O MILAGRE - Narrativa Clássica Sobrenatural - Victor Rendon

O MILAGRE

Victor Rendon

(1859 – 1940)

Tradução de autor anônimo do início do séc. XX



Eu tinha então doze anos e, órfão desde a primeira idade, vivia com minha avó em sua velha casa senhorial, enorme e triste, mas que parecia deliciosa por isso que eu era ali o senhor absoluto e incontestado.

A boa velhinha, que me criara com enternecido amor, era tão meiga, tão carinhosa, até nos r alhos, que acabara por me inspirar ver dadeira adoração. A tal ponto que, nessa idade sempre irrequieta e turbulenta, eu me sujeitava… digo mais — sentia verdadeiro prazer em passar horas inteiras a seu lado, no sossego de sua sala de costura, distraindo-me com livros de gravuras enquanto ela se entregava a sua diversão favorita: a confecção de flores artificiais para os altares da igreja matriz.

É verdade que, às vezes, a pretexto de ajudá-la, eu misturava desastradamente suas tintas, seus arames, seus pedaços de papel e cetim de variadas cores… Porém, ela tolerava tudo isso com tão serena paciência que seu rosto não se alterava mais do que os das imagens alinhadas sobre uma cômoda próxima, que lhe servia de oratório.

Havia ali, cercados de lamparinas e castiçais aparatosos, S. Luiz Gonzaga, com uma disciplina pendente do cinto, em contemplação diante de uma caveira; S. Jacinto, salvando a imagem da Virgem de um incêndio; Santa Bárbara, a quem um horrendo verdugo cortava a cabeça no alto de uma montanha; Nossa Senhora das Mercês, entregando o escapulário aos fundadores de sua Ordem; Santa Rosa de Lima, e — no lugar de honra, sobre um pedestal — uma imagem de madeira do seráfico Santo Antônio de Pádua, levando nos braços o Menino Deus.

Era esse o santo que despertava em meu espírito mais admiração, porque minha avozinha me ensinara a venerá-lo particularmente, invocando-o a cada instante e afirmando-me que nunca o fizera em vão. Especialmente quando se tratava de buscar um objeto perdido, minha avó me referia tantos casos de sua intervenção miraculosa que me incutira a mais absoluta fé em seu poder. Uma vez, no dia de meu aniversário, deram-me uma libra esterlina, uma linda moedinha de ouro, que brilhava e tilintava com som delicioso. Essa moeda era o meu tesouro e sua posse me orgulhava tanto que eu a trazia constantemente num bolso e não me cansava de admirá-la na palma da mão.

Uma noite, estava eu embebido nessa distração, à janela do meu quarto, e a um movimento impensado a moeda escapou-me e caiu no pátio, um grande pátio quadrado, calçado com lages enormes e atapetado com musgo irregular.

Desci aos saltos e, à luz das estrelas, procurei a libra ansiosamente, palpando pedra por pedra e enterrando os dedos no musgo. Tempo perdido: a moeda não aparecia. Eu nem fósforos tinha e não queria pedi-los para que o fato não chegasse ao conhecimento de minha avó, que já várias vezes ralhara por andar eu com a moeda a toda a hora.

Então, no meio de meu desconsolo, surgiu em meu cérebro uma ideia luminosa. Um milagre! Só um milagre poderia restituir-me o precioso bem que perdera tão estupidamente.

Introduzi-me sorrateiramente na sala de costura, então deserta, apanhei a imagem do santo e, com ela apertada contra o peito, voltei à janela, onde me ocorrera a dolorosa perda. Ali, murmurei fervorosamente uma oração e, sem hesitar, atirei a imagem ao pátio para que procurasse a moeda de ouro.

Imediatamente, no lugar em que a imagem caíra, vi um fulgor bem conhecido. Imediatamente, compreendi a irreverência do gesto e, convencido de que cometera um sacrilégio, precipitei me novamente para o pátio. Com o coração palpitante de remorso, curvei-me para as lages sombrias e ergui a imagem. Sob ela vi um fulgor que bem conhecia…

Ria-se quem quiser. Causalidade? Coincidência? Milagre. Ali estava minha preciosa libra, tacitamente ali, no lugar em que a imagem caíra.

Bendita idade aquela em que a fé, sincera, pura, absoluta, pode levar um coração inocente a cometer tamanha barbaridade! Deus compreende e perdoa os excessos de uma alma de criança. O bondoso Santo perdoou-me, restituiu-me a moeda e ainda fez mais: livrou-me de todas as consequências de minha torpeza.

Quando, cheio de arrependimento, beijava a imagem, descobri que ela sofrera rudemente com a queda: tinha um dos pés reduzido a farelo. Imaginem o susto com que eu a repus sobre o pedestal no oratório e o susto com que, no dia seguinte, aguardei as observações de minha avó.

Mas a boa velhinha, ao descobrir o desastre, murmurou apenas com os braços erguidos em indignação:

Malditos ratos! Nem os santos respeitam.


Fonte: Eu Sei Tudo, edição de julho de 1920.


 

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