INOCÊNCIA ULTRAJADA - Conto Clássico de Horror - Tony d'Ulmès

INOCÊNCIA ULTRAJADA

Tony d'Ulmès

(1870 – 1937)


A mochila às costas, eu excursionava pela Normandia em busca de lugares pitorescos.

Villerville, lindo recanto da embocadura do Sena, agradou-me plenamente. Aluguei, por uma quinzena, uma casinha situada em rua bordejada de vilas graciosas, ocupadas no verão e inteiramente fechadas e silentes até o presente mês de junho.

Ainda não se via um único estrangeiro, salvo uma anciã de minhas relações, Madame Morei. Tipo de mulher extraordinária, nascera com verdadeira alma de soldado. No trágico ano de 1870, assinalara-se por atos de bravura inauditos. Dizia-se, mesmo, que estrangulara um prussiano com as próprias mãos.

De caráter independente, amiga da solidão, ali fora instalar-se com a criada, em habitação isolada, na estrada de Criquebeuf.

Foi ao chegar à casa, certa manhã, que tive um encontro inesquecível.

Diante de mim, a estrada se estendia, branca, marginada de trigais verdes. Nada se remexia, nenhum sussurro ao menos se levantava no silêncio das coisas estagnadas.

De repente estalou, e tão estridente que me fez estremecer, um riso agudo e prolongado, um cascatear de notas claras, saltitantes, impetuosas. Uma torrente sonora de alegria.

Então, as hastes verdejantes se agitaram. Uma cabeça morena saiu do emaranhado vegetal, encantadora e estranha. E toda aquela aparição se resumia em risos e mais risos. Somente risos. Riso dos olhos, uns grandes olhos de azul intenso e cintilante de água irisada de luz matinal. Riso dos dentes ofuscantes de brancura na púrpura dos lábios. Logo a seguir, um corpo ágil saltou para o caminho e me deparei, então, com uma menina de doze anos, descalça, andrajosa e imunda.

De que te ris? — interroguei-a.

Ah! Não sei, meu senhor — respondeu-me. — Sempre me rio assim quando estou sozinha.

Sentando-me à beira do talude, fi-la conversar. Não era tímida, de modo algum, aquela pequena. Confiou-me, bem depressa, sua história. Os pais não passavam de vagabundos sem eira nem beira. Dormiam ao acaso dos abrigos, o mais das vezes ao relento. Alimentavam-se de moluscos colhidos nos rochedos, na maré baixa e, às vezes, com restos de comida que obtinham em alguma granja. Mas isso constituía raríssima felicidade, porque os normandos, gente prudente, desconfiavam daqueles mendigos. Agora, quanto à bebida, jamais sorviam um trago sequer. Oh, aquilo era realmente uma vida cruel! Felizmente, porém, tal estado de coisas ia ter um fim. Breve partiriam para a América, na primeira oportunidade, e lá se estabeleceriam condignamente.

Mas que oportunidade? — indaguei.

Estirando-se na relva como uma gatinha preguiçosa, a pequena ergueu para mim os olhos límpidos.

Ah! Isso não sei, meu senhor.

Perdi o interesse naquela palestra e despedi-me.

Adeusinho, menina!

E dei-lhe uma moeda de prata, na perfeita crença de jamais revê-la.


*


Mas muito me enganava.

No dia seguinte, após o almoço, fumava meu charuto no jardim, quando a cancela rangeu e vi entrar minha pequena interlocutora da véspera.

Na saia, arregaçada com ambas as mãos, trazia cuidadosamente qualquer coisa. Vermelha, excitada, ofegante, dirigiu-se para mim.

Eu não sabia onde o senhor morava — disse-me logo — e ninguém me quis informar nas redondezas. São todos uns brutos! Correm-me sempre no encalço quando me veem! Brutos!

Sua voz era estridente, os olhos congestionados de cólera, os dentes maus, prestes a morder.

Querias meu endereço? — inquiri. — Para quê?

Para trazer-lhe o meu gato — respondeu, cambiando a voz e o semblante com um sorriso nos lábios já serenos.

Largou então as pontas da saia e de seus joelhos saltou um minúsculo bichano, redondo de gordo, uma bola de algodão com a singularidade da cauda negra e das negras orelhas.

Dou-lhe de presente o gato, meu senhor, se o aceita.

Era gentil a frase, mas o tom surpreendeu-me pela dureza quase ameaçadora. Com o narizinho para o ar e os olhos esmiuçadores, examinava a fachada da vila.

É essa a sua casa? — questionou-me, em seguida.

Sim.

E é aquele o seu quarto?

Sim.

Mora sozinho?

Sozinho.

E não tem medo?

Mas a quem queres que eu tema?

Sem responder, deu alguns passos pelo jardim, admirando-o. Então notou, amarrado ao tronco de um castanheiro, uma folha de cartão, crivada de furos. Seu rostinho brejeiro exprimiu estranheza.

Que é aquilo?

Um alvo sobre o qual me exercito ao tiro de revólver.

Ah! — fez ela, num tom de vivo interesse. — Um revólver? Pode-se matar uma porção de gente com tal coisa, hein?

A carga é de seis balas… o que permite abater seis pessoas.

A pequena pareceu transtornada. Seu rosto, tão vermelho pouco antes, empalideceu intensamente. Por um minuto, mirou o quadrado de papelão, com os olhos dilatados de espanto. Depois, voltando-se para mim, sem transição, interpelou-me:

Há mais estrangeiros, além do senhor, na vizinhança? Ah, sim! Creio que uma boa senhora mora na estrada de Honfleur, não é mesmo?

Sim… Por quê?

Uma velha, muito velha?

Sim… Mas…

A casa dela é aquela pequena de janelas cinzas?

Sim…

De repente, a menina se abaixou e apanhou o gatinho que brincava num canteiro de flores. Quis detê-la.

Espere… Diga-me cá…

Em vão porque, de dois saltos, com uma agilidade de cabrito, já transpusera o cercado. Singular garota, aquela!




*


Quinze dias depois, decidi-me a partir de Villerville. Um derradeiro passeio pela redondeza me levou à estrada de Honfleur.

Tomara por uma rua ladeada de mansões e vilas, todas fechadas. Aquilo produzia uma impressão de abandono, não desse abandono religioso das moradias familiares que parecem guardar, atrás das janelas cerradas, a alma dos ausentes e que, mesmo desabitadas, nunca estão vazias. Mas do abandono tórpido e egoísta desses lazaretos da riqueza, nos quais tanta gente ociosa vem passar uma temporada voluntária. Em seguida ganhei a estrada, atravessando a campina. Logo surgiu-me à frente a morada de Madame Morei, muito modesta e de construção igual à minha. Aquelas vilas todas se parecem. A grade, da altura de um homem, abria-se para um jardinzinho cercado por uma paliçada de espinheiro densamente trançado. Dez passos além, via-se a entrada que dava para o salão, com sua pequena porta envidraçada. Fui entrando, sem detença. Ninguém. Subi ao sobrado e empurrei a porta. Madame Morei se achava sentada numa poltrona, o busto ereto, o olhar desafiante e os traços finos e enérgicos.

Aproximando-me dela, lobriguei uma coisa branca agitar-se-lhe sobre os joelhos.

É o meu gatinho — disse-me a velhinha. — Não o acha bonito ? Uma bola de algodão, rabo preto, orelhas negras.

Oh, com efeito! — exclamei. Mas parece…

Madame Morei, porém, interrompeu-me.

Foi uma pequena mendiga — explicou — que mo trouxe ontem. Uma menina muito maltratada... mas bonita. E que sorriso, o seu! Tão infantil... tão atraente! Faria fortuna no teatro!

O dia baixava rápido. Havia, agora, uma sombra triste sobre as coisas. No entanto, uma claridade persistente caía, a prumo, sabre a velhinha, iluminando-lhe os cabelos brancos e a mantilha de viva cor violeta.

A senhora devia mandar pintar seu retrato com essa mantilha — disse-lhe eu, alegremente.

No ano que vem cuidarei disso, se for ainda deste mundo.

Passou-se um silêncio de segundos. Tudo se tornava indistinto, na obscuridade crescente. Em torno de nós pairava a calma grave da campanha adormecida. Ouviu-se o relógio bater. Levantei-me.

Dez horas! Preciso retirar-me, madame Morei. Devo partir de volta amanhã, ao romper do dia.

Boa viagem, então!

Apertou-me a mão, tão vigorosamente que não pude deixar de observar-lhe, sorrindo:

Ainda está tão forte que ainda seria capaz de estrangular um homem.

Estávamos no patamar da escada. Uma criada idosa apareceu, empunhando uma luz, e guiou-me até em baixo.

Somente estas fracas folhas de madeira — perguntei à doméstica, quando saíamos do salão — protegem a porta envidraçada?

A mulher, uma autêntica normanda, mediu-me de alto a baixo, ofendida.

Fique sossegado — lançou-me, com acrimônia —, pois aqui todos são honestos!

Eu ia abrir a grade do jardim, quando uma bola branca saltou-me por entre as pernas.

Oh, o demônio do gato me seguiu!

Já do lado de fora, olhei para trás e, através do gradil, percebi a criada subindo os degraus do pórtico, com o bichano nos braços.

No dia seguinte, ao raiar da aurora, pus-me a caminho, com destino a Honfleur.

Sobre os prados e os campos, derramava-se uma luz pálida e pura, de delicioso frescor virginal. O céu mostrava-se de um azul esverdeado de turquesa desbotada e nada podia haver de mais fragrante do que saborear a nascente volúpia daquelas primeiras horas do dia.

Mal percorrera um quilômetro quando, na transparência do ar, notei três formas negras avançando para mim. Duas do mesmo talhe, andando depressa, uma ao lado da outra, e a terceira à retaguarda, como que saltitando.

O caminho era estreito. Passei por aqueles vultos, quase roçando-os.

O homem, um vagabundo de barba emaranhada, o jeito canalha, atirou-me, de passagem, um olhar de má catadura. A mulher, despenteada e cabisbaixa, embora singularmente formosa, de olhos muito meigos, agarrou o braço do companheiro, como para não cair de susto.

O gesto foi brusco. Dos andrajos do homem caiu um objeto que ele prontamente apanhou, abaixando-se. Era uma machadinha de magarefe e, enquanto a ocultava sob os farrapos, praguejando contra a mulher, atirou-me segunda mirada que me fez apertar os passos.

Ao ver-me, a terceira sombra negra, que vinha atrás, precipitou-se de um salto no matagal… Mas eu já a havia reconhecido.

Olá, pequena! Por que te escondes? — gritei-lhe.

Ela passou a cabeça por entre as hastes, reconheceu-me logo e pareceu tranquilizar-se.

Bom dia, meu senhor! — clarinou-me.

Apontei-lhe os vagabundos que se afastavam em passadas rápidas.

São seus pais?

Sim, senhor. Vamos ao Havre tomar o navio para a América.

É muito longe! E estás contente!

Soltou um grito de alegria.

Se estou!

Então chegou a tal oportunidade?

Sem responder, ela se pôs a rir. Assim me aparecera pela primeira vez, com seu riso desatado, no meio da vegetação. Não sei, porém, se a imagem do homem barbudo se interpunha entre mim e aquele riso. O certo é que não me pareceu o mesmo riso franco de alegria, mas uma careta ocasional esculpida sabre a máscara da face, sem ideia nem sentido. Um riso tolo, imóvel e perverso.

Pulando para a estrada, a menina deitou a correr e logo avistei-a como um simples ponto negro, prestes a desaparecer na distância.

Continuei o meu caminho. Já se delineavam as primeiras casas de Criquebeuf, de janelas fechadas. Ah! Lá estava a habitação de Madame Morei. Sem dúvida, minha amiga ainda dormia àquela hora matinal. Eu ia passar além, quando certa coisa insólita me chamou a atenção. Por terra, jaziam ramos arrancados. Ergui os olhos. Vários esteios da paliçada haviam sido rompidos e a relva mostrava-se acamada, mutilada, como calcada aos pés.

Terrível suspeita aflorou-me ao espírito. De um pulo, galguei a cerca, atravessei o jardinzinho e me achei no pórtico. Ambos os batentes da porta se escancaravam. Talvez fosse esquecimento... Mas não. A vidraça estava feita em estilhaços. Meu Deus! Um arrombamento! Um assalto! E se ainda fosse tempo de acorrer? Num segundo, subi a escada. Sabre o patamar, deparei um pedaço de tecido violeta. Reconheci a mantilha que Madame Morei usava na véspera e, ao apanhá-la, dela pingaram gotas rubras... sangue!

Então, como louco, precipitei-me no quarto da boa velhinha. Ah! O horrível, o inolvidável espetáculo! Os móveis desarrumados, os lençóis arrancados da cama e, por terra, numa poça de sangue, a pobre mulher jazia estirada, amordaçada, as faces convulsas, a cabeça quase decepada do tronco e (detalhe atroz!) uma das mãos cortadas rente ao punho.

Por que a criada não a acudira? Rápido como o raio, cheguei ao sótão.

Na cama estreita, a idosa serviçal dormia de costas. Chamei-a.

Maria!

Não despertou. Dormia lívida, com os olhos vidrados, a boca aberta, o pescoço sulcado por uma linha azulada. Fora estrangulada. Ia afastar-me, quando, de repente, notei as cobertas se remexerem. Um sobressalto atirou-me para trás. Não era nada. O gatinho branco que se estirava preguiçosamente. Nada mais. Aquile pequeno felino! O velho pretexto inocente para alguém se introduzir nas casas, estudar a disposição dos aposentos, preparar o assalto! O bichano que, a princípio, me fora oferecido!


*


Corri a prevenir a justiça. Era, desde muito, o primeiro assassínio que se verificava na comuna. A indignação popular atingiu ao auge. Tenho de reconhecer que, contrariamente ao que se poderia esperar de gente simples em tais circunstâncias, ninguém perdeu a cabeça e todas as medidas foram tomadas adequadamente. Naquele mesmo dia, poucas horas após minha denúncia, os fugitivos criminosos foram presos numa tasca sórdida do Havre, onde aguardavam a partida de um vapor para a América.

Não procuraram negar coisa alguma. Ademais, ainda traziam consigo as joias e os valores de Madame Morel.

Nesta história tão tristemente banal, um único ponto me excitava a curiosidade. Que papel havia representado aquela menina, aquela sinistra criança que, poucos momentos depois da horrível chacina, ainda podia rir, com seu inapagável riso de tanta graça irresistível e tão desconsertante franqueza?

Estaria ela presente à tragédia infame? Vira tudo? Ou a ignorava, por acaso?

Logo, porém, me esclareci a respeito. Três dias após o crime, intimaram-me para depor no inquérito perante o juiz de instrução de Pont-l’Evèque. A localidade fica muito perto de Villerville. E o trem lá me deixou prontamente. Um testemunho é coisa bem grave e não foi, confesso-o sinceramente, sem inquietação que subi a pequena escada levando ao gabinete do magistrado. O meirinho, que me precedia, abriu-me a porta. Entrei.

Numa grande sala sombria, poeirenta e sem decorações, o juiz sentava-se ao estrado. À sua frente, com as costas voltadas para a porta, uma menina esfarrapada gesticulava violentamente, inflamada, elevando a própria voz ao mais agudo diapasão.

O juiz, com um sinal, indicou-me uma cadeira. A pequena, sem ver-me, continuava sua gritaria fina e veemente:

Papai me disse — esganiçava —: “Vamos fazer a coisa. Tu, filhinha, nos mostrarás o caminho e o resto fica por minha conta!”. Então Mamãe perguntou-lhe: “Mas com quê?”. E ele respondeu: “Com a machadinha. Claro que a cabeça da velhota não pode ser mais dura do que madeira!”. Quando veio a noite, penetramos silenciosamente, no jardim, arrombamos a porta e eis-nos já na escada. Pé ante pé, introduzimo-nos no quarto de dormir… Com o barulho, a velha abriu os olhos e pôs-se a gritar: “Socorro! Assassinos! Assassinos!”. Aí, para fazê-la calar-se, papai apertou-lhe a boca com um pedaço de pano. Ela não mais gritou, mas se debateu como o diabo, agarrando-se ao papai com as mãos grandes e fortes. “Ah! Não queres ficar quieta?”, rugiu papai que, pegando a machadinha, de um só golpe, decepou-lhe o pulso. A mão amputada caiu sobre os lençóis, que se mancharam de sangue.

A garota interrompeu-se e, com o instinto de cabotina que se vê escutada, voltou-se para mim.

Olhem só! — exclamou então. — O moço lá da estrada!

Sim, menina! E mais que isso, sou a pessoa que, por milagre, não viste matar!

Ela teve um delicioso riso de ingenuidade.

Oh, não! — protestou. — Ao senhor, eu não teria olhado!

Um raio de Sol iluminava de cheio seu lindo semblante descurado, seus olhos de azul d’água atravessada pela luz, os dentes cintilando na púrpura dos lábios.

Como pudeste — perguntei-lhe — deixar que matassem aquela pobre senhora?

O açougueiro mata os bois — respondeu com a maior tranquilidade deste mundo — e nós matamos a velha. Não tínhamos dinheiro nem para comer. Agora mamãe vai comprar-me um lindo vestido e seremos todos felizes!

E, de repente, estourou a rir. Com aquele mesmo riso desenfreado, bonito, cristalino, angélico e diabólico que nunca mais me saiu dos ouvidos.


Fonte: Policial em Revista/RJ, edição de maio de 1954.

Fizeram-se breves adaptações textuais.



 


Comentários

  1. Reli de novo o conto, este autor ou autora (pseudônimo, será?) é muito bom!

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    1. Tony d'Ulmès é pseudônimo da escritora francesa Berthe Rey. Infelizmente, quase que completamente esquecida nos nossos dias.

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    2. procurei mais contos dela, não achei, mas vou procurar em outros idiomas. Ela é muito boa contista!

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