depois, por causa daquela previsão de morte próxima, renunciou a tudo e tornou-se negligente. Já não lia, nem ria, nem queria fazer projetos; além disso, foi ao cemitério, acompanhada por uma tia, e escolheu com todo cuidado lagar de sua sepultura. Cinco dias antes do parto, fez testamento. Não se esqueça que tudo isto se passava enquanto ela tinha a melhor saúde, sem indício algum de perigo ou de doença. Os partos às vezes são difíceis e, até mesmo, mortais, mas com a pessoa de quem lhe falo tudo ia bem encaminhado, não havia motivo para a menor apreensão.

Toda esta história, à força de insistência, aborreceu o marido. De uma vez, enquanto jantavam, ele perdeu a paciência e perguntou-lhe:

“— Natascha, quando é que acabas com essas tolices?

“—Não estou com tolices. Falo sério.

“—Que absurdo! Aconselho-te terminares com essas tolices, para depois não teres que te envergonhares delas.

Mas a data marcada chegou. O marido foi à cidade buscar a parteira. Era o primeiro parto; mas tudo correu o melhor possível. No fim, a parturiente quis ver o filho. Olhou para éle e disse:

“—Agora posso morrer.

Despediu-se, fechou os olhos e meia hora depois deu a alma ao Criador. Conservou a lucidez até o último momento. Como lhe tivessem dado leite em vez de água, murmurou imediatamente:

“—Por que me dão leite em vez de água?

Foi assim que as coisas se passaram. Morreu como tinha predito”.

Um minuto depois, o juiz de instrução suspirou e perguntou:

Veja se me explica de que foi que ela morreu. O que lhe contei, dou-lhe a minha palavra de honra, não é invenção; são fatos.

O médico, enquanto refletia, olhou para o céu.

Deviam ter-lhe feito uma autópsia — murmurou.

Para quê?

Para saberem a causa da morte. Essa senhora não podia ter morrido em consequência de ter previsto a morte. O que é verossímil é que se tenha envenenado.

O juiz de instrução voltou-se bruscamente para o médico e perguntou-lhe com os olhos semicerrados:

De onde conclui que se tenha envenenado?

Eu não concluo, suponho. Ela estava em boas relações com o marido?

Hum… Não de uma maneira absoluta. As desavenças começaram logo depois de se casarem. Houve um triste encandeamento de circunstâncias. Ela surpreendera um dia o marido com outra mulher… Mas perdoou-lhe a falta.

Que surgiu primeiro, a traição ou a ideia da morte?

O juiz de instrução olhou fixamente para o médico, como se quisesse adivinhar a razão daquela pergunta.

Desculpe — respondeu depois de um momento. — Deixe-me lembrar.

O juiz de instrução tirou o chapéu e passou a mão pela testa.

Sim, sim… — disse. — Começou a falar da morte justamente pouco depois desse incidente…

Então, como vê, ela tinha decidido envenenar-se nesse momento; mas como, sem dúvida alguma, não quis matar o filho que trazia consigo, adiou o envenenamento para depois do parto.

Acha possível? Não, não, não é possível! Ela perdoou-o logo…

Perdoou-o depressa demais. E fê-lo porque tinha na cabeça algum mau desígnio... As mulheres novas não perdoam tão depressa.

O juiz de instrução teve um sorriso contrafeito e, para esconder o seu bem visível embaraço, acendeu um cigarro.

Poderá ser? — murmurou. —Será possível? A ideia de uma tal possibilidade nunca me veio a cabeça... Além disso... ele não era tão culpado como parecia... Foi infiel de uma maneira singular. Mesmo até sem querer... Entrou em casa, uma noite, um pouco tocado. Quis acarinhar alguém e a mulher estava em estado interessante. Ora, aconteceu — diabos a levem! — que lhe apareceu uma senhoreca insignificante, estúpida, feia, que tinha vindo passar três dias com eles... Não se pode chamar a isso uma traição. A própria esposa julgou assim e, por isso, depressa o perdoou. Nem sequer voltaram a falar do assunto.

A gente não morre sem causas — repetiu o médico.

Naturalmente. Mas, apesar disso, não posso admitir que ela se tenha envenenado. Todavia, estranho que a ideia de uma tal morte não me viesse à cabeça. Ninguém pensou que pudesse ter sido assim. Todos ficaram surpreendidos por ter a previsão se realizado. E a ideia de uma morte dessa espécie ficou bem longo de todos nós. Não! Não é possível que ela se tenha envenenado. Não!

O juiz de instrução ficou pensativo. A ideia da extraordinária morte da mulher não o abandonou durante um momento, mesmo durante a autópsia. Enquanto escrevia o que o médico lhe ditava, cerrava sombriamente as sobrancelhas e passava a mão pela testa.

Haverá venenos que matem num quarto de hora, lentamente e sem dor? — perguntou ao médico, enquanto este abria o crânio do cadáver.

Há, sim. A morfina, por exemplo.

Hum… É extraordinário! Lembro-me de que ela tinha uma droga parecida… Mas será possível?

Na volta, o juiz de instrução, com ar fatigado, mordia nervosamente o bigode e parecia pouco disposto a falar.

Quer andar um pouco a pé? — perguntou ao médico. — Aborrece-me estar sentado.

Ao fim de uma centena de passos, o juiz de instrução, segundo pareceu ao médico, sentiu-se subitamente extenuado, como se escalasse uma grande montanha. Parou e, com os olhos esgazeados, como se estivesse embriagado, disse:

Meu Deus, se a sua suposição for verdadeira... Mas seria cruel! Desumano! Envenenar-se para punir outra pessoa? O crime era tão grave?... Ah, meu Deus! Oh, prezado doutor! Por que aventou essa ideia? O que lhe contei é a minha própria história e a de minha mulher. Oh, meu Deus! Eu fui culpado, traía... Mas será mais fácil morrer do que perdoar? É precisamente esta a lógica das mulheres! É cruel, sem piedade... Ah! Ela foi cruel a vida inteira! Agora é que me lembro... Agora vejo claro!

Enquanto falava, o juiz de instrução ora encolhia os ombros, ora punha as mãos na cabeça, ora subia para a carruagem, ora caminhava a pé. A sugestão do médico tinha-o afligido bem visivelmente, molestara-o. Sentia-se perdido, esmagado de corpo e alma e, quando chegaram à cidade, despediu-se do companheiro, recusando-se a jantar com ele, ainda que na véspera lhe tivesse prometido.


Fonte: “A Cigarra”/SP, edição de agosto de 1949.

Fizeram-se breves adaptações textuais.



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