KALI - Conto Clássico de Horror - Guy de Maupassant
KALI1
Guy de Maupassant
(1850 – 1893)
Tradução de autor anônimo do séc. XIX
O almirante de la Vallée, que parecia dormitar no seu cadeirão, pronunciou na sua voz de velho:
— Tive uma pequena aventura de amor, muito singular; querem que a conte?
E falou, sem se mexer do fundo da sua ampla cadeira, conservando nos lábios esse sorriso enrugado que nunca o abandonava, sorriso à Voltaire que o fazia passar por um espantoso cético.
I
— Tinha eu então trinta anos e era tenente de marinha, quando me encarregaram de uma missão astronômica na Índia Central. O governo inglês proporcionou-me todos os meios necessários para levar a minha empresa a cabo, e entrei com uma comitiva de alguns homens nesse país estranho, surpreendente, prodigioso.
Seriam necessários vinte volumes para contar essa viagem. Atravessei regiões inverossimilmente magníficas; fui recebido por príncipes de uma beleza sobre-humana e vivendo numa incrível magnificência. Pareceu-me, durante dois meses, que marchava num poema, que percorria um reino de mágica sobre o dorso de elefantes imaginários. Descobria, no meio das florestas fantásticas, ruínas inverossímeis; encontrava em cidades de uma fantasia de sonhos prodigiosos monumentos, finos e burilados como joias, ligeiros como rendas e enormes como montanhas, esses monumentos fabulosos, divinos, de uma graça tal que se cria amor às suas formas como se pode criar amor a uma mulher, e que se tem ao vê-los um prazer físico e sensual. Enfim, como disse Victor Hugo, eu andava acordado dentro dum sonho.
Alcancei, enfim, o termo da minha viagem, a cidade de Gemhará, outrora uma das mais florescentes da Índia Central, hoje bem decaída e governada por um príncipe opulento, autoritário, violento, generoso e cruel, o rajá Maddan, um verdadeiro soberano do Oriente, delicado e bárbaro, afável e sanguinário, de uma graça feminina e de uma ferocidade implacável.
A cidade é no recôncavo de um vale à beira de um pequeno lago, rodeado por um povo de pagodes que banham na água as suas paredes.
De longe, forma uma nódoa branca que se alastra ao passo que o viajante se aproxima e, pouco a pouco, se descortinam os zimbórios, os minaretes, os coruchéus, todos os remates elegantes e esbeltos dos graciosos monumentos indianos. Pouco mais ou menos a uma hora das portas, encontrei um elefante soberbamente ajaezado, rodeado de uma guarda de honra que o soberano me enviava. E fui conduzido ao palácio em grande pompa. Eu quisera ir vestir-me com luxo, mas a impaciência régia não me permitiu. Queriam primeiro conhecer-me, saber o que teriam a esperar de mim como distração; depois. veriam.
Fui introduzido, entre alas de soldados brônzeos como estátuas e cobertos de uniformes cintilantes, numa grande sala rodeada de galerias, onde se perfilavam homens vestidos de túnicas brilhantes e estreladas de pedras preciosas.
Num banco semelhante a um dos nossos bancos de jardim, sem espaldar, mas forrado de um tapete admirável, avistei um vulto reluzente, uma espécie de sol assentado; era o rajá que me esperava, imóvel, numa túnica do mais puro amarelo-canário, tinha em cima de si dez ou quinze milhões de diamantes e, na fronte, brilhava, sozinha, a célebre estrela de Delbi, que pertenceu sempre à ilustre dinastia dos Parihara de Mundose, de que o príncipe era descendente.
Era um rapaz dos seus vinte e cinco anos, que parecia ter sangue negro nas veias, bem que pertencesse à mais pura raça hindu. Tinha os olhos grandes, fitos, um pouco vagos, os pômulos salientes, os lábios grossos, a barba amarelada, a testa pequena, e uns dentes alvíssimos, agudos, que muitas vezes mostrava num sorriso maquinal.
Ergueu-se e veio-me estender a mão, à inglesa, depois fez-me sentar a seu lado num banco tão alto que os meus pés mal tocavam o chão. Estava-se ali muito mal. E propôs-me logo uma caçada ao tigre para o dia seguinte. As caçadas e as lutas eram as suas grandes ocupações e nem compreendia que alguém se pudesse importar com outra coisa. Persuadia-se, evidentemente, de que eu não tinha vindo de tão longe senão para o distrair um pouco e acompanhá-lo nos seus divertimentos.
Como eu precisava muito dele, tratei de lhe lisonjear as inclinações. Tão satisfeito ficou com a minha atitude que me quis mostrar imediatamente um combate de lutadores, e arrastou-me para uma espécie de arena situada no interior do palácio. A uma ordem sua, apareceram dois homens nus, acobreados, com as mãos armadas de garras de aço; e atacaram-se logo, buscando ferirem-se com essa arma contundente, que lhes traçava na pele extensos rasgões de onde o sangue corria. Durou aquilo muito tempo. Os corpos eram uma chaga, e os combatentes continuavam a esfarrapar as carnes com aquela espécie de ancinho feito de lâminas agudas. Um deles tinha a cara espatifada; o outro tinha uma orelha rasgada em três. E o príncipe olhava aquilo com uma alegria feroz e apaixonada. Estremecia de contentamento, soltava gritinhos de prazer, e imitava com gestos inconscientes todos os movimentos dos lutadores, gritando sempre:
— Fere! Fere!…
Um deles caiu sem sentidos; foi necessário levá-lo da arena tinto em sangue, e o rajá soltou um longo suspiro de pesar, de pena que já estivesse acabado. Voltou-se depois para mim, para conhecer a minha opinião. Eu estava indignado, mas felicitei-o vivamente; e ele, então, ordenou logo que me conduzissem ao Cuch Mahal, palácio do prazer, onde residiria. Atravessei os inverossímeis jardins dessas paragens e cheguei à minha residência.
Esse palácio — essa joia —, situado no extremo do parque real, mergulhava no lago sagrado de Vihará um lado inteiro das suas paredes. Era quadrado, apresentando por todas as faces três filas sobrepostas de galerias em colunatas, divinamente lavradas. A cada canto elevavam-se torreões ligeiros, altos ou baixos, sozinhos ou a dois a dois, de tamanho desigual e de fisionomia diferente, que bem pareciam as flores naturais desabrochadas naquela graciosa planta de arquitetura oriental. Todos eram encimados de tectos extravagantes.
Ao centro do edifício, um formidável zimbório elevava até um delicioso campanil delgado e todo rendilhado, a sua cúpula alongada e redonda, semelhante a um seio de mármore branco apontado para o céu. E todo o monumento, de alto a baixo, era coberto de esculturas, desses deliciosos arabescos que embriagam o olhar, de procissões imóveis de personagens delicados, cujas altitudes e cujos gestos de pedra contavam os costumes da Índia.
Os quartos eram alumiados por janelas em arcos rendilhados deitando para os jardins. No pavimento de mármore, graciosos ramilhetes eram desenhados a ônix, a lápis-lazúli e a ágatas. Mal tivera tempo de acabar a minha toalete, quando um dignatário da corte, Haribadada, especialmente encarregado das comunicações entre mim e o príncipe, me anunciou a visita do soberano. E o açafroado rajá apareceu, apertou-me de novo a mão, e pôs-se-me a contar mil coisas, perguntando-me a cada passo a minha opinião, que tinha imenso trabalho em lhe dar. Quis, depois, mostrar-me as ruínas do palácio antigo no outro extremo dos jardins.
Era uma verdadeira floresta de pedras, que um povo de grandes macacos habitava. À nossa aproximação, os machos deitaram a correr pelas paredes, fazendo-nos horríveis caretas, e as fêmeas fugiram, levando ao colo os filhos. O soberano ria doidamente, beliscava-me o ombro para me testemunhar o seu prazer, e sentou-se no meio dos escombros, enquanto que, à volta de nós, agachados no alto das paredes, empoleirados em todas as saliências, uma assembleia de animais de suíças brancas nos deitava a língua de fora e nos mostrava o punho.
Depois de se fartar desse espetáculo, o soberano amarelo ergueu-se e pôs-se de novo a caminho, gravemente, levando-me sempre ao seu lado, contente de me ter mostrado semelhantes coisas no próprio dia da minha chegada, e lembrando-me que no dia seguinte teria lugar, em minha honra, uma grande caçada aos tigres.
Fui a essa caçada, e a outra, e a três, e a dez, e a vinte seguidas. Correram-se alternadamente todos os bichos que aquela terra produz — a pantera, o urso, o elefante, a antílope, o hipopótamo, o crocodilo (que sei eu?) — e metade dos animais da criação. Andava já esfalfado, enjoado de ver correr sangue, farto daquele prazer sempre igual.
Por fim, o ardor do príncipe acabou-se, e o rajá deixou-me, a grande distância, algum vagar para trabalhar.
Limitava-se, agora, a encher-me de presentes. Mandava-me joias, estofos magníficos, animais ensinados, que Haribadada me apresentava com aparente respeito, grave como se eu fosse o Sol em pessoa, bem que no fundo me desprezasse muito.
E, cada dia, uma procissão de servos me trazia em bandeja coberta uma porção de cada manjar da refeição real; cada dia, era necessário aparecer e manifestar extremo prazer em algum novo divertimento organizado para mim: danças de bailadeiras, prestidigitações, revistas de tropas, tudo que podia inventar esse rajá hospitaleiro — mas maçador —, para me mostrar a sua surpreendente pátria em todo o seu encanto e em todo o seu esplendor.
Logo que me deixavam um bocado sozinho, trabalhava, ou então ia ver os macacos, cuja convivência me agradava infinitamente mais do que a do rei. Mas, uma noite, como voltasse de passear, encontrei à porta do meu palácio Haribadada, solene, que me anunciou, em termos misteriosos, que um presente do soberano me esperava no meu quarto; e apresentou-me as desculpas do seu amo por não ter pensado mais cedo em me oferecer uma coisa de que devia estar privado.
Após este discurso obscuro, o embaixador inclinou-se e partiu.
Entrei e vi, alinhadas com a parede, por ordem de alturas, seis meninas, lado a lado, imóveis, semelhantes a uma enfiada de peixitos do rio. A mais velha teria oito anos, a mais nova seis. No primeiro momento, não compreendi bem o que estava ali a fazer nos meus aposentos aquela pequenada; depois, adivinhei a delicada atenção do príncipe: era um harém de que me fazia presente.
Tinha-o escolhido muito novinho por excesso de amabilidade. Porque, naquelas terras, quanto mais verde é o fruto, mais estimado.
Eu ficava-me inteiramente confuso e constrangido, envergonhado, defronte daquelas pequerruchas, que me fitavam com os seus grandes olhos graves, e que pareciam já saber o que eu poderia exigir delas.
Não sabia que dizer-lhes. Tinha vontade de as mandar embora, mas não se recambia um presente de soberano.
Seria uma injúria mortal. Era forçoso, portanto, conservar, instalar nos meus aposentos aquele rebanho de crianças.
Elas continuavam firmes, encarando-me sempre, aguardando-as minhas ordens, buscando ler no meu olhar o meu pensamento. Maldito presente! Por fim, sentindo-me ridículo, perguntei à maior:
—Como te chamas tu?
Ela respondeu:
— Kali.
Essa pequerrucha, de pele tão linda, um pouco amarelada como o marfim, era uma maravilha, uma estátua, com o seu rosto de linhas compridas e severas.
Então pronunciei para ver o que ela responderia, talvez para a embaraçar:
—Que vens tu aqui fazer?
Ela disse na sua voz doce, harmoniosa:
—Venho para fazer o que te aprouver exigir de mim, meu senhor.
A pequerrucha estava informada.
E fiz a mesma pergunta à mais pequena, que articulou nitidamente na sua voz fina:
—Venho para fazer o que te aprouver exigir de mim, meu senhor.
Essa tinha uns ares de ratinho e era linda como os amores. Tomei-a ao colo e beijei-a. As outras fizeram um movimento como para se retirarem, pensando decerto que acabava de indicar a minha escolha, mas ordenei-lhe que ficassem, e, sentando-me à indiana, fi-las tomar lugar à roda de mim, depois me pus a contar-lhes uma história de gênios, porque falava sofrivelmente o idioma delas.
Elas escutavam com a maior atenção, estremecendo aos pormenores maravilhosos, tremendo d'angústia, erguendo as mãos. Nem já se lembravam, coitadinhas, da razão que as fizera ali vir. Terminado o meu conto, chamei o meu criado de confiança, Latehemna, e mandei trazer doces, bolos, confeitos, que comeram até não quererem mais; depois, começando a achar muito cômica aquela aventura, organizei brinquedos para divertir as minhas mulheres. Um desses brinquedos especialmente teve um enorme sucesso. Eu fazia uma ponte com a pernas, e as minhas seis pequerruchas passavam por baixo, de corrida, a mais pequena abrindo a marcha, a mais alta abalroando-me um pouco, porque nunca se abaixava bastante. Fazia-as aquilo soltar gargalhadas de ensurdecer, e aquelas vozes juvenis, ressoando sob as abóbadas baixas do meu suntuoso palácio, animavam-no, povoavam-no de alegria infantil, mobilavam-no de vida.
Tomei depois muito interesse na instalação do dormitório onde iam ficar as minhas inocentes concubinas. Meti-as, enfim, no quarto que lhes destinei, a cargo de quatro mulheres que o príncipe me tinha enviado, ao mesmo tempo, para cuidarem das minhas sultanas.
Durante oito dias, senti um verdadeiro prazer em representar de papai com aquelas bonecas. Tínhamos admiráveis partidas de escondidas, de cabra-cega, de chicote queimado, que as lançavam em delírios de contentamento, porque cada dia lhes revelava algum desses jogos desconhecidos, tão cheios de interesse. A minha residência dava agora seus ares de aula. E as minhas amiguinhas, vestidas de sedas admiráveis, de estofos bordados a ouro e prata, corriam como animaizitos humanos através das extensas galerias e das tranquilas salas em que uma luz embrandecida caía pelas arcadas.
Depois, uma noite, nem eu sei como, a maior, aquela que se chamava Kali, e que parecia uma estatueta de marfim antigo, foi minha mulher de fato. Era uma adorável criaturinha, meiga, tímida e alegre, amando-me com afeição ardente, e a quem eu amava esquisitamente, com vergonha, com hesitação, com uma espécie de medo à justiça europeia, com reservas e escrúpulos, e, todavia, com apaixonada ternura sensual. Amava-a como pai e acariciava-a como homem.
Perdão, minhas senhoras, creio que me excedo um pouco... As outras continuavam a brincar no palácio, como um bando de galinhas. Kali, agora, não me deixava senão quando eu ia ao príncipe. Passávamos juntos horas deliciosas nas ruínas do velho palácio, entre os macacos que se tinham feito muito nossos amigos. Ela deitava-se sobre os meus joelhos e ali ficava a revolver coisas na sua cabecita de esfinge, ou talvez sem pensar em nada, mas guardando a bela e encantadora atitude hereditária desses povos nobres e cismadores, a atitude hierática das estatuas sagradas. Eu levava, numa grande bandeja de cobre, mantimentos, bolos, frutas. E as macacas aproximavam-se pouco a pouco, seguidas dos filhos mais tímidos; depois, sentavam-se em círculo de roda de nós, sem se atreverem a aproximarem-se mais, esperando que eu fizesse a minha distribuição de guloseimas. Então, quase sempre algum macho mais atrevido se chegava a mim, de mão estendida, como um mendigo; e eu dava-lhe algum bocado, que ele ia levar à fêmea. E todas as outras desatavam aos gritos furiosos, gritos de inveja e de cólera, e não me era possível fazer cessar aquela inferneira, senão atirando a cada uma o seu quinhão.
Como gostasse muito daquelas minas, mandei lá pôr os meus instrumentos, para trabalhar. Mas logo que viram o cobre dos aparelhos de precisão, os macacos, tomando sem duvida aquelas coisas por engenhos de morte, debandaram para todos os lados, soltando clamores espantosos.
Também, muitas vezes, passava as noites com Kali numa das galerias interiores que dominavam o lago de Vihará. Olhávamos, sem falar, a lua cintilante, que deslizava ao fundo do céu, lançando sobre a água um monte de prata tremeluzente e, ao fundo, na margem oposta, a linha dos pequenos pagodes, semelhantes a graciosos tortulhos que tivessem rebentado de dentro de água. E, tomando nos meus braços a cabecinha toda séria da minha pequena amante, beijava lentamente, longamente a sua fronte polida, os seus grandes olhos cheios do segredo daquela terra arcaica e fabulosa, e os seus lábios calmos que, sob as minhas carícias, se entreabriam. E sentia uma sensação confusa, fortalecedora, poética sobretudo, a sensação de que possuía uma raça inteira naquela pequenita, essa bela raça misteriosa donde parecem oriundas todas as outras.
O príncipe, entretanto, continuava a mimosear-me com presentes. Um dia, mandou-me um objeto bem inesperado, que excitou em Kali apaixonada admiração. Era simplesmente uma bolsinha de conchas, uma dessas caixas de papelão, cobertas de um envólucro de conchinhas simplesmente coladas. Em França, aquilo valeria, quando muito, quarenta sous. Mas, naquela terra, o preço de tal joia era inestimável. Sem dúvida, era a primeira que entrava no reino. Pousei-a sobre um móvel, e dexei-a parar ali, sorrindo da importância dada aquela feia bugiganga de bazar. Mas Kali não se cansava de a olhar, de a admirar, cheia de respeito e de êxtase. De tempos a tempos, perguntava-me:
— Deixas-me tocar-lhe?
E com autorização minha, levantava-lhe a tampa, tornava-a a fechar, com grandes precauções, acariciava com os seus dedos finos, muito de mansinho, as pequenas conchas, e parecia sentir aquele contato um prazer delicioso que lhe penetrava até ao coração. Entretanto, eu terminara os meus trabalhos e tinha de partir. Levou-me muito tempo a decidir, retido como estava agora pela minha ternura para com a minha pequena amiga. Por fim, não tive outro remédio.
O príncipe, consternado, organizou novas caçadas, novos combates de lutadores; mas, ao cabo de quinze dias desses prazeres, declarei que me não podia demorar mais, e ele deixou-me em liberdade. As despedidas de Kali foram dilacerantes. Ela chorava, abraçada a mim com a sua cabeça sobre o meu peito, toda soluçante de pesar. Não sabia que fazer para a consolar, pois que de nada os meus beijos serviam. De repente, tive uma ideia e, levantando-me, fui buscar a caixinha de conchas e meti-lha na mão :
— Toma lá para ti. É tua.
Então, vi-a primeiro sorrir. Todo o seu rosto se clareava dessa alegria profunda dos sonhos impossíveis, subitamente realizados. E beijou-me com fúria. Mas, apesar disso, chorou bastante no momento do ultimo adeus. Distribuí beijos de pai e bolos a todo o resto das minhas mulheres, e parti.
II
Decorreram dois anos, depois os acasos da vida do mar levaram-me outra vez a Bombaim. Em seguida, as circunstancias imprevistas deixaram-me lá com uma nova missão, à qual me habilitava o meu conhecimento do país e língua. Terminei os meus trabalhos o mais depressa possível, e como ainda tinha três meses ao meu dispor, quis ir fazer uma visitinha ao meu amigo, o rei de Gemhará, e à minha querida mulherzinha Kali, que decerto havia de estar bem mudada.
À noite, enfim, achando-me livre, mandei chamar Haribadada e, depois de muitas perguntas diversas, para desnortear a sua perspicácia, perguntei-lhe:
—Sabes o que é feito da pequena Kali, que o rajá me tinha dado?
O homem tomou uma fisionomia triste, apoquentada, e respondeu com grande constrangimento:
—É melhor não falar nela!
—Por quê? Era uma jovem bem bonita…
—Deitou-se a perder, meu senhor.
—Kali?! Como?! Que é feito dela? Onde está ela?
—Queria eu dizer que teve mau fim.
—Mau fim?! Morreu?!
—Sim, meu senhor. Tinha cometido uma ação má.
Eu estava muito comovido, sentia palpitar o coração e oprimir-me o peito uma angústia.
Tornei:
—Uma ação má? Que fez ela? Que lhe aconteceu?
O homem, cada vez mais embaraçado, murmurou:
—É melhor não mo perguntar.
—Não, quero saber.
—Kali furtou.
—Como?! A quem ela furtou?
— Ao senhor estrangeiro.
— A mim?! De que modo?
—Tomou-lhe, no dia da sua partida, o cofrezinho que o príncipe lhe tinha dado. Acharam-no em poder dela!
— Qual cofre?
— O cofrezinho das conchas.
—Mas fui eu que lhe tinha dado!
O indiano ergueu para mim uns olhos muito espantados, e respondeu:
— Sim, ela jurou, com efeito, por todos os juramentos sagrados, que o estrangeiro lhe tinha dado o cofrinho. Mas ninguém acreditou que o senhor estrangeiro oferecesse a uma escrava um presente do rei, e o rajá fê-la punir.
—Punir como? Que lhe fizeram?
—Amarraram-na dentro dum saco, senhor, e lançaram-na ao lago desta janela do quarto em que estamos, onde ela cometera o roubo.
Senti-me arrevessado pela mais atroz sensação de dor, que jamais me acometera, e fiz sinal a Haribadada que se retirasse para me não ver chorar. Passei a noite na galeria que dominava o lago, na galeria em que tantas vezes tivera a pobre criança sobre os meus joelhos.
E pensava que o esqueleto do seu lindo corpinho decomposto estava ali, sob os meus olhos, num saco de lona amarrado por uma corda, ao fundo daquela água negra que juntos olháramos tanta vez outrora.
Parti no dia seguinte, apesar dos rogos e do veemente pesar do rajá.
E agora creio que nunca amei outra mulher senão Kali.
Fonte: “Revista Moderna”/França, edição de abril de 1899.
Fizeram-se adaptações textuais.
Ilustração: PS/Perchance.
Nota:
1Nota do editor: Este conto contém passagens passíveis de ferir a susceptibilidade de leitores modernos, dada a pouca idade de uma das personagens que se envolve com o narrador. Recomenda-se cautela e sugere-se que não seja lido, caso o tema suscitado melindre a sensibilidade do espectador.


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