O DEMÔNIO E O FAQUIR - Conto de Terror - Autor anônimo do séc. XIX
O DEMÔNIO E O FAQUIR
Autor anônimo do séc. XIX
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
Havia, nas montanhas de Ellora, um faquir cujas virtudes e piedade eram citadas por toda a parte com admiração. O tempo que ele não passava em oração e na contemplação dos mistérios de Brama, empregava-o em obras de caridade, curava os enfermos, tratava dos animais doentes, animava os fracos, e cobria-se de estrume e de urina de vaca quase a cada instante, em expiação das culpas cometidas pelos pecadores, a quem ele exortava para que entrassem no caminho da salvação.
À força de ouvir gabar suas virtudes, à força de receber os testemunhos de admiração de todos aqueles que o aproximavam, este faquir, em lugar de considerar Brama como a divina fonte donde todas as suas virtudes emanavam, deixou-se levar por um sentimento de orgulho, e julgou-se daí em diante incapaz de pecar; chegou mesmo a apetecer provas para a sua virtude, a fim de triunfar delas.
— Eu vivo na solidão — dizia ele consigo — e não saio da minha gruta senão para ir fazer boas obras; a virtude é-me fácil. É necessário que eu mostre em que lutas posso entrar com o vício, sem ter que recear ser vencido nelas. Vou, pois, até á cidade vizinha e ali quero viver com os outros homens, sem perder nada, no meio deles, da minha temperança, da minha paciência, da minha caridade e do meu ardente culto para com Brama.
Com efeito, o faquir desceu da montanha e, logo que foi sabida a resolução que ele havia tomado de habitar no meio da população, todo o povo veio ao seu encontro com cestos cheios de frutos e ao som de mil instrumentos que retumbavam alegremente nos ares. O faquir recusou os donativos que se lhe apresentavam e retirou-se à casa — a mais pobre e a mais solitária da cidade—, sem mesmo tocar em um só dos frutos que deixaram junto dele, resolvido, como estava, a sustentar-se, como até ali, de simples e grosseiros bolos de trigo mourisco.
Enquanto comia este modesto alimento, veio-lhe uma ideia:
— Se eu não conheço o gosto destes frutos, que virtude pode haver, da minha parte, em não comer deles? É necessário que eu prove um, a fim de que a lembrança do seu delicado gosto dê mais valor à minha abstinência.
Tomou, então, um ananás e provou esta fruta doce como mel; mas, em vez de se limitar a este só fruto, em vez de tornar a tomar o seu bolo de trigo, devorou tudo o que o cesto continha, e comeu por tanto tempo e tão glutonamente, que se esqueceu de rezar a sua oração da tarde e de fazer suas abluções de estrume e de urina de vaca.
No dia seguinte, ele viu ir à fonte uma moça que graciosamente levava uma bilha à cabeça.
— Como é bela esta moça! — disse ele consigo. — Pena que não seja eu o seu esposo!
E seguiu a até a fonte. Ali, ele soube que a mulher, a quem achava tão bela, era casada e voltou triste e pensativo para a sua morada.
Não saiu senão três dias depois e esteve três dias ausente. Quando voltou, estava pálido e escondia o seu capote todo ensanguentado. O marido da moça tinha morrido de uma punhalada.
Passados três dias, no momento em que esta digna filha de Brama se dispunha a seguir à fogueira o corpo de seu marido e a lançar-se nas chamas que deviam reuni-la àquele que tinha sido seu senhor sobre a terra, o faquir postou-se entre ela e a cova inflamada.
— Suspendei! — exclamou ele. — Suspendei! Brama não quer que essa mulher morra. Ele acaba de aparecer me para me ordenar que a receba por mulher.
Um murmúrio de admiração se deixou ouvir entre os sacerdotes e a multidão. Qualquer outro que não fosse o faquir teria sido feito em pedaços ao proferir palavras ímpias e desta natureza; mas veneravam-no tanto que o julgaram inspirado. O sacrifício não se acabou e o povo e os sacerdotes conduziram, como em triunfo, à sua habitação o faquir, acompanhado da sua nova esposa.
O faquir foi pai de muitos filhos; pouco a pouco, o amor que ele havia concebido por sua mulher cedeu o lugar a um intenso aborrecimento da miséria, a desejos ambiciosos e à sede das riquezas e das grandezas.
Um dia em que ele meditava tristemente nas montanhas onde havia passado a sua mocidade, apareceu-lhe um demônio:
—Tu queres ser rico — disse-lhe este espirito das trevas. — Eu vou dar-te os meios de o conseguires. Traze aqui o mais moço dos teus filhos; mete-o nesta gruta; deixa-o, aí, morrer de fome e vota a sua alma aos gênios que habitam estas montanhas. Morta a vítima, tu receberás uma cabaça cheia de ouro, a qual se encherá de novo, logo que a tiveres vazado.
O faquir conduziu, no dia seguinte, seu filho, que morreu passados oito dias, depois de horríveis sofrimentos. No momento em que exalou a alma, a cabaça mágica saiu da terra aos pés do faquir.
Depois do ouro, o faquir quis palácios soberbos construídos em um momento.
O gênio voltou.
—Dá, todos os dias, uma gota deste veneno à tua filha mais moça — disse ele. — Logo que ela morrer, receberás uma vara mágica, com a qual tu edificarás, com a velocidade do pensamento, os mais belos palácios.
A menina foi envenenada e morreu. O faquir recebeu a vara mágica e os palácios subterrâneos de Ellora surgiram em um instante.
Finalmente, o faquir quis ser imortal e chamou o gênio.
— Para te conceder a imortalidade — respondeu-lhe o demônio, rindo —, são-me necessárias duas almas: tua mulher e a filha que te resta.
O faquir hesitou ao principio; mas sentia-se envelhecer e, bem depressa, conduziu sua mulher e sua filha ao mau gênio.
Este disse então ao faquir:
—Toma esta faca e fere-as tu mesmo.
O faquir recuou de horror.
—Então ficas um simples mortal; e prepara-te a morrer, porque a tua hora soou.
O faquir tomou a faca, voltou a cabeça e feriu sua mulher e sua filha, que se lhe haviam lançado aos pés.
O demônio deu uma horrível gargalhada e, agarrando o faquir, disse-lhe:
— Eu prometi-te a imortalidade; sustentarei a minha promessa. Homem virtuoso, que julgaste que a tua força provinha de ti e não do céu; celerado, que mataste teus filhos e tua mulher, muda-te em pedra com as tuas vítimas. Apesar da tua metamorfose, tu não perderás o sentimento; tu conservarás o pensamento no teu corpo tornado um rochedo, e servirás de exemplo e de objeto de terror aos insensatos que quiserem, como tu, deixar-se levar por criminosos sentimentos de orgulho.
No mesmo instante, o faquir e as suas vítimas formaram o baixo-relevo fatal, chamado o baixo-relevo do faquir, e uma profunda solidão reinou para sempre no palácio subterrâneo de Ellora.
Fonte: “Museo Universal”, agosto de 1842.
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