O DEMÔNIO NA GARRAFA - Conto Clássico Sobrenatural - Robert Louis Stevenson

O DEMÔNIO NA GARRAFA

Robert Louis Stevenson

(1850 – 1894)

Tradução de autor anônimo do séc. XX.


Era uma vez um homem, natural da ilha do Havaí, a quem chamarei de Keawe. Vive ainda e, por isso, devo calar seu verdadeiro nome. Mas o lugar de seu nascimento fica próximo a Honaunau, onde jaz enterrado, no fundo de uma gruta, o esqueleto de Keawe, o grande.

Esse indivíduo era pobre, honrado e diligente. Sabia ler e escrever tão desembaraçado quanto um mestre-escola. Reputava-se, também, marinheiro de primeira ordem, pois servira durante vários anos como timoneiro, a bordo de uma embarcação das ilhas, além de piloto de um baleeiro, nas costas de Hamakua. Finalmente, viera-lhe a ideia de correr o vasto mundo e suas incontáveis ilhas desconhecidas. Para esse fim, tomou um navio, rumo a São Francisco da Califórnia que, por essa ocasião, era já uma grande e formosa cidade, dentro de admirável baía, e habitada por muita gente rica, cujos palacetes suntuosos cobriam toda uma colina.

Passeava, um dia, Keawe pela referida colina, tendo os bolsos pesados de moedas e contemplando pessoalmente as magníficas residências erguidas de ambos os lados do caminho.

Que lindas casas — refletia — e como devem ser felizes seus moradores, sem se preocupar com o dia de amanhã!

Assediava-o tal ideia ao chegar junto de uma habitação muito menor que as demais, mas adornada como uma joia. As escadarias que a ela davam acesso brilhavam como prata maciça: os relevos das platibandas estendiam-se como grinaldas e as vidraças cristalinas refulgiam ao Sol como diamantes.

Keawe se deteve para melhor admirar o encantador edifício. No mesmo instante, porém, se deu conta de que, através de uma das janelas, um homem o admirava. Era tão claro o vidro que o visitante lhe distinguia nitidamente os traços como a um peixe no aquário.

Tratava-se de um indivíduo, nem jovem nem velho, calvo, e sua fronte carregava-se, em ar preocupado, enquanto suspiros amargos se lhe desprendiam dos lábios.

A verdade era que naquela mútua contemplação, Keawe e o desconhecido se invejavam reciprocamente.

De repente, o homem sorriu, movendo a cabeça, fez sinal ao de fora para que entrasse e desceu a recebê-lo à porta.

Minha morada é bonita, realmente — disse, em meio de novos suspiros. —Gostaria de visitá-la por dentro?

E conduziu-o através de uma série de aposentos, desde a adega ao sótão, e Keawe, assombrado, teve de se convencer de que não se via um único detalhe destoante em todo aquele conjunto perfeito no gênero.

Realmente — proferiu o homem —, o senhor possui uma casa ideal, e, fosse minha, eu viveria a cantar de felicidade o dia inteiro. Por que então tanto suspira, desse modo?

Mas nada o impede de também ser dono de igual mansão, e mesmo ainda muito mais luxuosa — respondeu-lhe o desconhecido. — O senhor tem dinheiro?

Trago aqui cinquenta dólares — esclareceu Keawe —, mas uma casa como esta vale muito mais, inegavelmente!

Lamento que só disponha dessa quantia, pois talvez lhe traga isso alguma séria atribulação, mais tarde… De qualquer maneira, vendo-lha pelos cinquenta dólares…

Quê? Esta casa?

Não, amigo. A casa não, mas a garrafa… Embora eu lhe pareça rico e venturoso, devo confessar-lhe que toda a minha fortuna — inclusive este palacete e os jardins —, provém de uma garrafa, pouco maior que um quarto de litro.

Abriu uma arca de guardados, da qual sacou uma botelha bojuda de vidro branco como leite, com reflexos cambiantes de arco-íris. No interior desta, agitava-se algo confuso como a sombra de uma chama.

Ei-la — disse o anfitrião.

E como Keawe se pusesse a rir, ajuntou:

Não me acredita? Então experimente quebrá-la com as próprias mãos.

O visitante tomou a garrafa e, com toda a força, atirou-a contra o solo. O objeto, porém, saltou, de pronto, como uma bola de borracha, sem o menor dano à sua aparentemente frágil estrutura.

Coisa estranha — reconheceu Keawe. — Não obstante, ao tato, parece de vidro!

E o é seguramente, mas o vidro desta garrafa foi recozido nas chamas do Inferno. Em seu interior, acha-se um demônio... Essa espécie de sombra que vemos mover-se, ou, pelo menos, disso temos a impressão. O infernal prisioneiro está a serviço de quem, no momento, possuir o mágico recipiente, proporcionando-lhe a satisfação de todos os seus desejos: amor, glória, dinheiro... Não somente casas como esta e, sim, até uma cidade como São Francisco. O dono da botelha só tem de falar para obter imediatamente o que quiser. Napoleão a possuiu e, graças a ela, chegou a imperador do mundo, mas acabou vendendo-a e perdeu, assim, todas as grandezas e o poderio por seu intermédio adquiridos. Também o Capitão Cook a deteve, por sua vez, e conseguiu, então, descobrir tantas terras inexploradas. Desfez-se, contudo, da prodigiosa garrafa e encontrou a morte trágica na ilha do Havaí. Pois, desde o dia em que uma pessoa a passe a outras mãos, perde, incontinênti, sua proteção... E as desgraças desabam sobre o antigo dono, a menos que este já esteja satisfeito com o que possui.

E, apesar disso, o senhor ainda me fala em vendê-la? — objetou Keawe.

Já tenho tudo o que desejava e, além disso, estou bem envelhecido — replicou o outro. — O diabo é impotente para prolongar a vida. Entretanto, não lhe ocultarei que esta garrafa apresenta também seus inconvenientes. Por exemplo, se seu possuidor morrer antes de vendê-la, ficará condenado eternamente ao fogo do Inferno.

Claro que é um inconveniente dos mais sérios! — exclamou o visitante. —E prefiro não me envolver numa aventura dessa espécie. Gracas a Deus, posso facilmente passar sem tão bela vivenda e acho muito melhor não arriscar à perdição a mínima parcela de minha alma.

Mas como se desanima facilmente! — retornou o estranho homem. — É só usar, com moderação, o poder do diabo e depois revender a garrafa a outrem, como o faço agora, a fim de terminar tranquilamente os dias de vida.

Caracóis! Duas coisas me assombram — observou Keawe. — A primeira é que o senhor não para de suspirar como menina apaixonada e a segunda… que me venda essa maravilha tão barata.

Já expliquei porque suspiro. Preocupa-me atrozmente a minha saúde… Além do quê, como você mesmo disse, a perspectiva de assar-me às labaredas do Inferno nada tem de regozijante. E quanto à barateza referida, existe uma particularidade, a propósito dessa garrafa. Há muitíssimo tempo, quando o diabo a pôs em circulação, custava ela extremamente caro e Alexandre, o Grande, a comprou por vários milhões de sestércios. Contudo, não se pode revendê-la senão com prejuízo. Se se estabelecer o mesmo preço na compra anterior, a garrafa mágica voltará ao poder do vendedor, tão rápida e seguramente como a pomba ao pombal. Disso decorre que seu valor não tem feito outra coisa, há séculos, do que baixar sempre, orçando-se, hoje em dia, em quase nada. Adquiri-a de um de meus mais ricos vizinhos desta colina, pagando-lhe pelo curioso objeto apenas noventa dólares. Assim, era-me livre cedê-la até por oitenta e nove dólares e noventa e nove cêntimos, nem um cêntimo além, que a faria me volver às mãos, logo após a transação. Há, entretanto, duas circunstâncias desagradáveis. As pessoas, a princípio, nos riem na cara ao lhes oferecermos coisa tão prodigiosa por semelhante ninharia. E depois… Bem. Mas isso não tem pressa, além de ser perfeitamente inútil tocar nesse assunto. De todo modo, lembre-se de que única e exclusivamente por dinheiro se pode negociá-la. Em boa moeda sonante e corrente.

E como espera o senhor que eu tome por verdadeiro tudo o que me acaba de dizer? — perguntou o visitante.

Pode tirar a prova imediatamente — replicou o homem. — Dê-me cinquenta dólares… e tome a garrafa! Em seguida, formule o desejo de que seus cinquenta dólares lhe voltem às mãos. Se tal não se cumprir, de pronto, dou-lhe minha palavra de que lhe devolverei a importância, no mesmo instante!

Não procura me enganar? — indagou Keawe, hesitante.

O dono da casa jurou que não.

Pois bem — disse o havaiano para consigo mesmo. — Nada me custa arriscar, pois nada perderei no negócio.

E estendeu o dinheiro ao outro, recebendo em troca a singular vasilha de vidro leitoso.

Diabo engarrafado — proferiu, emocionado —, desejo ter o dinheiro de novo no bolso!

Apenas pronunciara essas palavras, sentiu o próprio bolso tão pesado como dantes.

E agora, bom moço — lançou-lhe o vendedor, exultante —, muito bom dia e que o diabo o acompanhe!

Não se faça de tolo — protestou Keawe. — Chega de brincadeira! Fique com sua garrafa!

Você a comprou mais barato que me custou — respondeu-lhe o outro — e agora lhe pertence em definitivo. De minha parte, só me interessa vê-lo pelas costas, levando-a!

E, dito isso, chamou os criados e os e ordenou que pusessem o pobre Keawe para fora.

Quando o comprador se achou na rua, com a fatídica botelha debaixo do braço, pôs-se a refletir.

Apesar de tudo o que ele me contou a respeito dessa garrafa — disse com seus botões —, pode ser que, afinal, eu não tenha feito assim tão má compra… A menos que tudo não passe de grossa peta daquele sujeito.

Resolveu, primeiro, verificar o dinheiro. A conta estava certa… Quarenta e nove dólares e uma moeda chilena.

De qualquer modo, a coisa tem todos os visos de verdade — murmurou em seguida. — Passemos a outras cogitações.

As ruas daquela parte da povoação se mostravam limpas como o convés de um navio e, embora fosse cerca do meio dia, não se via um só transeunte.

Keawe abandonou a garrafa à beira do meio-fio, em plena sarjeta, e afastou-se depressa. Por duas vezes, voltou a cabeça para mirá-la. O recipiente permanecia, no mesmo lugar, leitosa e bojuda. Na terceira olhadela, dobrou rápido a esquina, metendo-se furtivamente por uma rua transversal.

Ainda não percorrera dez metros, quando lhe pareceu sentir algo, tocando-lhe o cotovelo… Era o gargalo da garrafa mágica, cujo ventre rotundo repousava confortavelmente instalado no bolso de seu gibão.

Decididamente, não há negar a veracidade dessa história — repetiu-se o homem, algo atônito.

Seu primeiro cuidado, a seguir, foi comprar um saca-rolhas na primeira loja e dirigir-se a um terreno deserto. Ali, tentou destampar a vasilha. Mas tantas vezes mergulhava na rolha a espiral de aço, quantas a ferramenta retrocedia, escapando-se e deixando o frasco intacto.

Ao alcançar o porto, encontrou uma loja, onde se vendiam conchas e algas marinhas petrificadas das ilhas selvagens, velhas divindades pagãs, moedas antigas, sedas da China e do Japão, enfim, toda classe de coisas que os marinheiros carregam em seus baús. Teve, então, uma ideia.

Entrou no estabelecimento comercial e ofereceu a garrafa por cem dólares. O comerciante, a princípio, riu-lhe nas bochechas e, depois, prontificou-se a pagar cinco dólares pela mesma. Dando-se, porém, conta da curiosidade do objeto — cujo vidro não parecia obra do fabrico humano, tão estranhamente brilhavam os reflexos coloridos em sua brancura de leite e cuja sombra singular, no interior, lhe ajuntava um caráter sobrenatural —, mudou subitamente de pensar. Assim, depois de regatear, durante certo tempo, conforme o costume da profissão, o barganhista acabou comprando com o preço de sessenta dólares pela botelha.

Ora, pois — pensou o havaiano —, vendi por sessenta o que comprei por cinquenta, e mesmo um pouco menos, devido à moeda chilena… Não tardarei, portanto, a saber a verdade acerca desse ponto.

Voltou diretamente para bordo do navio, e, ao abrir o baú, lá o esperava a garrafa sinistra. Andara mais depressa do que ele.

Havia, no barco, um marinheiro chamado Lopaka.

Que há com você? — perguntou-lhe o homem —, que está assim a mirar o baú, com olhos de peixe frito?

Achavam-se a sós, no alojamento da tripulação. Assim, Keawe, depois de obter do outro o juramento de guardar o segredo, contou-lhe toda a história.

Você tem aí algo de extraordinário — disse-lhe Lopaka, afinal — e muito receio que essa garrafa lhe traga sérios dissabores. Mas desde que lhe não pode evitar os inconvenientes, seria talvez melhor aproveitar-lhe as vantagens. Formule um desejo e ordene ao diabo que o realize. Se ele obedecer, comprarei a vasilha mágica. Você já sabe que sempre sonhei possuir um bergantim1 para explorar o comércio das ilhas.

Nossos gostos não coincidem! — exclamou Keawe. — Quanto a mim, a grande ambição de minha vida é possuir uma linda casa, com jardim, janelas envidraçadas, quadros nas paredes, rica baixela sobre os aparadores e custosos tapetes pelo assoalho. Uma residência exatamente igual àquela onde estive hoje, de dois pavimentos apenas, mas com varandas, circulando todas as fachadas, como o palácio real. Eu queria viver em tal morada, sem espécie alguma de preocupação, comendo e bebendo opiparamente com os amigos.

Com mil raios! — exultou Lopaka. — Retornemos ao Havaí e, se tudo se passar conforme espero, comprarei a garrafa, como já prometi, e pedirei ao demo o bergantim!

O navio não demorou em voltar a Honolulu, levando, a bordo Keawe, Lopaka e a garrafa. Mal pisaram o cais, esbarraram com um amigo, que se apressou em apresentar pêsames a Keawe.

Não sei o motivo de suas condolências — interrompeu o indicado.

Será possível que ainda o ignore? — assombrou-se o amigo. — Seu tio, aquele honrado ancião, faleceu e seu primo, rapazinho forte e bonitão, afogou-se no mar!

O recém-chegado, profundamente atingido pela terrível notícia, rompeu em pranto e lamentações, sem mais se lembrar da botelha enfeitiçada. Mas Lopaka raciocinava e, quando se mitigou um pouco a mágoa do companheiro, disse-lhe:

Seu tio não possuía terras no Havaí, no distrito de Kaú?

Não — respondeu-lhe o outro. — Em Kaú, não, mas do lado oposto da montanha, mais ao sul de Hookena.

Agora, esses terrenos lhe caberão, portanto, em herança?

Sim, infelizmente — concordou Keawe, voltando a prantear a morte dos parentes.

Ora! — reprovou Lopaka. ֫— Deixe de lamúrias, por enquanto. Ocorreu-me uma ideia. E se tudo isso for obra da garrafa? Porque, então, você já tem magnífico terreno para a casa tão desejada.

Se assim é — proferiu o homem, entre soluços —, acho curiosa a maneira de servir-me, sacrificando-me os entes queridos. Mas… quem sabe se você não diz certo? Pois foi precisamente nesse sítio em que pensei, quando vi a morada de meus sonhos.

Contudo, a casa ainda não está construída — ponderou o marinheiro.

Nem o estará tão cedo — retrucou Keawe —, pois se meu tio possuía alguma plantação, pequenos cafezais e poucas árvores de fruta-pão, isso não me renderá as grandes somas necessárias.

Vamos verificar no tabelião — propôs o outro —, que algo me põe a pulga atrás da orelha.

Com efeito, o notário informou ao herdeiro que o tio chegara, nos últimos tempos, a amontoar monstruosa riqueza e lhe deixara fabulosa soma em dinheiro.

Agora já tem aí mais do que precisa para edificar a mansão — declarou Lopaka.

Se o senhor alimenta tal intenção — interveio o tabelião —, aqui está o endereço de um novo arquiteto de quem muito me gabaram o talento.

Cada vez melhor! — aprovou o marinheiro. — As coisas arranjam-se por si mesmas! Sigamos, pois, as determinações da garrafa!

Foram à casa do arquiteto que tinha, sobre a mesa, algumas plantas estendidas.

O senhor não quer coisa vulgar não é isso? — indagou o construtor. — Que lhe parece esta planta?

E apontou para um desenho.

Ao lançar os olhos ao projeto, Keawe lançou um grito de surpresa… Ali estava, fielmente reproduzida, a casa de seus sonhos!

Esta me convém muitíssimo — refletiu, refletiu —, embora não me agrade a maneira de obtê-la. Enfim, devo aproveitar as vantagens do diabólico objeto, uma vez que tenho de arcar com os inconvenientes.

Explicou, pois, ao arquiteto tudo o que desejava, como queria a casa mobilada, os quadros que preferia nas paredes, as alfaias escolhidas e finalmente inquiriu, com decisão, do preço que teria a pagar por tudo.

O homem fez-lhe várias sugestões, tomou notas e estabeleceu um orçamento. Ao terminar, indicou uma importância coincidindo perfeitamente com o montante da herança recente de Keawe.

Não resta a menor dúvida — pensou este — que estou fatalmente destinado a possuir essa casa, quer queira, quer não. Tê-la-ei, pois.

Chegou a um acordo com o arquiteto e firmou os documentos legais.

Depois, ele e Lopaka embarcaram, rumo à Austrália. A travessia foi excelente, mas todo o tempo tomou o nosso herói o máximo cuidado com a língua, por haver jurado não mais aceitar favores do Diabo, evitando manifestar o mais insignificante desejo.

Quando regressaram, os prazos haviam expirado e a casa já se achava pronta. Tomaram ambos o navio Hall, com destino a Bana, a fim de visitar a nova residência e verificar se o construtor executara, com fidelidade, as determinações dadas.

Erguia-se a mansão na encosta da montanha, visível desde o mar. Acima, os bosques se estendiam, verdejantes, para as nuvens de chuva e, embaixo, a lava negra se detinha no flanco abrupto, cujas grutas serviam de sepultura aos reis nos tempos de outrora.

Keawe não sabia o local a escolher, na maravilhosa vivenda: se o pórtico traseiro, onde se recebia a brisa de terra e se descortinava os hortos e jardins, ou o balcão da fachada principal, batido pelo sadio vento do mar, e de onde a vista se perdia na parte baixa da costa e se poderia ver passar o Hall, uma vez por semana.

Depois de tudo minuciosamente visitado, os dois homens sentaram-se sob o pórtico dos fundos.

Bem — começou o marinheiro. —Tudo está conforme você queria?

Não me é possível exprimir com palavras até que ponto estou encantado — respondeu-lhe o outro. — É ainda melhor do que sonhei e sinto-me louco de alegria.

Falta certificar-se de uma coisa — opinou Lopaka. — Talvez tudo isso se haja realizado naturalmente e que o demônio da garrafa em nada tenha interferido. Dei-lhe a minha palavra, mas imagino que não me negará mais uma prova. Pois, se eu comprasse a vasilha, sem obter desta o bergantim, haveria de expor-me, inutilmente, a graves perigos!

Jurei não mais pedir favores ao diabo — replicou Keawe. — Ele já me comprometeu demais.

Não quero que você lhe peça nenhum favor — insistiu o amigo. — Trata-se apenas de vê-lo em pessoa! Isso não implica a exigência de vantagem alguma, além de sua simples aparição. Portanto, não há de que se acanhar. Vamos! Você bem pode fazer isso por mim! Depois lhe comprarei a garrafa. Tenho já o dinheiro aqui na mão.

Está bem — consentiu o outro. — Eu mesmo me sinto curioso de contemplar o demônio. Olá, Sr. Diabo! Mostre-nos a sua cara!

Mal pronunciou essas palavras, o anjo infernal saiu da garrafa e a ela de novo se recolheu com a rapidez de uma lagartixa.

Lopaka não mais hesitou: empurrou o dinheiro na palma do companheiro e apoderou-se da botelha satânica.

Sou homem de palavra — proferiu. — Não fosse, entretanto, o desejo louco de possuir o barco, não a tocaria nem com a ponta do pé! Enfim, terei o bergantim, ganharei muitos dólares e depois me livrarei do diabo o mais depressa possível.

Lopaka — declarou o vendedor —, não me julgue mal pelo que lhe vou dizer. Sei que, de noite, os caminhos são maus e a travessia dos campos se torna perigosa a estas horas. Mas, depois de ver a cara do demônio, não poderei comer, nem dormir, nem mesmo rezar, enquanto essa garrafa não se achar longe de mim. Vou dar-lhe uma lanterna, um cesto para levá-la e, de presente, o quadro que mais lhe agrade nesta casa, contanto que vá dormir, em Hookena, na casa de Nalna.

Keawe — respondeu-lhe o interpelado —, muita gente, em meu lugar, levaria a mal semelhante proposta. Sobretudo depois que lha fiz a lealdade amistosa de manter a minha palavra na compra desse objeto danado. De minha parte, estou também tão aterrorizado que não tenho, sequer, a coragem de repelir a afronta. Vou-me, pois, embora daqui e peço a Deus que o faça feliz nesta casa, bem como me dê boa sorte com o bergantim, a fim de que nos tornemos a encontrar no Paraíso, safos, afinal, do diabo e da sua perigosa botelha.

O marujo desceu, então, a montanha, permanecendo Keawe no balcão da fachada principal, a escutar o tropel, gradativamente amortecido, dos cascos do cavalo e a mirar o brilho piscante da lanterna ao longo do caminho.

Em seguida, juntou as mãos e, rezando pelo amigo, deu muitas graças aos céus por se ver livre, afinal, de tão arriscada companhia.

A alvorada seguinte foi mais radiosa e tão agradável lhe pareceu sua nova casa que chegou a esquecer os terrores da véspera.

Sucederam-se os dias e Keawe vivia em permanente alegria. Tinha, por sítio favorito, o pórtico traseiro da habitação. Ali se fazia servir as refeições e ficava, horas esquecidas, a ler as obras históricas de Honolulu. Toda vez, entretanto, que passava alguém, ele o convidava a visitar a casa e admirar seus belos quadros.

A fama da mansão cresceu e se foi estendendo por toda a região de Bana. Chamavam-lhe Ka Hale Nui (a casa grande) e, algumas vezes, também de “a casa brilhante”, pois nosso felizardo tomara a seu serviço um criado chinês que passava todo o tempo espanando o pó e brunindo o edifício inteiro, de sorte que as vidraças, os dourados, os quadros e até os assoalhos espelhavam como miríades de estrelas.

O próprio Keawe não podia atravessar-lhe as dependências sem instintivamente se pôr a cantar. E quando bordejavam embarcações, em frente da vivenda, não deixava de saudá-las, fazendo tremular a seu pavilhão heráldico no mastro de honra do palacete.

Meses mais tarde, no entanto, foi rever alguns amigos que possuía em Kallua. Estes o receberam magnificamente, mas no dia seguinte, de manhã, bem cedo, tomou o caminho de volta, apertando o passo, impaciente por contemplar, de novo, a formosa morada.

Acabava de deixar para trás Honaunau, quando avistou uma mulher que saía das águas mansas de uma enseada, após o banho. Ao cruzar com ela, viu que acabara de vestir-se e, vinda da areia da praia, ganhava a estrada. Afastou-se rapidamente para o lado, a fim de deixá-lo passar, e, com seu holoku2 encarnado, a tez refrescada pela ablução e os enormes olhos cintilantes, pareceu-lhe encantadora realmente. Por isso Keawe puxou as rédeas, detendo a montada.

Creio conhecer todo mundo nesta região — disse. — Como é que jamais a vi?

Sou Kokua, filha de Kiano e cheguei há poucos dias de Oahu. E o senhor, quem é?

Breve lhe direi o meu nome — declarou o interrogado, saltando da sela. — Agora, não, porque me ocorreu uma ideia. Se você soubesse quem eu sou, talvez não me respondesse francamente as perguntas. Diga-me, primeiro: é casada?

Ao ouvir a indagação, Kohua se pôs a rir.

Que pergunta! E você é casado?

Claro que não, Kohua, e até este momento, jamais tinha pensado em matrimônio. Mas agora, vendo esses seus olhos, que são duas verdadeiras estrelas, meu coração se me escapou para você, como um pássaro. Se me acolher favoravelmente, irei pedir a seu pai hospitalidade por esta noite e, amanhã de manhã, eu lhe falarei.

A moça nada replicou, limitando-se a voltar o rosto para o mar, sorrindo.

Kokua — retomou o cavaleiro —, posto que você nada diz, aceito o seu silêncio como resposta favorável. Conduza-me à casa de seu pai!

Ela o precedeu, sempre sem articular palavra, apenas se voltando de quando em vez para olhá-lo, com a barbela do vasto chapéu de palha presa aos dentes muito brancos. Ao chegarem diante da porta de Kiano, este cumprimentou Keawe pelo nome e a jovem estremeceu. A reputação da “Casa Grande” lhe chegara aos ouvidos e, seguramente, a tentação era muito forte. Durante toda aquela noite, conversaram os três animadamente. A moça se mostrou desembaraçada e não se privou de gracejar repetidamente com o visitante, pois era dotada de viva inteligência.

No dia seguinte, depois de falar à parte com Kiano, ele encontrou a linda jovem sozinha.

Kokua — disse-lhe então —, você mangou comigo, durante todo o serão… Mas ainda é tempo de dar-me uma resposta franca. Se não mais me quer ver, mande-me partir imediatamente.

Quero que fique — retrucou ela.

E Keawe nada mais lhe perguntou.

Assim foi que se realizaram os amores de nosso herói. As coisas andaram depressa, mas também depressa parte a flecha e, ainda mais, a bala da carabina, que nem por isso deixam de atingir o alvo, com absoluta segurança.

Sem parar seu canto alegre, Keawe regressou à “Casa Grande”. Sentou-se ao balcão predileto e começou a comer, pondo o criado chinês estupefato de vê-lo cantar, entre um bocado e outro.

O Sol mergulhou no mar, perseguido pelas trevas noturnas, e o feliz proprietário inundou a varanda da luz dourada das lâmpadas, estendendo, então, as alegres canções, que lhe saltavam da garganta exultante, até os marinheiros dos barcos que passavam ao largo.

Eis-me chegado ao pináculo da ventura — disse, eufórico, consigo mesmo. —A vida nada de melhor me pode reservar. Vou iluminar a casa; banhar-me na suntuosa banheira de mármore e dormir na futura alcova nupcial!

O chinês recebeu a ordem de acender o aquecedor. Enquanto o fazia, ouviu o amo cantar e regozijar-se. Quando a água se aquentou, chamou o patrão, que passou para o quarto de banho, ainda entoando as melodias tradutoras da infinita satisfação que lhe ia n'alma. O canto prosseguiu, enquanto Keawe se despia, mas, de súbito, interrompeu-se. O servo apurou o ouvido e, inquieto, ergueu a própria voz, indagando se tudo estava em ordem. O dono da casa respondeu-lhe que sim e o mandou deitar-se. Contudo, não mais se ouviram aquelas mesmas notas alegres e, durante toda a noite, o criado escutou-o andar, de um lado para outro, sem cessar.

Eis o que acontecera:

Enquanto tirava a roupa, Keawe descobriu no próprio corpo uma placa como a mancha do líquen sobre a rocha, e, aí, parou de cantar. Pelo aspecto daquela placa sobre a epiderme, reconheceu-se atacado da terrível lepra chinesa.

Teria, pois, de abandonar sua casa tão ampla e tão cômoda, separar-se de todos os amigos, para viver na costa setentrional de Molokai, entre as penedias imensas dos arrecifes. Era indizivelmente atroz ver-se ferido desse modo às vésperas mesmo dos sonhados esponsais!

Ficou, por um instante, em equilíbrio sobre a borda da banheira e, depois, soltando um grito de dor, lançou-se fora do compartimento, a passear, com desvario febril.

Abandonarei o Havaí, terra de meus pais, sem demasiada amargura — pensava o desgraçado. — Deixarei minha casa, com moderado pesar, esta casa tão admiravelmente situada, de incontáveis janelas envidraçadas. Terei ânimo para desterrar-me e morar em Molokai, junto aos penhascos de Kelaupapa. Renunciarei a dormir o derradeiro sono, no túmulo de meus antepassados. Mas que mal fiz, que pecado me enegrece a alma, para que eu encontrasse Kokua, saindo do mar, à fresca de tão linda tarde? Kokua, o anjo que me conquistou o coração! Kokua, a luz de meus olhos! Jamais poderei desposá-la, nem lhe contemplar as adoradas feições, nem acariciá-la com as minhas mãos amorosas. Enfim, é por ti, Kokua, somente que verto estas lágrimas ardentes como fogo líquido!

Torna-se digna de nota a honradez de Keawe, pois poderia continuar vivendo vários anos ainda, sem que, nem de leve, se lhe suspeitasse a repelente enfermidade, como aliás, muitos outros fazem, que inescrupulosos empedernidos não faltam neste mundo. Mas o desventurado amava nobremente a jovem e por nada havia de querer expô-la ao contágio do mal.

Pouco depois da meia-noite, lembrou-se da existência da famosa garrafa. Desceu para o pórtico traseiro e rememorou o dia em que o demônio lhe havia aparecido, saindo fugazmente de sua prisão de vidro. E a essa ideia, gelou-se-lhe o sangue nas veias.

Sem dúvida, a garrafa representa algo de espantoso — pensou. — O diabo não deixa de ser horrível e apavora-me o risco de enfrentar as chamas eternas do inferno. Mas, que outra esperança me resta de curar-me e casar-me com a idolatrada Kokua?

Seu ânimo se foi enrijando com a reflexão.

Ora — prosseguiu, já em alta voz —, pude encarar Satanás para obter esta casa e não terei a coragem de fazê-lo outra vez, a fim de conquistar o maior bem da vida?

Recordou-se de que, no dia seguinte, o Hall tocaria em Hookena, de passagem para Honolulu.

Preciso embarcar-me nesse navio e tornar a encontrar Lopaka. Minha única esperança se resume na garrafa mágica. E pensar que, ao livrar-me dela, fiquei tão contente!

Não pôde pregar olho a noite inteira, nem tampouco provar qualquer alimento na manhã imediata. Depois de escrever uma carta a Kiano, saiu de casa a tempo de apanhar o navio.

Chegado a Hookena — onde, como de costume, se reunia no cais toda a população para assistir à atracação do barco —, ele se sentiu isolado, a mirar a chuva caindo sobre os telhados e o embate estrepitoso do mar contra as pedras. Então, alguns suspiros doridos lhe brotaram da garganta.

O Hall lançou a âncora, descarregou as mercadorias e a baleeira conduziu a bordo os passageiros. Nosso homem, mergulhado em seus cismares, continuou mantendo-se afastado, muito triste. Sentou-se num banco do costado, com os olhos fitos na casa de Kiano, que se acocorava, baixinho, na fímbria de areia, por entre os rochedos negros. E lá, junto à porta, um holuku vermelho ia e vinha, pouco maior, porém tão atarefado como uma abelha.

Ah, rainha de mu coração! — exclamou o infeliz. — Para conquistar-te, vou arriscar a alma.

Anoiteceu lentamente. Os camarotes se iluminaram e os passageiros brancos desceram ao salão para beber uísque, jogando as intermináveis partidas de praxe. Mas Keawe continuou perambulando a esmo pela coberta, durante a noite inteira e o dia seguinte, e, quando já navegando a favor do vento de Maiu, logo abaixo de Molokal, o pobre homem ainda percorria o passadiço, de um lado para outro, como animal selvagem enjaulado. Ao anoitecer, cruzaram a Ponta do Diamante e abordaram o cais de Honolulu. Keawe desembarcou por entre a multidão, e pôs-se a investigar o paradeiro de Lopaka.

Soube, desse modo, que seu antigo companheiro se tornara dono do mais belo bergantim já visto nas ilhas e zarpado rumo a Babla e à longínqua Kahiki. Portanto, de Lopaka nada podia esperar.

Lembrou-se, então, de que tinha ele um amigo, advogado na cidade (cujo nome me vejo obrigado a calar), de quem procurou informar-se. Disseram-lhe que a pessoa em questão enriquecera repentinamente e acabava de mandar edificar confortável casa, nas cercanias de Waikíki. A notícia muito deu que pensar a Keawe, que alugou um carro e mandou tocar para a residência do causídico.

A vivenda era inteiramente nova e as árvores do jardim ainda mediam, apenas, um palmo de altura. O proprietário, ao aparecer-lhe, mostrava um ar de completa felicidade.

Em que o posso servir? — perguntou ao visitante.

O senhor é amigo de Lopaka — declarou Keawe — que, há tempos, me comprou certa garrafa. Talvez possa ajudar-me a descobri-la.

O rosto feliz logo se anuviou.

Não quero esconder-lhe, Sr Keawe, que são velhas e desagradáveis recordações em que não vale a pena tocar. Nada sei de positivo, conforme deve ter percebido, mas se o senhor quiser dirigir-se a certa pessoa, acho ser esta capaz de dizer-lhe alguma coisa.

E citou um nome que prefiro igualmente guardar em segredo.

A cena se repetiu durante vários dias, indo o pobre homem, de um lado para o outro, de Herodes a Pilatos, sem o menor êxito. Em cada etapa, encontrava invariavelmente ricos trajes e carruagens douradas, palacetes recém-construídos e gente feliz a habitá-los — gente que, sem exceção, fechava a cara ao ouvir a razão da visita. Por fim, foi parar na casa de um branco, na Rua Britânia. Ao bater à porta, justamente na hora do jantar, notou os sinais de sempre: construção nova, jardim mal iniciado, janelas brilhantemente iluminadas. Mas quando surgiu o dono da casa, uma sensação — misto de esperança e temor — lhe percorreu todo o corpo. Tinha diante de si um indivíduo jovem, pálido como cadáver, com as órbitas rodeadas de profundas olheiras, uma calvície precoce e o aspecto de condenado à forca.

Vim comprar-lhe aquela garrafa — disse logo Keawe.

A essas palavras, o moço se apoiou à parede.

A… a… ga… garra… fa… — tartamudeou.

Esteve a ponto de asfixiar-se e ficou sumamente enrubescido. Depois, agarrou o visitante pelo braço e o arrastou para a sala de jantar, onde encheu dois copos de vinho.

À sua saúde — proferiu Keawe.

E, depois de beber longo sorvo, ajuntou:

Sim. Aqui estou, com efeito, para comprar a garrafa. Qual é seu preço atual?

Ouvindo isso, o anfitrião largou o copo e mirou o interlocutor como se defrontasse um fantasma.

Então, não sabe o preço?

Eis o motivo por que lho pergunto — retrucou o outro.

Baixou enormemente depois que a possuí, Sr. Keawe — observou o jovem, com a calma aparente das grandes tensões interiores.

Muito bem… tanto melhor. Menos terei de despender na transação… Quanto lhe custou, pois?

Apenas dois centavos — informou o interpelado, ainda mais lívido.

Que? — exclamou Keawe. Nesse caso, só pode vendê-la por um centavo!! E quem a comprar…

A voz se lhe extinguiu na garganta. Aquele que adquirisse o fatídico recipiente não mais o poderia revender, entrando em sua posse definitiva e na do demônio nela encerrado, até morrer, quando sua alma baixaria às profundezas do Inferno.

O jovem morador da Rua Britânia se lançou de joelhos.

Pelo amor de Deus, compre-a! — implorou, desesperado. — Entregar-lhe-ei toda a minha fortuna, a título de compensação. Eu estava inegavelmente louco ao dar tal quantia por ela! Tinha metido criminosamente as mãos no dinheiro do patrão e, se o desfalque fosse coberto, condenar-me-ia à prisão mais vergonhosa.

Pobre criatura! — apiedou-se o visitante. — Expôs sua alma ao perigo eterno por uma ninharia dessa… E como, então, hesitarei, ante a reconquista de meu grande amor? Dê-me a garrafa e o troco desta moeda de cinco centavos.

Realizado o negócio, a botelha mágica mudou de mãos e, mal crispou ele os dedos frementes em torno do gargalo, formulou o desejo de ver-se curado.

Ao voltar ao seu quarto de hotel e tão pronto desnudo, nosso herói comprovou, com a máxima satisfação o desaparecimento completo de qualquer sintoma do terrível mal em toda a superfície do corpo.

E — coisa inaudita — não mais se preocupou com a lepra, nem com a idolatrada Kokua. Só um pensamento o enfeitiçou: estava ligado irremediavelmente ao Diabo, e arderia no Inferno, depois de morto, por toda a eternidade. Sentia o coração quase estrangulado de agonia, enquanto os sentidos lhe fugiam.

Quando voltou a si, já era noite e a orquestra do hotel tocava nos jardins. E como justamente se ouviam as notas suaves do Hi-ka-ao-ao, canção que tantas entoara com Kokua, recobrou um pouco de ânimo.

Agora, a sorte está lançada — refletiu. — Assim, aproveitemos as vantagens que o mal é inevitável.

Tomou o primeiro barco para o Havaí e, logo que pôde, uniu-se à mulher amada, levando-a para a “Casa Brilhante”. Mas, se estando junto da esposa, sentia desvanecer temores, em compensação o horror de sua sorte se lhe afigurava desvairante quando se isolava com seus pensamentos.

Não cessava de ver, nestes momentos, chamas impiedosas da fogueira eterna e de ouvir o ronco da fornalha infernal.

Kokua se entregara, de corpo e alma, ao seu amor. O coração saía-lhe no peito, mal avistava o marido, cujas mãos apertava ternamente nas suas. Tamanha se lhe antolhava a felicidade de esposa amorosa, que todo mundo notava seu ar alegria radiante. Exibia maneiras sumamente agradáveis, tendo sempre nos lábios sorrisos graciosos e palavras cordiais. Jamais parava de cantar e saltitava pela linda casa como um canário mavioso em sua gaiola de cristal.

Ao vê-la, embevecido, Keawa gozava momentos quase ditosos.

Chegou, porém, o dia em que os pés de Kokua se fizeram mais pesados e suas canções sofreram largos intervalos de silêncio. Já então não era somente o marido que chorava às escondidas.

Mui a miúdo, os dois esposos ficavam separados, tendo entre eles toda a largura da “Casa Brilhante”. De tal modo se achava Keawe mergulhado no desespero que mal se percebia de tão profunda mudança na vida da esplêndida mansão. Até constituía uma espécie de satisfação para ele, que assim dispunha mais tempo para mergulhar em sua amargura, sem se ver, a todo momento, na contingência de sorrir, sentindo o coração tão pejado de luto.

Um dia em que passeava silenciosamente pela casa, ouviu o eco magoado de soluço infantis e descobriu a esposa que, em pranto convulso, se contorcia, gemendo, de rosto contra o assoalho.

Têm toda a razão os que choram nesta casa, Kokua — disse-lhe então, com dorida ternura —, mas eu me deixaria degolar alegremente para que tu, pelo menos, fosses ditosa…

Ditosa, Keawe! — exclamou a mulher. — Quando vivias sozinho, nesta “Casa Brilhante”, tua felicidade tornou-se proverbial em todas as ilhas. Depois, casaste com a pobre Kokua e, desde então, só Deus sabe o que em mim te desagrada! Jamais tiveste um sorriso de franca satisfação! Oh, céus! Que mal cometi? Antes me achavas linda e acreditavas no meu amor... Que fiz, pois, para lançar o meu marido em tamanha tristeza?

Pobre e querida Kokua — murmurou Keawe.

E, sentando-se ao lado da esposa, tentou tomar-lhe as mãos, que se esquivaram vivamente.

Pobre Kokua! — repetiu. — Meiga, adorada e frágil criança, vida da minha vida! Meu único pensamento era livrar-te de toda e qualquer pena! Pois bem. Saberás de tudo agora… E pelo menos te compadecerás de teu infeliz Keawe. Compreenderás quão delirantemente te amei, pois afrontei o próprio Inferno para possuir-te e que te amo ainda com loucura, porque ainda sei sorrir quando te vejo!

Depois, contou-lhe a história desde o início.

Fizeste isso por mim? — perguntou a moça, assombrada. — Então me enganaste em tudo mais!

E apertou-o demoradamente nos braços carinhosos, misturando-se as lágrimas de ambos.

Oh, minha filha! — exclamou Keawe. — O essencial seria que eu pudesse enganar o próprio Satanás e, desse modo, escapar de suas chamas!

Não te apoquentes assim, querido. É impossível que sejas condenado pelo teu grande amor pela tua Kokua. Juro-te, Keawe, que te salvarei, com as minhas próprias mãos ou perecerei contigo!

Ai, minha vida! Debalde morrerias cem vezes que nada mais conseguirias que me deixar sozinho e desesperado até a hora de entregar a alma ao demônio.

Nada podes saber, porque te falta a instrução que recebi num colégio de Honolulu. Por isso, garanto-te: salvar-te-ei, meu bem-amado! Disseste-me não haver moeda inferior ao centavo. Mas nem todo mundo é norte-americano. Existe na Inglaterra, uma espécie divisionária, denominada farthing, que vale cerca de meio centavo. Mas isso não adianta grande coisa, pois o comprador continuaria condenado. Felizmente, resta-nos a França, onde o povo usa uma moeda chamada cêntimo e do qual se precisam de cinco para fazer um dos nossos centavos. Vamos, pois, viver nas ilhas francesas. Translademo-nos para o Taiti, no primeiro navio que para lá se dirija. Ali, teremos ainda quatro cêntimos, três, dois e um, isto é, quatro possíveis vendas. Vem querido! Beija-me e afasta de ti toda preocupação. Kokua defender-te-á!

Meu Deus! — exclamou o marido. — Não posso crer que os céus me castiguem por haver desejado tão perfeita esposa! Seja como queres! Leva-me para onde entenderes. Deponho a vida e a salvação da minha alma em tuas mãos!

No dia seguinte, muito cedo, Kokua começou seus preparativos de viagem. Tomou o baú de marinheiro de Keawe e a primeira coisa que fez foi nele meter a garrafa cabalística. Depois, embrulhou seus bonitos vestidos e as mais ricas alfaias da casa, “pois — disse ela —, muito importa que mantenhamos o aspecto de gente rica, sem o que jamais acreditarão no poder mágico da vasilha branca como leite.”

Durante todo o tempo desses preparativos, mostrou-se alegre como um passarinho. Somente quando contemplava Keawe, as lágrimas lhe britavam dos olhos e ela se atirava sobre o marido para beijá-lo.

Quanto a Keawe, este arredara um peso da consciência. Ao ver o segredo compartilhado e o vislumbre animador de uma esperança, sentia-se renascer para a vida, convertendo-se em outro homem. Seus passos se tornaram mais ligeiros e o semblante menos sombrio.

Seguiram para Honolulu, a bordo do Hall, e, dali, rumaram a São Francisco, pelo Unatilla, no meio de grande leva de brancos. Nesta última cidade, embarcaram num bergantim correio, El Pajaro de los Trópicos, com destino a Papeete, capital das ilhas francesas, onde chegaram, após agradável travessia.

Acharam mais conveniente alugar uma casa, defronte do consulado da Inglaterra, com o fim de fazer ostentação de seu dinheiro e chamar a atenção geral para seus coches e cavalos de raça. Tudo isso lhes era extremamente fácil, enquanto tivessem a posse da garrafa diabólica, pois Kokua, mais ousada do que o marido, não vacilava em formular pedidos sabre pedidos.

Nessas condições, breve despertaram a curiosidade da população. Todo mundo falava dos estrangeiros do Havaí e de suas soberbas atrelagens, dos encantadores holokus e atavios riquíssimos de Kokua.

Não tardaram os recém-chegados a familiarizar-se com a linguagem do Taiti; mas, enquanto dominavam o complicado dialeto insular, trataram de vender a garrafa enfeitiçada.

O negócio, porém, era de difícil abordagem, pois constitui tarefa nada cômoda persuadir aos outros de boa-fé com que se oferece por quatro cêntimos uma verdadeira fonte de riquezas inesgotáveis. Além disso, havia que explicar os perigos da garrafa e, então, as pessoas se mostravam incrédulas ou, considerando os riscos tremendos para suas almas, se afastavam de Keawe e de Kokua, como de autênticos emissários de Belzebu.

De maneira que, longe de ganhar terreno, o infortunado casal se viu logo evitado por toda a população. A depressão assaltou-lhe o ânimo e, de noite, permanecia horas e horas sem trocar uma palavra, quando o silêncio não era rompido, de súbito, pelos soluços de Kokua.

Às vezes, rezavam juntos; de outras, depunham no chão a garrafa maldita e passavam todo o serão mirando a sombra agitar-se no interior do recipiente, até que o sono os colhia, assim mesmo sentados.

Uma noite, Kokua adormeceu, enrodilhada no assoalho. Quando despertou, Keawe tinha desaparecido, mas teve a impressão de que havia alguém lá fora gemendo lugubremente, em melo da escuridão. A moça se levantou devagarinho entreabriu a porta e espiou o pátio.

Distante, sobre o pó da estrada, junto ao tronco de uma figueira brava, jazia o seu marido, a lamentar-se de modo a cortar o coração. A primeira ideia da mulher foi de se precipitar para ele e consolá-lo. Mas um segundo pensamento deteve-lhe o impulso de ternura. Keawe se calara ao vê-la. Não seria, pois, caridoso vexá-lo em hora de fraqueza incontida. Voltou imediatamente ao interior da habitação.

Meu Deus — pensou ela. — Como fui louca e despreocupada até este momento! Ele se danou por meu amor. Eu devia estar completamente cega para não ter ainda compreendido o meu dever! Uma alma por outra... que pereça a minha!

Não perdeu tempo em pentear-se com apuro. Aprovisionou-se de dinheiro, apanhando os preciosos cêntimos que sempre conservava consigo, pois eram moedas mui pouco usadas, e fora preciso obtê-las no próprio tesouro do governo.

Quando saiu à rua, as nuvens, impelidas pelo vento, mascaravam a Lua. De repente, ouviu alguém tossir, na sombra das árvores. Atentando, deu com um ancião.

Meu velho — disse-lhe. — Que faz você aqui, tão solitário e ao relento?

O ancião sofreu todas as torturas deste mundo para responder, tanto o sufocavam os acessos de tosse. A única coisa que a moça compreendeu de suas palavras entrecortadas foi que o pobre homem estava na miséria, sem pão, nem teto, e era estranho na ilha.

Quer prestar-me um serviço? —indagou a jovem. — Os estrangeiros devem valer-se mutuamente e um bom velhinho como você não se negará a ajudar a uma infeliz moça do Havaí.

Ah! — fez o ancião. — Então ó você a bruxa das ilhas e tenta apoderar-se de minha alma… Já ouvi falar de seus malefícios e ando de sobreaviso!

Então a moça desfiou-lhe a odisseia de Keawe, do começo ao fim.

E —assim concluiu — sou eu a esposa que ele conquistou em troca de sua alma. E que posso fazer? Se eu mesma me oferecesse para comprar-lhe a garrafa maldita, ele recusaria, sem sombra de dúvida. Mas, se você o fizesse, ele a venderia de bom agrado. Portanto, aqui estão quatro cêntimos, com que você irá imediatamente adquirir o objeto, que, sem demora, me será cedido por três. Meu Deus, dai-me forças para cumprir o meu dever!

Se for uma cilada — ameaçou o mendigo —, Deus não deixará de fulminá-la com um raio! Dê-me os quatro cêntimos e espere-me aqui mesmo.

Quando, todavia, Kokua se viu sozinha, seu ânimo fraquejou. O vento rugia nas árvores e este ruído lhe dava a impressão de ouvir as próprias labaredas do Inferno crepitando. Se lhe restassem forças para tanto, teria certamente fugido. Nem sequer encontrava alento para lamentar-se de sua desgraça. Só sabia tremer apavorada e exausta na alameda deserta.

Algum tempo depois, avistou o velho, regressando com a garrafa na mão.

Fiz tudo como você mandou —disse ele. — Ao despedir-se de seu marido, vi que chorava como uma criança, dizendo que esta noite finalmente dormira tranquilo.

E estendeu-lhe a botelha fatal.

Antes de devolver-me, aproveite de seu poder mágico — sugeriu a mulher, num gemido. — Peça-lhe, ao menos, que o livre dessa terrível tosse!

Estou velho — retrucou o desconhecido — e já demasiado próximo da morte para aceitar seja o que for. Mas… Que é isso? Não vai recomprar-me a garrafa? Hesita, porventura?

Não — proferiu Kokua. — Não vacilo. Apenas, sinto-me sem forças. Espere um momento, por favor. É só a mão que se nega; sinto os músculos contraídos, obstando-me de tocar nessa coisa danada. Um instantinho, sim?

O ancião mirava-a, compassivo.

Pobre criatura — lamentou-a. — Sente o medo que lhe esmorece a vontade. Pois bem. Ficarei com a garrafa. Acho-me às portas da morte e já não mais poderei ser feliz mundo, de qualquer maneira. Quanto a seu marido…

Dê-ma! — bradou-lhe a moça em ímpeto repentino. —Aqui tem o dinheiro! Pensa que sou tão covarde? Devolva-ma!

Deus a proteja — disse o velho, com emoção — e a abençoe, filha!

Kokua escondeu a garrafa sob as dobras do holoku; despediu-se do mendigo e seguiu por aquela avenida sem saber aonde ia. Já então todos os caminhos lhe eram completamente te indiferentes, pois levavam fatalmente a um único destino: o Inferno.

Ao clarear o dia, regressou à casa. O velho dissera a verdade. Keawe dormia como um recém-nascido A esposa quedou de pé, a mirá-lo por muito tempo.

E agora, meu querido — pensou —, chegou, afinal, tua hora repousar plenamente, mergulhado em sono solto e profundo. Quando despertares, voltarás a cantar, mostrando a mesma alegria de outrora a tua pobre Kokua… Ai… a pobre Kokui, que se sacrificou por teu amor, e para quem não mais haverá noites tranquilas, nem canções felizes, nem prazer algum sobre a face da terra!

E, estendendo-se junto ao marido, tão esgotada e miserável se sentia que adormeceu imediatamente.

Bem tarde, na manhã seguinte, o homem despertou-a para comunicar-lhe a boa nova. Achava-se louco de contentamento e, assim, nenhuma atenção prestou à angústia que a dominava, embora procurasse dissimular. Incapaz de falar, ela permanecia muda. Mas Keawe se mostrava loquaz.

À mesa, Kokua nem de leve tocou nos alimentos e o esposo nada notou, ocupado que estava em limpar o prato, com apetite homérico. E, enquanto comia, falava sem parar, fazendo planos para o regresso à “Casa Brilhante”, agradecendo-lhe o fato de havê-lo salvo com sua inteligência de esposa dedicada e cobrindo-a de carícias incessantes. Ria-se, a bom rir, também do pobre velho, o idiota que fora capaz de comprar-lhe a maldita garrafa.

Pareceu-me, no entanto, pessoa digna — comentou, depois. — Se bem que não se deva julgar pelas aparências. Afinal, para que queria a diabólica vasilha?

Meu marido — objetou Kokua, humilde —, talvez fosse boa a sua intenção.

Keawe zombava francamente da vítima.

Boa? Pois sim! Não passa de mm tratante — é o que te digo — e, além disso, burro! Se a garrafa já era mais que difícil de vender-se por quatro cêntimos, por três, então, a coisa se torna impossível! É verdade que eu mesmo a comprei por um cêntimo, quando ignorava haver moeda de menor valor. Fui também idiota, mas este de agora não encontrará, em hipótese alguma, outro de igual estupidez! E, se o encontrar, será inapelavelmente o último que levará a garrafa fatal até o Inferno!

Oh, meu querido! — interveio a mulher. — Não achas horrível se alguém se salvar à custa da perdição eterna de outrem? A mim, me parece que jamais teria a coragem de rir-me em tal circunstância, antes sentir-me-ia cumulada de pesar e rezaria pela alma do desgraçado possuidor!

Keawe, justamente por compreender a exatidão de tais conceitos, se tomou de cólera.

Pois podes lamentá-lo e rezar, se bem te parece. Se fosses boa esposa, haverias de te regozijar por haver-me livrado do tremendo fim. Se me tivesses um pouquinho de amor, o mais insignificante que fosse, decerto te envergonharias de dizer-me isso!

E saiu, deixando a esposa sozinha

Que probabilidade terei de vender essa garrafa por dois cêntimos franceses? — refletiu ela. — Nenhuma, absolutamente! E mesmo que a tivesse, não vai ele levar-me para um país onde não há moeda de um cêntimo?

Keawe voltou, ao anoitecer, e quis levá-la a um passeio de caleça.

Meu bem — pretextou ela —, estou um pouco adoentada. Perdoa-me, mas não me sinto bem e não enho ânimo para divertir-me hoje.

A cólera do marido recrudesceu com a recusa. O homem se enfureceu ainda mais com a ideia de que a jovem se desolava, evocando o velho comprador da garrafa; zangou-se também consigo mesmo, por compreender que ela estava com toda a razão em achar vergonhosa a felicidade obtida por aquele preço.

E. resmungando, exasperado, pôs-se a errar pela cidade. Encontrou vários amigos, com quem bebeu e, depois, alugou um carro, indo com ele a uma bambochata no campo.

Durante todo o tempo, no entanto, Keawe se sentia de má vontade, por se divertir enquanto a esposa se achava tão triste em casa; e, ainda mais, trazia a consciência pesada com a verdade das palavras ouvidas de Kokua. E para esquecê-las, exagerou cada vez mais as doses alcoólicas.

Afinal, só restou para responder aos seus sucessivos brindes um verdadeiro brutamontes, ex-piloto de um baleeiro, desertor, pesquisador de ouro e forçado das galés. Era um Indivíduo grosseiro, que se comprazia em ver os outros embriagados, como procurava fazer a Keawe, naquele momento. Chegou a hora em que se acabou o dinheiro.

Ouça — disse, de repente, o marujo. — Você, pelo que vejo, é rico. Disseram-me que possui certa garrafa…

Sim — confirmou o outro. — Tenho grande fortuna e vou agora mesmo pedir mais dinheiro à minha mulher, que o guarda.

Se quiser um bom conselho, companheiro — resmungou o embarcadiço —, não deixe os seus dólares em poder de um rabo de saias. Não se deve confiar nessas cadelas, pois são falsas como Judas.

Keawe já se achava completamente bêbado.

Depois, ambos voltaram à cidade. Nosso herói pediu ao ex-piloto que o esperasse na esquina de sua casa. A noite já ia alta. No interior, brilhava uma luz, mas nenhum ruído se ouvia. Keawe rodeou cautelosamente a habitação e abriu, de mansinho, a porta dos fundos. Kokua jazia, de comprido, sobre o assoalho, ao lado da lâmpada acesa. À sua frente se via uma garrafa de cor leitosa, bojuda e de gargalo grosso. A mulher contorcia as mãos de desespero. O homem quedou, imóvel, no umbral, sem compreender, como petrificado…

Pensou, primeiro, que o negócio não se realizara dentro das normas sacramentais, e que a vasilha volvera ao seu poder, como já tinha acontecido em São Francisco. A ideia o acabrunhou imensamente.

Rápido, um alvitre fuzilou-lhe no cérebro, fazendo o sangue afluir-lhe, em peso, às faces.

Fechou silenciosamente a porta; tornou a dar a volta à casa, em sentido contrário, e penetrou pela porta da frente, como acabando de chegar. Ao pisar no quarto, onde se achava a esposa, a garrafa fatal desaparecera.

Kokua se sentava então num tamborete e parecia despertar de um torpor.

Passei o dia bebendo e fui a uma feira a no campo — explicou o marido. — Encontrei vários amigos e vim apenas buscar dinheiro para continuarmos a noitada.

Seu rosto e voz se faziam tão graves e solenes como se enfrentasse, já, o Juízo Final; mas Kokua se sentia demasiado agitada para reparar nesses detalhes.

Fazes bem em te divertires, meu querido — disse apenas, trêmula de ansiedade.

É sempre bem tudo o que faço — respondeu-lhe o esposo.

E foi direito ao baú, a fim de apanhar o dinheiro — e, ao fazê-lo, olhou o cantinho, onde antigamente guardava a botelha diabólica, mas esta ali não estava.

Justamente o que eu tanto temia. — pensou, apavorado. — Foi ela que a comprou!

O suor corria-lhe copioso e frio pelas faces, como enxurrada de gelo.

Kakua — proferiu, emocionado —, esta manhã, antes de ir juntar-me aos amigos, disse-te palavras cruéis. Para que eu possa continuar a alegre festança, quero que me perdoes, primeiro…

A mulher agarrou-lhe os joelhos, beijando-os, com ardor apaixonado.

Oh, meu amor! Tudo o que eu desejava era justamente algumas ternas palavras de ti! Nunca mais pensemos mal um do outro, sim? — fez o marido.

E deixou, apressado, a habitação. Mal apanhara alguns cêntimos. Sua mulher dera a própria alma por ele; portanto, em paga, venderia a sua pela dela.

Na esquina combinada, esperava-o o ex-piloto.

Minha mulher guardou a garrafa — foi dizendo-lhe Keawe, a queima roupa — e, a menos que me ajudes, não teremos esta noite mais dinheiro para o vinho.

Não me vai fazer crer que essa garrafa existe realmente — escarneceu o outro.

Tenho, por acaso, cara de farsante? — protestou Keawe.

Lá isso não tem — reconheceu o malandro —, pois você me parece tão sério como um juiz.

Pois bem — prosseguiu o nosso herói —, aqui estão dois cêntimos. Vá procurar minha mulher e ofereça-lhe comprar a garrafa mágica. Traga-ma aqui que lhe pagarei um cêntimo por ela, pois é lei sagrada, para sua venda, que os preços, sempre decresçam a cada transação. A todo custo, porém, evite de dizer à minha esposa que vai a meu mando.

Irei, com efeito. Mas, se estiver a divertir-se à minha custa, fique certo de que lhe retribuirei na mesma moeda, com juros!

E o antigo baleeiro subiu a avenida, deixando o amigo à espera.

Por estranha coincidência, fora ali mesmo onde Kokua encontrara o velho, na noite anterior. Keawe se sentia absolutamente decidido — e o tempo lhe pareceu longo. Por fim, ouviu uma voz, cantando na obscuridade da avenida. Reconheceu-a, de pronto. Era o ex-piloto que chegava, de volta, cambaleando, ao atravessar os espaços batidos de luar. Trazia a garrafa diabólica, por dentro do casaco abotoado, e outra comum, na mão, a qual levou aos lábios ao aproximar-se do companheiro.

Conseguiu-a! — exclamou este, exultante. — Já percebi-a no seu bolso!

Abaixe as batas — grunhiu o brutamonte, dando um salto para trás. — Experimente tocar-me para ver se não te arrebento a cabeça! Se você pensa que me embrulha com essa facilidade, engana-se redondamente!

Que quer dizer com isso?

Apenas o seguinte: que esta garrafa resolve todos os meus problemas; portanto, convém-me, por completo! Explicou-me como obtê-la por dois cêntimos, mas de modo algum a cederei por um só! Sua esperteza não pega!

Que? Então nega-se a vender-ma?

Claro que sim e terminantemente! Ainda pergunta?! Bem, dar-lhe-ei um trago, pelo obséquio que me prestou.

Insisto, meu amigo, em que o possuidor dessa garrafa irá para o Inferno!!

De qualquer maneira, não escaparei de ir para lá — replicou o outro —, e esta garrafa me fará maravilhosa a espera da condenação!

É possível — balbuciou Keawe. — Pela salvação de sua alma, suplico-lhe que ma entregue!

Importa-me mui pouco o que está dizendo. Você me tomou por idiota, mas é o que não sou. É o essencial! Se recusa o trago de recompensa, tomá-lo-ei eu mesmo. À tua saúde! E muito boa noite, companheiro!

E o antigo forçado seguiu a avenida, em direção da cidade. Asim, desapareceu para sempre da história a sinistra garrafa de vidro leitoso, em cujo interior bruxuleava a sombra apavorante do diabo. Naquela noite, a alegria do atribulado casal foi indescritível. Desde então, sei que os cantos felizes e os risos cristalinos voltaram a ressoar no recinto paradisíaco da “Casa Brilhante”.


Fonte: Policial em Revista/RJ, agosto de 1952.

Fizeram-se breves adaptações textuais.


Notas:

1Navio de dois mastros, aparelhado como o brigue, mas tendo apenas uma cobertura.

2Vestido estampado.


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