A VIÚVA EM CHAMAS - Narrativa Clássica de Horror - Autor anônimo do séc. XIX

A VIÚVA EM CHAMAS

Autor anônimo do séc. XIX

(Continuação de “O Demônio e o Faquir”)

Tradução de autor anônimo do séc. XIX



Antes de partir de Bombaim, eu quis ver um destes sacrifícios de que tinha escapado a mulher do faquir1.

A viúva era uma mulher moça e interessante, um pouco gorda, mas benfeita, e a sua tez não era mais trigueira do que a de uma italiana.

Aproximamo-nos, sem dificuldade, da fogueira tanto quanto foi preciso para vermos, sem perder nada, todos os pormenores deste horrível drama.

A desgraçada tinha junto a si um filho de poucos meses, para quem ela olhava com um ar de indiferença, como se, absorvida no sentimento de um dever exclusivo e imperioso, tivesse perdido a ideia de todos os objetos terrestres. Com efeito, suas feições tinham o cunho de uma sorte de sossego sublime no meio dos terríveis preparativos que se faziam em torno dela.

Confesso que não pude deixar de admirar a sua firmeza de alma e a enérgica perseverança do seu intento. Todavia, a piedade e o desgosto combatiam em mim esta admiração; no entanto, se, de um lado, eu me sentia comovido a ponto de derramar lágrimas com a ideia dos tormentos que a esperavam, do outro, eu podia olhar como ridícula esta brutal apatia com que ela parecia marchar para o seu espantoso suplício.

Houve um longo intervalo antes que tudo estivesse pronto para o grande sacrifício. Desta demora resultou uma evidente alteração nas sensações da vítima. Seus olhos pretos revelaram a agitação que a dominava; eles se tornavam gradualmente mais expressivos e espantados. Tinham-lhe, decerto, entorpecido um tanto os sentidos por meio de uma forte dose de ópio, remédio usado muitas vezes, e sempre com um resultado fatal, em semelhantes ocasiões, para abrandar o terror e sustentar a coragem das vítimas condenadas pela superstição a uma morte prematura. Entretanto, à proporção que a mulher saía do seu estado de torpor artificial, divisavam-se nela os progressos simultâneos da inteligência e do terror. Seus movimentos, a principio mecânicos, obedeciam já aos impulsos da sua razão renascente; cada momento aumentava as suas angústias; mas, ainda que fosse fácil ver o terrível combate que se dava no seu interior, podia-se, ao mesmo tempo, ficar convencido de que seus esforços, para fortificar sua resolução abalada, não provinham de uma alma comum, nem de unia energia vulgar. Somente a multidão das emoções, que assaltavam esta frágil organização, dava por momentos a seus gestos uma pronunciada incoerência. Ela distribuiu por suas amigas os seus diversos enfeites, mas fê-lo com distração e quase sem saber o que fazia: tanto as suas faculdades se enfraqueciam no meio de suas torturas morais!

De repente, os gritos de seu filho reabriram nela o manancial das emoções maternas. Seus olhos, dilatados por um raio de ternura, seus beiços trêmulos, seu seio palpitante, sua respiração agitada, sua boca aberta — e, no entanto, muda —, tudo debuxava o regresso da sua razão alterada. Precipitar-se sobre seu filho, arrancá-lo dos braços de sua guarda, estreitá-lo apaixonadamente nos seus, tudo isto foi feito em um só e rápido movimento. Seus convulsos e repetidos soluços feriam meus ouvidos com seus penetrantes sons. Era um apelo irresistível! Mas, por que meio arrancá-la à sorte que a esperava, quando era ela que havia ditado a sua sentença? Desde este momento, era evidente, para todos os espectadores, que a sua coragem se abatia com a ideia do último ato desta horrível tragédia. De pé, à nossa vista, ela nos oferecia a viva imagem da desesperação muda da agonia da alma.

Os brâmanes que presidiam à cerimônia, vendo que era tempo de precipitar a consumação dela, com receio de que a coragem da viúva não se extinguisse inteiramente, fizeram afastar seus parentes, seus amigos e todos os espectadores. Num instante, fez-se em torno da fogueira um vasto espaço vazio onde a vítima ficou só com os sacrificadores; um destes homens, de fisionomia doce, já havia arrancado o menino dos braços de sua mãe e depositado em outras mãos, sem dar atenção alguma aos gritos de ambos. Foi, então, que a viúva se mostrou bela na sua dor! Sabendo o que se ia seguir a este primeiro ato de violência, ela deu um livre curso aos combates da natureza: lançou-se de joelhos, levantou os olhos para o céu e cerrou as mãos, uma contra a outra, em um transporte de muda desesperação. Um brâmane se aproximou dela com ar tranquilo, mas grave, e ajudou-a a levantar-se; depois, com o socorro de um de seus colegas, tão austero, tão impassível como ele, conduziu-a para a fogueira. Ela se debatia, e era tal a força que a desesperação lhe ministrava, que conseguiu resistir aos esforços dos sacerdotes. Vendo isto, muitos de seus camaradas voaram a ajudá-los e lançaram a desgraçada sobre o montão de lenha que se havia tido a cautela de tintar com ghi2, a fim de acelerar a combustão. É uma espécie de doçura concedida à vítima para abreviar seus sofrimentos e evitar, ao mesmo tempo, que ela se escapula.

Logo que ela começou a gritar, a sua voz foi coberta com os tum-tam, instrumentos de vento, e pelos confusos clamores de alguns centos de fanáticos reunidos para serem testemunhas deste ato de bárbara devoção. Todos os seus esforços se tornaram, então, inúteis; ela foi arrastada sobre a fogueira, onde caiu exausta de fadiga. Quando ali a sentaram à força, colocaram-lhe sobre os joelhos a cabeça de seu marido; pô-se fogo na palha amontoada debaixo da lenha, e as chamas, elevando-se ao mesmo tempo de todas as partes, envolveram a bela indiana e a esconderam a todos os olhos. Longas varas de bambu, sobre as quais os brâmanes se apoiavam com todo o seu peso, serviram para a segurar sobre a fogueira, com receio de que, nas torturas da sua agonia, não pudesse saltar dela. Seus tormentos não foram de muita duração, por causa da violência e da rapidez do incêndio.


Fonte: “Museo Universal”, agosto de 1842.

Fizeram-se breves adaptações textuais.


Notas:

1Vide a narrativa “O Demônio e o Faquir.

2Manteiga derretida extraída do leite de búfalo (N. do E. original.)

 

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