O PEQUENO CADÁVER - Conto Clássico Sobrenatural - René Bizet

O PEQUENO CADÁVER

René Bizet

(1887 – 1947)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX



A tempestade não cessara durante a noite toda, atirando-se contra as rochas do litoral, as árvores e as casas da aldeia. Ao amanhecer, uma viração fresca veio do mar, animando os pescadores a correr ao porto, a ver se as suas embarcações não haviam desgarrado.

Finda a missa das sete horas, Honedic ouviu gritos em direção da ponte:

Há um cadáver na praia!

Rapidamente a notícia correu a vila, indo todos, homens e mulheres, para o local onde se gritava. Era um cadáver de recém-nascido, que o mar ali atirara desumanamente.

Pobrezinho!

Era um negrinho. Vinha da direção dos Antilhas e despertava, pela cor, a curiosidade que desperta um passarinho morto, essa curiosidade impiedosa e indiferente para os moradores do lugar, que se sentiram ao mesmo tempo felizes por ver que não era gente deles nem de portos vizinhos.

Enterrá-lo no cemitério? Mas isso seria uma profanação para o lugar sagrado, onde, havia séculos, dormia a alma da aldeia. Seria, talvez, levar a desgraça para o seio daqueles que nela viviam tranquilamente.

Resolveram, pois, enterrá-lo à flor do solo, perto da ponte das cabras. E fizeram-no rapidamente, sem que nada assinalasse o ponto onde jazia o pobre cadaverzinho, do qual ninguém se aproximava, que metia medo às crianças e fazia que as mulheres se persignassem quando o evocavam.

Mas, como se o destino marcasse aquela vila, o inverno foi cheio de borrascas e de naufrágios. Três barcas não mais voltaram da pescaria. Os campos ficaram cheios da lama das trovoadas e as lavouras secaram com o gelo em abril.

Não valiam as preces.

A desgraça como que asfixiava a vila. O vento, principalmente, era bizarro. Os pescadores não se lembraram de outro semelhante. Começava suave e transformava-se, bruscamente, em ventania cortante que enregelava. Entretanto, com ele vinha um delicadíssimo perfume de flores, como se, antes de soprar naquele porto da costa, houvesse passado por algum jardim do paraíso.

De onde viria ele?

Do fim do mundo, talvez.

Ninguém sabia explicar aquilo, mas todos acreditavam na influência do cadaverzinho.

Num domingo, o vigário resolveu abençoar o lugar onde jazia o miserável para espantar os maus espíritos, que, sem duvida, o atormentavam.

Houve quem pensasse em atirar, novamente, o cadáver ao mar, para tranquilidade da vila; mas o sacrilégio não foi cometido graças ao medo dos castigos do céu.

E o vento misterioso continuava a passar, deixando atrás de si um rastro balsâmico…

Uma manhã, depois de uma noite tumultuosa, tudo mudou. A atmosfera estava pura, calma e transparente. Respirava-se como outrora o odor são dos sargaços. O pesadelo que dominava o lugarejo parecia haver fugido com o temporal da noite. O porto animava-se como antigamente. Os velhos apareceram à soleira da porta de seus casebres e as crianças puseram-se de novo a correr pela aldeia. A vida como que renascia, boa e alegre.

Ter-se-ia a alma do negrinho apaziguado? — perguntavam um.

Resolveu-se, afinal, a deixar de fazer-nos mal?

E, como no dia em que apareceu atirado à praia, toda a vila foi à ponte das cabras ver o cadáver.

De repente, os que iam na frente deram um grito! No lugar sepultura, havia um buraco. Alguém escavara o solo e retirara o cadáver. Mas, ao redor, não havia o menor sinal de passadas que denunciassem a presença de quem quer que fosse. Nada indicava que o corpo tivesse sido jogado ao mar ou à praia. A estupefação no cortejo foi geral. Pouco faltou para que se visse, naquele desaparecimento, um mau agouro. E nenhum dos moradores da vila soube explicar depois como não disparou naquele momento a correr.

Foi o vento da terra dele que o reclamava e que o veio buscar — disseram.

A explicação satisfez plenamente à simplicidade de sentimentos dos aldeões, que se ajoelharam diante da cova daquele que voltara para sua terra distante, levado pelo vento pérfido e perfumado…


Fontes: “Fon-Fon”/RJ, edição de 16 de março de 1932; “Correio da Manhã”/RJ, edição de 13 de janeiro de 1935.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

Ilustração: Stock Cake (Photo by <a href="https://stockcake.com/i/stormy-beach-view_1373704_576260">Stockcake</a>)


 

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