O CRIMINOSO HIPNOTIZADOR - Conto Clássico de Mistério - Caius Martius

O CRIMINOSO HIPNOTIZADOR

Caius Martius1


—Miss Bianca, encontrei sobre a secretária uma notícia anotada a lápis encarnado. Que pensa a minha amiga a respeito?

—Acho, Sr. Barrios, um tanto extraordinária a morte ou, como diz o jornal, o suicídio do banqueiro Pontes. Não que uma pessoa nas condições do capitalista, por motivos que escapam à nossa percepção, ponha fim à existência; isto pode acontecer. O esquisito é que, pela terceira vez, em menos de seis meses, um banqueiro faz saltar os miolos. Segundo informações que consegui colher, todos os três suicidas encontravam-se em plena prosperidade. Como se explica tal fenômeno em três homens, todos três, note bem, alegres, folgazões, gozadores da vida?

—Miss, há um provérbio de muito alcance. Caso se tratasse de um crime, poder-se-ia aplicá-lo: “buscar aquele a quem aproveita o crime”.

—Nos casos presentes, Sr. Barrios, o provérbio não teria aplicação alguma. Vejamos: O primeiro suicida, Marchieli, era um solteirão. Só se lhe conheceram duas paixões: a música e a caça. Era só no mundo: nenhum parente. Os seus bens reverteram para o Estado. O segundo, o comendador Soares. Tinha este, é verdade, um filho. Acontece, porém, que o seu herdeiro forçado, pela morte da avó, herdará uma fortuna três vezes maior que a do seu pai. Que interesse podia ter ele na morte do banqueiro com quem, aliás, vivia em boa harmonia? Falemos um pouco do Pontes. A sua casa a de vento em popa. Com transações de café, no ano findo, ganhou uma fortuna. Era viúvo, nunca teve amores escandalosos. Não fez testamento: a sua herança passa para as mãos de uma sobrinha freira.

“Assim sendo, o provérbio lembrado pelo Sr. Barrios não tem lugar.

“Queira agora tomar conhecimento de uma circunstância muito interessante: os três suicidas, na véspera de embarcarem, haviam levantado grandes somas que não apareceram e de cuja aplicação não se teve notícia. Agora, pergunto: tudo isto não lhe parece muito extraordinário?”

—Eh! Minha amiga, a senhorita é dotada de uma imaginação muito fértil, mas sou obrigado a confessar que as suas conclusões obedecem à perfeita lógica. Convenhamos, contudo, em que não há a mais pequena suspeita de crime e… Miss, a senhorita já ouviu falar num certo professor Martin, que vem obrando prodígio na aplicação do hipnotismo? Diabo: não sei por que me vem à ideia a lembrança de semelhante criatura… Qual!… Infantilidade!… Contudo!…

Miss Bianca estava assombrada diante da atitude de Barrios. Mudara, de repente, de assunto. Esforçava-se para seguir a ideia do mestre, mas em vão.

—Sr. Barrios, se o não conhecesse tão bem, julgaria que houvera enlouquecido. Que histórias estas de hipnotismo? Professor Martin?

“Não há duvidas de que já ouvi falar nele. Pudera, os jornais não têm tratado de outra coisa. Dizem que o número de curas obtidas pelo seu processo já monta a 96. O senhor crê que, de fato, se possa curar pelo hipnotismo?”

—Certamente, minha amiga. Medeiros e Albuquerque2, que é dele um grande cultor, afirma, num interessante livro que fez editar, O Hipnotismo3, e cuja leitura lhe recomendo, que tem obtido curas maravilhosas por meio daquela terapêutica. O seu trabalho só não convence a quem não quer ser convencido.

“Voltemos, porém, ao que interessa. Queira retirar o volume 2º da série encarnada.”

Logo que a detetive lhe entregou o livro pedido, depois de consultado o índice, Barrios procurou uma página que deu a ler à sua auxiliar.

Depois de percorrida a vista por ela, Miss Bianca disse:

— É interessante o que o senhor acaba de me mostrar. Não haverá, porém, fantasia em tudo isto?

—Alguma, não há dúvida. No meio, porém, das tiradas literárias, ressalta a realidade da coisa.

O que lera Miss Bianca foi que certo médico austríaco, dotado de uma força hipnótica pouco comum, desviando-se do caminho reto, metera-se na senda do crime. Organizara uma quadrilha onde figuravam pessoas de todas as ciasses sociais, as quais agiam sob a força do hipnotismo. Os roubos mais ousados eram praticados e a polícia, em vão, trabalhava para descobrir o culpado, até que, por uma imprudência do chefe do bando, as autoridades lhe deitaram a mão.

—Sr. Barrios, eu temo compreendê-lo. Julgará o senhor que um caso semelhante…

—Tudo é possível, Miss. Os fatos históricos repetem-se muitas vezes e os criminosos ainda mais. Esse tal professor Martin aqui apareceu de um dia para o outro. Nunca li que os jornais estrangeiros se ocupassem de sua pessoa. Entre nós, infelizmente, não se trata de procurar a verdadeira identidade de qualquer indivíduo que por aqui surja. E, se esse indivíduo traz alguma bagagem literária ou científica ou vem doado com alguns contos de réis, o descuido das autoridades ainda é maior. Enfim, o que está feito, está feito. Tratemos, minha amiga, de examinar de perto esse tal profeta. Encarrego-a dessa tarefa. Aproxime-se dele. Antes, porém, vou recomendá-la ao Medeiros e Albuquerque, por intermédio de um amigo. É necessário tomarem-se precauções. Assim, fará algumas sessões com ele, a fim de se evitar que a minha amiga possa ser hipnotizada pelo professor Martin.

—Está combinado, Sr. Barrios. Vou tratar de alguns negócios e, à noite, voltarei, a fim de assentarmos as bases da campanha.


* * *


Passados alguns dias, vamos encontrar, na espaçosa biblioteca do detetive Barrios, o dono da casa, o chefe de polícia, um conceituado médico amigo do detetive e a inseparável Miss Bianca.

—Tem a palavra a nossa colega — disse Barrios, sorrindo e dirigindo-se à sua querida auxiliar.

—Antes de tudo, meus senhores, devo declarar-lhes que o nosso homem mostra-se desconfiado. Temos que nos apressar.

“Conforme ordens que recebi do Sr. Barrios, procurei aproximar-me do professor Martin, cuja clientela cresce de dia para dia.

“Não foi sem receios que respondi ao meu número, quando o seu empregado fez a chamada: — ‘O n. 13!’. Imaginem, meu senhores. O número, por si, já era pouco recomendável. Enfim, como não tinha ido ali para outra coisa, me deixei conduzir. Expus-lhe o motivo que me levava à sua presença. Sofria de umas dores de cabeça horríveis, para as quais não encontrara ainda remédio. Preparou a mise-en-scene e tentou hipnotizar-me. Baldados esforços. Depois de uma luta tremenda por parte do professor, cujos fluidos vinham chocar-se contra a resistência que encontraram no meu organismo, furibundo, sem a mínima delicadeza, assentou um tremendo murro sobre a mesa e pôs-se a gritar que não encontrara nunca uma pessoa refratária, etc.

“Neste ínterim, abre-se uma porta marcada por um reposteiro e por ela penetra na sala um indivíduo tal como um autômato.

“Martin, furioso, pegou-o pelos ombros e fê-lo desaparecer, fechando em seguida a porta.

“Eu, porém, tivera tempo de examinar as feições do tipo. Reconheci-o no caixa que me pagava os cheques no Banco Andes, cujo presidente era o Pontes. Sem nada dar a perceber, me despedi, ficando marcada para depois de amanhã a segunda sessão.

“É tudo o que pude descobrir.”

—Qual a tua opinião, Barrios? — interrogou o chefe de polícia.—Não podemos agir, por enquanto. Temos presunção; provas, porém, nenhuma.

—Eu tenho uma ideia —quem assim falava era a detetive.

—Somos todos ouvidos, Miss — responderam os presentes.

—E se nós resolvêssemos esse caso por um golpe teatral?

—Venha a ideia.

—Ora, o doutor aqui presente é amigo íntimo do autor d 'O Hipnotismo. Por seu intermédio, podemos obter a sua cooperação. Arranja-se uma festa onde haja vários números. Convide-se o professor Martin e seremos por demais destituídos de inteligência se não conseguirmos colocar os dois hipnotizadores um em presença do outro. O que for, soará.

—Aprovada! — responderam todos.


* * *


A viúva Moraes dava, na sua opulenta propriedade, uma festa magnífica em benefício de uma obra de caridade. O salão regurgitava. O alto mundo acotovelava-se… Alegria por toda a parte.

Depois de recitativos e cantos, que se fizeram ouvir por amadores, em um palco improvisado, chegou a vez do número sensacional.

O professor Martin, insistentemente convidado, se dignara de dar um sessão de hipnotismo. Antes, porém, havia ele sido apresentado a um industrial, o engenheiro Burti, que viera do Chile com intenção de fundar várias fábricas no Brasil. Imensamente rico, muito educado, o elegante estrangeiro tornou-se desde logo alvo de gentilezas.

Em agradável palestra, esteve com ele o professor Martin até o momento em que o vieram chamar para dar inicio ao seu trabalho.

Depois da arenga costumeira, o célebre hipnotizador perguntou se alguém havia ali que se quisesse prestar a uma experiência.

O industrial Burti ofereceu-se. Aplausos gerais. O trabalho de hipnotização, a princípio, não deu resultados. Ambos, porém, eram da mesma força. Com o continuar do exercício, porém, o professor Martin parecia ceder terreno. De fato, debaixo da estupefacção geral, o professor passou de hipnotizador a hipnotizado.

O chefe de polícia, Miss Bianca e o professor Barrios, que reclamavam silêncio dos espectadores, estavam por sua vez maravilhados.

O industrial começou a dar ordens imperativas ao adormecido. Resistindo, a princípio, o professor Martin, respondendo às perguntas de Burti, confessou que costumava hipnotizar pessoas de haveres, as quais lhe entregavam, a determinada hora, o dinheiro de que ele precisava.

À pergunta do hipnotizador por que sugestionava as vítimas, impelindo-as ao suicídio, uma vez que já se achava ele de posse das importâncias exigidas, respondeu que “a humanidade é perversa e que não melhorará enquanto não se destruir um terço dela”.

—É Silberman! — gritou Barrios fora de si, com todas as forças dos seus pulmões. A esse grito, o hipnotizado despertou e, reconhecendo o laço no qual havia caído, deixou escapar uma blasfêmia horrível, e, saltando como uma fera sobre os espectadores, abriu passagem à força de pulsos e desapareceu.

Tudo isto se passou em menos tempo do que se leva a descrever.


* * *


—Então, Barrios?

—Fomos enganados, chefe. O homem atingido pelo projétil de Miss Bianca não era Silberman. Deixamo-nos iludir pelo exame superficial.

—Mas a sua “individual dactiloscópica”, fornecida pelo Gabinete de Identificação, é idêntica à que foi tirada do cadáver no necrotério.

—É que o tratante mandara um comparsa identificar-se no Gabinete como sendo ele, para o que desse e viesse.

—Mas como descobriste no professor Martin o celebre criminoso?

—Não te lembras da ideia fixa de Silberman? —“Destruir um terço da humanidade, etc.”. Foi por isso que roubou a cultura do micróbio da espanhola. É o diabo termos que recomeçar. Nada podemos fazer sem que ele dê sinal de vida. Deve estar prevenido, o canalha!…


Fonte: “Vida Policial”/RJ, edição de 27 de fevereiro de 1926.

Ilustração: PS/Copilot.


Notas:

1Pseudônimo de Cláudio de Mendonça (1888 – 1954).

2José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (1867 – 1934), escritor pernambucano, membro da Academia Brasileira de Letras.

3Livro publicado em 1921.

 

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