O FANTASMA - Conto Clássico de Horror - Autor anônimo do séc. XIX
O FANTASMA
Autor anônimo do séc. XIX
O último marquês d'Astros habitava, em alguns meses de verão, uma de suas herdades, nas vizinhanças de Palermo, no ano de 1808. Laura, sua filha única, enamorou-se de um jovem oficial, que havia encontrado num baile. Não esperando obter o consentimento de seu pai para coroar seu amor com os laços do himeneu, procurou, por muito tempo, vencer sua paixão; mas, sabendo que o oficial estava próximo a sair de Palermo com o seu regimento, anuiu, por fim, a seus incessantes rogos, e concedeu-lhe uma conferência para se darem o adeus de despedida.
À hora convencionada, achava-se Laura encostada à sua janela, espreitando, com ávidos olhos, que pareciam querer penetrar através da escuridão, a vinda do seu amado, quando viu um vulto que se movia, a pouca distancia do palácio, numa vereda que conduzia à próxima aldeia.
Julgou, a princípio, que fosse o seu amante, mas bem depressa reconheceu o seu erro; e notou que era uma figura gigantesca, vestida de branco, cujo andar lento e solene não parecia pertencer a um habitante deste mundo. Cheia de terror, fechou precipitadamente a janela e não ousou mais voltar a ela.
No dia seguinte, pela manhã, uma velha habitante da aldeia se apresentou para falar-lhe e entregou-lhe um bilhete do seu amante, que se lastimava de seu rigor; e lhe suplicava que lhe fosse mais fiel à sua palavra na noite seguinte. Laura, que tinha já esquecido seus temores, tomou a resolução de ser menos tímida que na véspera.
À mesma hora achava-se à janela; mas a mesma figura branca apareceu na avenida.
Apesar do seu terror, não quis Laura dar novo desgosto ao seu amante, e pensando, além disso, que não corria perigo algum no seu quarto, deixou-se ficar à janela. O fantasma continuou a avançar com passo grave e demorado e, ao voltar de um ângulo do parque, desapareceu na escuridão.
Laura, inquieta e receosa, esperou muito tempo, mas em vão: aquele que esperava não veio; e, tendo ouvido o relógio da igreja vizinha dar duas horas, oprimida de susto e de fadiga, recolheu-se tristemente para a sua câmara.
Contudo, à hora aprazada para se falarem, o oficial tinha saltado o muro do parque, e se dirigia cheio de esperança e de amor para o lugar onde devia encontrar a sua amante, quando, próximo já do palácio, ouviu algum rumor; e viu a figura gigantesca, de que havemos falado, dirigir-se para ele. A surpresa o obrigou logo a desembainhar a sua espada; o espectro fez o mesmo, e um combate furioso se empenhou, e concluiu logo de uma maneira funesta para o campeão oficial, que caiu aos pés do seu adversário. O fantasma vitorioso apenas viu o seu antagonista estendido no chão, sem tratar mais dele, nem dar-lhe socorro, e continuou a sua marcha que este encontro havia interrompido.
Mas o ruído das armas, tão perto da residência do marquês, não podia deixar de ser ouvido por ele, e, chamando os seus criados, ordenou-lhes que percorressem o parque, e se apoderassem de todos os indivíduos que ali encontrassem semelhante hora. Os criados, para obedeceram a seu amo, fizeram uma escrupulosa busca, mas inútil; nenhum vestígio encontraram do acontecimento que ali se passara.
O marquês D’Astros pareceu pouco satisfeito do resultado das diligências; mas contentou-se de dizer que talvez se tivesse enganado. Sua filha suspeitou a realidade, e pensou que o oficial e o terrível fantasma se haviam encontrado no caminho, e resolveu ir visitar, logo que pudesse, a velha que lhe trouxera na véspera o recado do oficial, esperando que lhe seria fácil tirar dela algumas informações.
Acompanhada de uma criada, tinha Laura chegado quase à extremidade do parque quando ouviu, com admiração, o seu cão favorito ganir com violência. Depois de o ter em vão chamado muitas vezes, dirigiu-se para a aquele lado, a fim de conhecer o objeto que causava a cólera ou terror do pequeno animal; mas parou, cheia de horror, à vista de um cadáver ensanguentado que estava escondido entre as moitas. No desacordo do seu terror, julgou ver o corpo de seu amante, e caiu desmaiada. Os gritos da criada atraíram logo àquele lugar uma multidão de habitantes e, entre eles, a velha camponesa, que era o objeto deste passeio. Laura, tornando em si, recebeu desta velha uma grande consolação, ouvindo-lhe que o seu amante estava escondido na sua cabana e que apenas tinha recebido uma ferida leve. A pobre menina concluiu naturalmente que, nesse caso, o cadáver era o do fantasma, cuja aparição lhe causava tantos sustos; e, mais sossegada, mas não sem alguma inquietação, voltou ao palácio.
Pela noite seguinte, a sua agitação e desassossego lhe afugentaram o sono, e, como se sentisse bastante incomodada, quis respirar o ar livre, e levantou-se para chegar à janela. Qual foi, porém, a sua admiração e terror vendo de novo o mesmo terrível fantasma da véspera! Julgou, então, que a velha aldeã se tinha enganado e voltou novamente à ideia de que a pessoa assassinada era o seu amante. Combatida por estas angústias, passou o resto da noite em um estado horrível.
Contudo, a velha tinha dito a verdade: o oficial estava na sua cabana. Quando este soube do cadáver encontrado, julgou também da sua parte que tinha dado no seu adversário um golpe mortal, antes de ter sido ferido.
Entretanto, o marquês havia mandado publicamente fazer uma inquirição severa sobre o assassínio cometido; porém, nada se pôde descobrir a respeito do matador, nem mesmo se pôde reconhecer quem era o homem assassinado. Mil rumores circularam nas vizinhanças, todos desagradáveis ao marquês, o qual, dando apenas à sua família poucas horas para fazer o preparativo de viagem, partiu arrebatadamente do castelo para ir habitar em outra parte da ilha.
Entre outros rumores espalhados pela credibilidade dos camponeses, dizia-se que se ouvia a sombra da vítima gemer na capela da aldeia, onde o cadáver fora enterrado. Ora, esta capela pertencia ao marquês; só ele tinha as chaves, e as portas não se abriam senão para a celebração das principais festas da Igreja.
Sem procurar agora saber o que estas narrações podiam conter de verdadeiro, interrompemos por um momento a nossa relação para saber o leitor que, pouco tempo antes de o crime cometido, o marquês d’Astros havia roubado violentamente uma menina de grande beleza, mas de baixa condição, a qual guardava em casa de pessoas da sua confiança na aldeia adjacente ao castelo, e, para evitar o escândalo publico e doméstico, só de noite ia ver a sua vítima.
O leitor conjecturará facilmente que o fantasma era o próprio marquês, o qual, conhecendo a credulidade da população siciliana, tomava este singular disfarce para ocultar aos habitantes do seu domínio o segredo de seus amores e de suas viagens noturnas. Numa destas excursões, encontrou o oficial e julgou ver nele um inimigo que esperava para o assassinar. Atacou-o e julgou tê-lo morto; mas o oficial, apesar apesar da sua ferida, conseguiu chegar ao lugar em que o esperava o seu criado e, ajudado por este, se refugiou na aldeia.
O marquês, posto que pela desaparição de seu contrário, não pudesse certificar-se de quem este era, não duvidou, todavia, de que era um mancebo a quem a menina roubada estava prometida em casamento, antes de ter caído em seu poder.
Firme nesta persuasão, sabendo que a sua vítima havia sempre conservado amor para o seu rival, e que por ele somente sentia desgosto e aversão, imaginou logo que o tramado assassínio intentado contra ele tinha sido concertado entre os dois amantes, zeloso e vingativa em extremo, resolveu tirar uma vingança assinalada das duas pessoas, que tão inocentemente despertavam suas suspeitas.
Na manhã seguinte ao seu encontro com o oficial, o mancebo em questão recebeu uma carta fingidamente assinada pela sua amante, na qual ela lhe pedia que se achasse à noite a uma hora, e num lugar indicado para a ajudar a salvar-se das mãos do marquês.
O desgraçado amante caiu no laço; dirigiu-se ao lugar indicado no bilhete, para ajudar a salvar-se das mãos do marquês, e foi recebido por três assassinos que o acabaram a punhaladas.
Seu corpo, escondido entre as moitas, foi descoberto na madrugada seguinte, como já dissemos, pela própria filha do marquês.
No mesmo dia, a menina havia misteriosamente desaparecido da casa, onde o marquês a tinha encerrada.
Nada de novo transpirou durante os primeiros dias que se seguiram à partida precipitada do marquês d'Astro. Unicamente os gemidos da capela pareciam tomar uma aparência de realidade; muitas pessoas que passavam por aquele sítio afirmavam tê-los ouvido distintamente, posto que mui fracos e sumidos.
Estas vozes levaram os habitantes da aldeia a tal ponto de exaltação que resolveram entrar à força na capela para explorar todo o seu interior.
As portas foram, portanto, arrombadas e as primeiras pessoas que entraram, conduzidas pelos gemidos que logo ouviram, dirigiram-se ao carneiro dos sepulcros, colocado debaixo do edifício
Chegando ali, descobriram a jovem senhora, que tinha desaparecido tão misteriosamente, no estado mais deplorável, e a ponto de morrer de fome.
Logo que, graças aos assíduos cuidados que lhe prestaram, a desgraçada recobrou algumas forças, contou que havia oito dias estava encerrada naquelas frias abóbadas, sem outras provisões mais do que dois pães e uma bilha com água, e, para completar o horror de sua situação, haviam colocado ao pé dela o féretro aberto de seu assassinado amante. Que, enquanto tivera mais forças, chamara em altas vozes por socorro, mas seus gritos não foram ouvidos, foram desprezados. Depois a grande fraqueza só lhe permitia soltar fracos gemidos, até que, por fim, as forças de todo lhe faltaram, mas, sentindo grande estrondo na capela superior, reunira seus últimos alentos para soltar alguns gritos, que felizmente a subtraíram ao horrível suplício, que uma mão cruel lhe havia preparado.
O que mais aumentava a atrocidade a uma tal ação era a fria barbaridade do marquês d'Astros, que havia dito à sua vítima, conduzindo-a viva ao túmulo, e como para lhe dar mentirosas esperanças, que ignorava se a deixaria ali morrer, mas que sempre lhe aconselhava que se preparasse para o pior, e ajuntou que, no caso de ele não vir, passados três dias, esta ausência devia ser considerada para a desgraçada como uma prova da sua intenção de a deixar perecer.
A pobre menina recobrou a saúde, mas o seu testemunho não pôde prevalecer contra a fortuna, influência e poderosas proteções do seu infame opressor.
Fontes: Diario de Pernambuco/PE, edição de 24 de setembro de 1842 e Publicador Maranhense/MA, edição de 28 de dezembro de 1842.
Comentários
Postar um comentário