MÃE TAPUIA - Conto Clássico de Horror - Medeiros e Albuquerque
MÃE TAPUIA
Medeiros e Albuquerque
(1867 – 1934)
A Márcio Nery
Íamos subindo o rio. Passávamos nesse momento uma garganta estreitíssima, quando um tronco de árvore nos fechou o caminho. A corrente era naquele lugar pouco profunda; via-se a areia do leito a tão pequena distância da superfície que, dali até as nascentes, era fácil ir a vau. O tronco, era impossível arredá-lo. Metemo-nos resolutamente na água, tomamos em mãos a pequeníssima canoa de fundo chato, carregamo-la por terra até além do empecilho e continuamos a subir.
As margens eram de mata densa e virgem. Distinguiam-se apenas os dois renques de árvores e, mal entre eles, divisavam-se outras e outras indefinidamente. Raízes nodosas e informes serpenteavam dentro do rio, cheias de curvas e cotovelos, assustando às vezes quando a trepidação da água parecia fazê-las mover-se como enormes cobras. As ramarias, de um e outro lado, encontravam-se formando sobre nós um dossel de folhagem, que o sol rasgava a custo aqui e ali, abrindo na água clara poças douradas.
Parasitas vermelhas e azuis pendiam desatadas em festões; cipós, de caule em caule, teciam redes intrincadas; longas barbas-de-velho escorriam dos galhos altos, dando-lhes um ar triste de melancolia e vetustez. Vinha, de todos os pontos, ao mesmo tempo, um chilrear confuso de pássaros: e, se uns, de quando em quando, cortavam o espaço diante de nós, outros, abrindo voo através dos ramos mais elevados, rasgavam a cúpula e perdiam-se no céu azul, adivinhado apenas dali onde nós estávamos. Borboletas iam e vinham, subiam e desciam, na azáfama multicor das asas leves, agitando-se e pousando em perpétuo afã. E pássaros ou borboletas, ao passarem sobre o rio, desdobravam-se pelo reflexo, voando dentro da água, nadando no ar sereno...
Chegamos enfim. Meus dois companheiros, Pedro e Tiago, eram dois caboclos amazonenses de sangue cruzado, dois curibocas1 escuros, quase bronzeados, filhos de pais portugueses e mães índias. Eram tão graves e sérios que nem mesmo sabiam rir, fechados como viviam em um mutismo indolente e inerte, indiferentes a tudo…
Atamos a canoa — a montaria, como lá lhe chamam no Amazonas — e trilhamos enfim terra firme: um atalho da floresta. Tínhamos ainda uma boa légua para andar e metemo-nos a caminho decididamente: o Pedro na frente, eu no centro e o Tiago fechando a marcha. Não se dizia palavra. Ouvia-se somente o pisar de folhas secas e, do caboclo que ia adiante, o quebrar dos galhos, que por acaso bracejavam para a estrada, estorvando-a.
Tínhamos andado cerca de meia hora, quando o Pedro, voltando-se, apontou à esquerda e disse ao irmão:
—Paresque é ali a tapera da veia2…
E seguiu, enquanto o outro se virava com interesse. Olhei também. Vi um casebre miserável, feito de troncos de árvores e coberto de sapê. Grandes ramos sobre o teto impediam que a erva seca fosse levada pelo vento. Do abandono e ruína em que jaziam, davam evidentes provas a porta desmantelada, quase a cair, e a erva, em torno, crescendo alta e abundante, invadindo tudo, sem uma trilha qualquer calcada de pés humanos.
Mas o que havia de notável era, na frente, uma cruz enorme feita de dois imensos galhos, atados um ao outro com embiras fortíssimas. O ramo vertical estava fundamente enterrado no chão e, em volta do sopé, para garantir melhor a estabilidade, pedras pesadas erguiam-se em montículo.
Íamos depressa; passamos rapidamente. Ficou-me, porém, a curiosidade, e indaguei do Tiago de quem fora aquela maloca, hoje abandonada.
O curiboca contou singelamente. Morava ali uma tapuia3 velha com dois netinhos. Morrera-lhe a filha, deixando apenas à sua solicitude aquelas duas crianças: uma delas — um pequerrucho — com alguns meses somente e a outra, uma menina, com dez anos. A velha, que mal podia consigo, acolheu-os, entretanto; e meses correram de perfeita paz. Uma noite, porém, a tapuia, picada de jararaca, entrou em casa arrastando-se. Matara a cobra, mas fora mordida em uma das pernas, que lhe doía horrivelmente.
Mandou depressa a menina ao sítio do coronel Carvalho — sítio vizinho, para onde nós íamos — buscar remédio contra a mordedura. O remédio era uma puçanga4 infalível que ela mesma preparara e de que, todavia, não tinha em casa nesse momento. Mas a pequena — era já quase noite — perdeu-se no caminho e só no outro dia chegou ao seu destino, guiada por um regatão5 que a encontrou. Quando, pois, ela veio, acompanhada de mais gente, já era tarde.
Encontrou a velha espichada no chão, meio nua, inchada, com o rosto contorcido de dor, as órbitas reviradas e sangrentas, por entre os dentes brancos uma espuma vermelha e negra… As mãos crispadas enterravam-se no chão; os pés estavam torcidos em uma contratura horrorosa… Os seios magros, flácidos, pelanquentos, apareciam hediondos e descobertos… O pequenino, pelo hábito de iludir o apetite mamando aquelas tetas estéreis de velha, tinha ainda uma delas entre os lábios.
Farto de chupá-la, querendo talvez acordar a mãe tapuia, cravara os dentinhos; o sangue mau e envenenado contaminara-o. Estava morto também, também inchado…
O curiboca contou tudo isso em meia dúzia de palavras rudes e simples. Voltamos ao silêncio. Ouvia-se somente o pisar de folhas secas, e do caboclo que ia adiante o quebrar dos galhos que por acaso bracejavam para a estrada, estorvando-a…
Fonte: “Mãe Tapuia – Contos”, F. Briguet & Cia/ H. Garnier Livreiro Editor, RJ.
Notas:
1Caboclo; descendente de índígenas brasileiros e europeus.
2Em itálicas, corruptelas de “parece que” e “velha” (pronuncia-se véia)
3Indígena.
4Beberagem.
5Homem rude.
Comentários
Postar um comentário