O QUADRO ENFEITIÇADO - Conto Clássico de Mistério - C. G. Keronan
O QUADRO ENFEITIÇADO
C. G. Keronan
(Séc. XIX)
Espalhavam-se, a propósito da morte de seu amigo Bertrand, boatos tão estranhos, e eu próprio fui vítima de suspeitas tão odiosas; por esse motivo, resolvi redigir um relatório minucioso sobre o macabro acontecimento. Julgo que, assim, presto serviço não só à memória de Bertrand, como à honra de meu nome, pois que a polícia, depois de me envolver, sem razão alguma, em seu inquérito, foi, em seguida, tomada de uma discrição inconcebível, e resolveu não comunicar à imprensa o resultado final das pesquisas.
O caso começou assim: em maio último, eu recebi uma carta na qual meu velho colega de escola me pedia que fosse procurá-lo em sua casa. Os termos em que ele me fazia esse pedido eram tão obscuros e singulares que não perdi um momento. Corri a atendê-lo.
Encontrei Bertrand deitado em uma chaise-longue. Havia apenas oito dias que não nos encontrávamos; por isso, fiquei estupefato ao vê-lo tão mudado; com o resto emaciado, um halo azulado em torno dos olhos luzentes de febre e, sobretudo, sua voz me pareceu totalmente outra, hesitante, longínqua… E o que essa voz dizia ainda mais aumentou a angústia inexprimível, que me dominara, logo ao entrar em sua residência.
— Não penses que estou doido — dizia a voz. — Bem sabes que afrontei uma existência movimentada e cheia de perigos, sob todos os climas do planeta, sem perder o sangue-frio. Posso, sem vanglória, gabar-me de que já dei sobejas provas de minha coragem… Mas… Está-se passando, nesta casa, há alguns dias, uma coisa inexplicável, inaudita, sobrenatural… uma coisa que está me dando medo de enlouquecer. Mas, em primeiro lugar, olha.
Ergueu-se penosamente e levou-me para diante de um quadro pendurado à parede, em frente de seu leito. Era um retrato de mulher, que seria vulgar sem a implacável expressão de maldade que o artista conseguira condensar em seu olhar. Fitando aqueles olhos, sentia-se uma espécie de mal-estar, que, sem ser precisamente terror, deixava em nosso espírito uma obsessão do mal-estar a que não pedíamos fugir.
Quando consegui afastar meu olhar dessa enigmática tela, voltei-me para Bertrand. Seus maxilares tremiam convulsivamente, sua fronte estava inundada de suor. E ele disse-me:
— Desde o dia em que comprei esse quadro e o pus aí… ele me produziu a impressão que, vejo agora, produziu também sobre ti; a tal ponto que, à noite, não me foi possível dormir e os poucos instantes de sonolência por que passei foram povoados por pesadelos horripilantes. Para evitar a renovação dessa tortura, eu, na noite seguinte, antes de me deitar, voltei a tela para a parede. E imagina meu assombro quando, no dia seguinte, ao despertar, vi esses olhos cruéis de feiticeira fixando-me intensamente. O quadro estava de novo voltado para mim.
Fiz um movimento sobressaltado ante a enormidade da afirmação, porém Bertrand, sem me dar tempo para uma palavra, continuou:
—E, desde então, tem sido assim todas as noites. Fecho a porta e as janelas solidamente, tenho certeza absoluta de que ninguém pode penetrar aqui durante meu sono; não me deito sem voltar essa figura maldita para a parede, e, pela manhã, encontro-a voltada para mim. Não é horrível? Já sei o que você vai me dizer. Que o mais simples é me desfazer desse quadro… Jogá-lo fora, entregá-lo a um negociante para que o venda por qualquer preço… Mas não quero… Se não decifrar o enigma que ele agora representa para mim, enlouqueço.
Ergui os ombros, com impaciência, porém ele insistiu numa súplica sincera:
— Tu és o meu melhor amigo. Faze-me um favor. Passa uma noite aqui comigo. Sabendo-te aqui, eu dormirei mais tranquilo. Tu talvez desvendes o mistério que me cerca.
Podia eu recusar-lhe esse serviço?
Na mesma noite, instalei-me em uma poltrona junto de seu leito. Fechadas bem portas e janelas, e voltado para a parede o enigmático retrato, Bertrand deitou e não tardou a adormecer.
Eu, pelo sim pelo não, pusera um revólver sobre a mesa de cabeceira ao alcance de minha mão e deixei acesa uma minúscula lâmpada elétrica que lançava um clarão suficiente sobre todas as coisas no quarto. As horas passaram… Quantas? Não sei, porque, pouco a pouco, o sono se apoderou de mim.
Um ligeiro estalido despertou-me e, abrindo os olhos, vi Bertrand, que se erguia do leito com gestos cautelosos. Meu assombro foi tamanho que me fez ficar imóvel, mudo.
Com os olhos abertos, mas sem me ver, meu amigo passou diante de mim, foi ao fundo do quarto, volteou o quadro e voltou a se deitar. Quando ele de novo se aproximava de mim para chegar à cama, não pude conter um grito de susto de indignação… sei lá.
Ele estremeceu violentamente, fitou-me com olhar apavorado e caiu como uma massa.
O médico, que o veio examinar, explicou que o infeliz sonâmbulo sofria do coração e que o meu grito, despertando-o bruscamente, matara-o.
Mau eu lá podia saber disto?
Fonte: Eu Sei Tudo/RJ, edição de março de 1927.
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