AMARGA PROFECIA - Conto Clássico Sobrenatural - Frédéric Soulié

AMARGA PROFECIA

(Os Quatro Henriques)

Frédéric Soulié

(1800 – 1847)

Tradução de Antônio Rego

(1820 – 1883)


Era uma noite tempestuosa e a chuva caía com força. Uma velha, que diziam ser feiticeira, e que morava em uma pobre cabana no bosque de Saint-Germain, ouviu bater à porta; foi abri-la e viu um cavaleiro, que lhe pedia abrigo; mandou-o entrar e levou o seu cavalo a uma granja; conheceu que era um gentil-homem a favor da mortiça luz duma candeia. Inculcava a pessoa mocidade, e os trajes a qualidade. A velha acendeu o fogo e perguntou ao cavaleiro se desejava comer alguma coisa.

Um estômago de dezesseis anos é como um coração da mesma idade: mui ávido, e pouco difícil. O moço aceitou. Um pouco de queijo e um pedaço de pão tirado dum armário era toda a provisão da velha.

Nada mais tenho — disse ela ao cavaleiro. — É tudo quanto o dízimo e os impostos me deixam oferecer aos pobres viandantes, sem falar dos camponeses das vizinhanças, que me chamam de feiticeira e dada ao demônio, só para me poderem roubar, sem consciência, os produtos do meu pobre campo.

Por Deus — retrucou o cavaleiro —, se algum dia vier a ser rei da França, suprimirei os impostos e farei instruir o povo.

Deus te ouça — respondeu a velha.

Dito isto, o cavaleiro aproximou-se da mesa para comer. Mas, neste momento, um novo sinal de que estava alguém à porta o fez parar. A velha abriu e viu ainda um cavaleiro molhado pela chuva, e que pedia hospitalidade. Foi-lhe ela concedida e, depois de ter entrado, notou-se que também era um jovem e também um cavaleiro.

Tu és Henrique? — disse um.

Sim; Henrique — disse o outro.

Chamavam-se ambos Henrique.

A velha soube, pela sua conversação, que eram de uma numerosa comitiva de caça dirigida pelo rei Carlos IX, e que a tempestade os havia dispersado.

Então, velha — disse o segundo que entrou —, nada mais tens a nos dar do que isto?

Nada mais — respondeu ela.

Nesse caso — tornou ele —, repartamos.

Com grande pesar, o primeiro Henrique ouviu esta proposta; mas, vendo os modos resolutos e o desenvolvimento físico do segundo Henrique, respondeu com voz pesarosa:

Repartamos.

Havia nestas palavras este pensamento, que ele não se atreveu a declarar: “Repartamos para que não nos tirem tudo.”

Sentaram-se ambos, um defronte do outro, e já um deles ia cortar o pão com a sua adaga, quando ouviram pela terceira vez bater à porta. Era singular o encontro; um terceiro cavaleiro, um terceiro rapaz, e um terceiro Henrique. A velha olhou para eles com surpresa. O primeiro quis esconder o queijo e o pão; o segundo tornou a pô-los sobre a mesa, e ao lado pôs a sua espada. Sorria o terceiro Henrique.

Então — disse ele — não quereis me dar nada da vossa ceia? Pois bem, esperarei, tenho um excelente estômago.

A ceia — disse o primeiro Henrique —pertence de direito a quem primeiro veio.

A ceia — disse o segundo — pertence a quem melhor souber defendê-la.

Tremeram de cólera os lábios ao terceiro, e disse, com altivez:

Talvez ela pertença a quem melhor souber conquistá-la.

Ainda não eram ditas estas palavras, já o primeiro Henrique havia tirado o seu punhal e os outros dois as suas espadas. Ia travar-se o combate quando, pela quarta vez, bateram à porta, e pela quarta vez entrou um quarto cavaleiro, um quarto jovem, e um quarto Henrique.

Vendo prestes a começar a contenda, travou da sua espada e se colocou ao lado do mais fraco; feria às cegas.

A velha escondeu-se assustada e as espadas feriam tudo quanto encontravam na sua passagem.

Caía a candeia, apaga-se a luz, e todos ferem às escuras.

Continuou ainda por algum tempo o ruído das espadas, enfraquecendo-se depois, pouco a pouco, até que terminou completamente.

Aventurou-se então a velha a sair do seu esconderijo, tornou a acender a candeia, e viu os quatro moços estendidos em terra, tendo cada um uma ferida; haviam-se sido derribados mais pela fadiga que pela perda de sangue. Ergueram-se, um após o outro, e corridos do que haviam feito, disseram a rir-se uns aos outros:

Vamos, ceemos em boa harmonia e esqueçamos o passado.

Mas, quando procuraram a ceia, encontraram-na em terra, calcada a pés e suja de sangue. Por pouco que fosse, assim mesmo a desejaram.

A cabana estava devastada e a velha, sentada em um canto, encarava os quatro moços com um olhar sinistro.

Por que nos olhas desse modo? — disse o primeiro Henrique, a quem o olhar da velha perturbava.

Vejo os vossos destinos escritos em vossas frontes — respondeu a velha.

O segundo Henrique ordenou-lhe, com aspereza, que os revelasse; os dois últimos pediram o mesmo, com ar risonho.

A velha respondeu:

Assim como estais agora todos quatro reunidos nesta cabana, assim participareis todos quatro da mesma sorte. Assim como calcastes aos pés e sujastes de sangue o pão que vos foi oferecido por mão hospitaleira, assim calcareis e sujareis de sangue o poder que um dia haveis de repartir; assim como devastastes e empobrecestes esta cabana, assim devastareis e empobrecereis a França; assim como fostes todos quatro feridos na escuridão, assim também haveis de morrer de morte violenta e por traição.

Os quatro cavaleiros não puderam deixar de rir-se do prognóstico da velha.

Estes quatro cavaleiros eram os quatro heróis da liga: dois como chefes e dois como seus inimigos.

Henrique de Condé1, envenenado em Sant-Jean-d'Angely por sua esposa. Henrique de Guise2, assassinado em Blois pelos quarenta e cinco.

Henrique de Valois3 (Henrique III), assassinado por Jacques Clément em Saint-Cloud.

Henrique de Bourbon4 (Henrique IV), assassinado em Paris por Ravaillac.


Fonte: Jornal de Instrução e Recreio da Associação Literária Maranhense, fevereiro de 1845.

Imagem: Frans Pourbus de Jongere (1569 – 1622).

Fizeram-se breves adaptações textuais.


Notas:

1Henrique I de Bourbon, segundo príncipe de Condé (1552 – 1588), era primo do futuro rei Henrique IV da França. Havia rumores de que sua esposa, Carlota, o envenenara.

2Henrique de I de Guise (1550 – 1588), príncipe de Joinville, foi assassinado por ordem do rei Henrique III da França. Os “quarenta e cinco” compunham a guarda pessoal do rei.

3Rei da França (1551 – 1589), irmão de Carlos X e último rei da casa de Valois. Foi traiçoeiramente assassinado pelo jovem frei dominicano Jacques Clément (1567 – 1589). Embora o frei Clément tenha sido morto logo após o atentado, o seu corpo foi submetido a atos de tortura pública, desmembramento e incineração na fogueira.

4Rei da França (1553 – 1610), primo e cunhado de Henrique III. Foi o primeiro rei da Casa de Bourbon. Foi assassinado, a facadas, em sua carruagem, por François Ravaillac (1578 – 1610). O assassino foi torturado e morto no mesmo ano. 

 

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