CASERNA EM SOMBRAS - Conto de Terror - Tânia Souza




CASERNA EM SOMBRAS
Tânia Souza


Poderia ser mais um conto das casernas. Poderia...
Mas esta não é apenas uma destas histórias de sombras e medo, também de melancolia e sonhos desperdiçados. Por que lembrá-la se aconteceu há tantos anos? Não seria melhor deixá-la perdida nas memórias falhas dos homens e guardada pelos que repousam infinitamente? No entanto, há certas marcas na alma dos homens que não podem sumir, as histórias então as renovam para que a dor não seja esquecida, para que os mortos - os que dormem e os que andam - sejam honrados e toda injustiça, cobrada até o fim. 


       Uma melodia ao alvorecer 

     O sol nascera há pouco e podia-se ouvir o clarim chamando, o toque melancólico da alvorada marcava o início da manhã. Na casa de madeira, a luz invadia a janela e uma voz fina e doce cantarolava "... por mais terras que eu percorra não permita Deus que eu morra, sem que volte para lá...”   a mulher no fogão, sem parar de virar os bolinhos que fritava, sorriu para o menino magro que cantava. O rosto miúdo se levantou e ele disse, olhos brilhantes: mãe, vou ser capitão. No Exército, aquele garoto marcado pela fome teria a chance de mudar uma história de pobreza e privações. O pai, um soldado desaparecido, a mãe na luta diária como lavadeira.
Muitos anos depois, a farda dobrada e engomada, os coturnos brilhantes: o sonho da carreira militar tornara-se real. O período de instruções foi difícil, a hierarquia militar, muitas vezes cruel, entretanto os meses de treinamento no mato forjaram o homem e ele superara o primeiro ano. Pedro Fagundes da Silva. Nome de guerra: Fagundes; já existiam muitos Silvas no quartel. Fora engajado e com a transferência para o Destacamento de São Miguel, o soldo aumentaria, as promoções viriam. Eu vou ser capitão, costumava repetir nos momentos mais difíceis. Essa era sua oração. A Canção do Expedicionário fora seu hino matinal por muitos anos, costumava ainda cantarolar os versos quando a solidão da maturidade perturbava o ar corado de um rosto de menino, onde a barba só se fizera ver pelo uso constante do barbeador.

Onde os anjos não moram

Destacamento São Miguel. No horizonte, o sol tingia o céu de vermelho quando o jipe parou próximo à guarda, no portão central. Dois soldados e um oficial desceram do veículo. Fagundes era um deles. Seus olhos percorreram o local. Alguns jovens estavam em instrução e um grupo jogava futebol num campo mais afastado. As vozes se misturavam aos sons da natureza. São Miguel localizava-se em uma região de mata fechada em Mato Grosso, próximo a uma importante fronteira. Alguns anos depois, com a divisão do estado, seria Mato Grosso do Sul. Os três homens atravessaram a clareira em busca do oficial responsável e foram seguidos por murmúrios baixos. Fagundes, no seu primeiro dia percebeu a tensão constante e indisposição geral para conversar.
Se fosse influenciável, teria previsto uma temporada sombria a partir daquela noite. No alojamento vazio, se preparou para um banho. A ducha era forte e a água, apesar de salobra, eliminava o calor de um dia cansativo. Perdido em lembranças, ouviu o som do interruptor sendo desligado. A luz se apagou e, ao mesmo tempo, a água parou de cair. Fagundes riu, então era isso, uma prova para os novatos, mas ao virar-se, a luz acendeu-se e a porta bateu violentamente. Procurou, mas não havia ninguém no longo corredor, apenas um inesperado vento frio.
Quando entrou no rancho para o jantar, perguntou sobre o autor da brincadeira. Mas recebeu apenas olhares apreensivos como resposta e uma reprimenda do oficial do dia. Diferente do que já vira em outros quartéis, comiam em silêncio.  Homens que haviam aprendido desde cedo a respeitar a hierarquia, mantinham-se quietos, sobressaltados e ariscos. Os dias passavam, mas a animosidade permanecia.
Os jovens logo desistiram de entender o estranho comportamento geral e se adaptaram à rotina militar. Uma calma que não duraria muito tempo. Certo domingo, Fagundes levantou cedo e foi para o rio. Na verdade, um riacho que deveria ser a diversão nas horas de folga e permanecia abandonado. Descobriram-no ao acaso e muitas vezes, pescaram ali nas horas de ócio. O sol ainda não havia nascido quando ele mergulhou. Aproveitou o silêncio inesperado debaixo das águas, a sensação do rio o acolhendo. E, quando menos esperava, afogou-se.
Acordou quando era arrastado pela margem, vomitando a água que ardia em seus pulmões.  Para todos, fora um infeliz acidente, um quase afogamento. Mas naquela noite, sozinho em sua cama, Fagundes viu em sua pele nua duas marcas de fogo. Não fora um delírio. Algo o segurara e queimara suas pernas. Um voz angustiada lhe pedira que fosse embora para sempre. Lembrou-se da ferocidade com que tentara fugir e de um zumbido crescendo a ponto de parecer estourar seus tímpanos. Pela primeira vez, a vida na caserna lhe pareceu sombria e um sentimento angustiado impediu que dormisse.

    
Posto cinco

O destacamento era bem guardado e essa guarda se dava em pequenos postos numerados, as guaritas serviam de abrigo a quem tirasse o serviço noturno. Naquela noite, após a última troca de sentinela, a ronda caberia ao soldado Fagundes. Caminhou lentamente quando viu alguém se movendo próximo ao portão lateral. A pessoa parou junto ao portão que batia violentamente, Fagundes se aproximou, mas simplesmente não havia ninguém lá. Um violento arrepio o acometeu, tinha certeza do que vira. Chamou, mas o silêncio foi sua resposta. Não havia para onde ir além da mata e quem quer que ali estivesse, boas intenções não teria.
Ainda perturbado pelo estranho acontecimento, continuou seu caminho, responsabilizando a tensão dos últimos dias pela visão. Às duas da madrugada, ao iniciar outra volta, encontrou as guaritas em ordem, no entanto, ao passar pela guarita cinco, notou que estava vazia. Chamou pelo soldado que ali deveria estar e nada. Chamou mais uma vez e se aproximou.
As árvores moveram-se de forma agitada. O zumbido que lhe atordoara no rio parecia estar de volta. Em um resquício do menino que fora, sentiu o medo oprimindo-lhe o peito, entretanto, o soldado que se tornara aproximou-se da pequena estrutura circular, caiada e manchada pelo tempo. Estava vazia, apenas um fuzil jazia, abandonado no chão.
Um soldado jamais abandona sua arma, nem seu posto.
Procurou pelo amigo até reconhecer que era preciso chamar ajuda. Naquela noite, buscaram por horas o soldado desaparecido, mas De Souza só seria detido dois dias depois, balbuciando nas encostas de uma estrada do outro lado da cidade próxima. Trazia um pé descalço e outro ainda com coturno, as mãos segurando um punhal e a pele coberta por longos arranhões. Os olhos vagos ocasionalmente brilhavam de pavor e ele então gritava sobre um fuzil perdido. Terrores indescritíveis o acometiam ao lembrar-se do posto cinco.
Teria sido uma mente impressionada com o silêncio da noite assustando-se com as brincadeiras que, em segredo, alguém continuava a realizar? Não seria a vítima que informaria, a razão parecia haver deixado definitivamente o jovem militar.
Por muitos dias, se falou em voz baixa sobre o fato, Fagundes soube então que não fora a primeira vez que acontecia algo insólito no destacamento, dois dias antes de sua chegada, alguém havia sido ferido gravemente em condições até então ignoradas... Havia uma lista de ocorrências terríveis e abafadas do conhecimento público.

Um soldado perde seu fuzil

O soldado Fagundes conhecia De Souza, serviram e foram transferidos juntos, sabia da firmeza do colega. Por isso não aceitava que simplesmente ele perdesse o juízo. Algo havia acontecido naquela guarita. A mesma guarita onde ele estava de guarda naquela noite.
Ergueu o queixo, aprumou os ombros e segurou o fuzil bem junto de si. Podia sentir o frio inesperado e fora de época se intensificando. Algo roçou em seu ombro, mas quando se virou, nada viu. Medo. Eu vou ser capitão, repetiu como um mantra, tentando esquecer o pavor. Pensou na mãe, no rosto suave e risonho por estar enfim aposentada com sua ajuda. Todavia, o medo se tornava palpável, sentia a garganta apertar-se com a impressão de que algo terrível estava para acontecer. O frio aumentou quando ouviu uma voz perguntar vagamente a frase que seria sua tormenta até os últimos dias da sua vida
Você viu meu fuzil?  
Virou-se e estremeceu ao ver o soldado que o indagava. Finalmente, o pavor explodia, imobilizando-o. No pescoço que pendia de forma anormal para o lado, uma mancha arroxeada espalhava-se; a cabeça parecia quebrada naquela estranha posição. Nos cabelos, lama e sangue formavam uma crosta imunda. Esconderam meu fuzil, você pegou meu fuzil? A ladainha era repetida enquanto o outro se aproximava. Nas mãos, uma corda enrolada.
Frio, cada vez mais frio. O concreto em suas costas, o frio gelando os ossos... as paredes foram sumindo e muitas vozes, vozes de outras épocas pareciam invadir o local num caleidoscópio sombrio...
Você viu meu fuzil? A voz agora era um lamento, as mãos gelavam seu ombro e ele não conseguia se mover. Os ossos doíam e a carne queimava com o contato. Vozes cruéis, debochadas. Vai, paga dez, vamos lá mocinha! De novo!
A sua volta as imagens se confundiam, preso em um estranho delírio, sentiu a chuva em sua pele e as risadas dos comandantes. Os raios cortavam o céu e o vento fustigava as árvores. Você é a nossa piada... Chama o papai, chama! Os ossos doíam com o frio da chuva, mas ele continuava com as flexões. No entanto, as horas passavam e a punição prosseguia. Você é uma vergonha para sua família, uma vergonha para o exército!  Onde está? Vamos, diga!
Eu não sei onde está sargento, não sei... alguém pegou... Fagundes tremia e encolhia-se perante o homem abrutalhado que gargalhava na desolação da noite iluminada por raios. Você dormiu soldado? Você perdeu seu fuzil? Não senhor, não perdi não, senhor, alguém pegou, senhor... E era ele ali, ajoelhado, negando desesperadamente. O rosto cheio de ódio crescia a sua frente. Você é uma vergonha soldado. Fagundes tentou encolher a barriga para se proteger do chute, a boca enchendo-se de terra quando gritou de dor.
Uma vergonha para o exército.  Um soldado sem fuzil é um homem sem alma.
Você é uma vergonha, frangote!
O vento uivava desesperadamente entre os galhos quando Fagundes viu-se de repente em casa, acorde meu filho, acorde... e o sol invadindo a janela ao som choroso do clarim iluminou o rosto suave da mãe. Não, eu não sou uma vergonha, berrou Fagundes, eu vou ser capitão.
Voltou a si e viu-se na velha guarita, encolhido num canto. Tremendo de frio, quando tentou se mover, a dor foi aguda.  A farda na região do ombro estava queimada, onde a mão do soldado o tocara latejava terrivelmente. O estômago doía-lhe. Fagundes duvidava da sua sanidade, mas a boca suja de terra, o gosto do sangue, a farda molhada e o frio intenso tornavam tudo ainda mais enigmático. Com movimentos frágeis, levou o apito aos lábios em busca de socorro e saiu aos tropeços da guarita, sentindo nos músculos a violência sofrida. Cambaleou e antes de desmaiar, pareceu-lhe ainda ouvir a voz chorosa.
Você viu meu fuzil?

Um fantasma quer falar

Quando o dia nasceu, Pedro empurrou as cobertas, mas permaneceu na cama, preso ao que pensava ser um sonho. Entretanto, quando olhou ao seu redor, viu-se cercado por camas de campanhas. Tentou se levantar, mas o corpo doía-lhe. Sede, sentia muita sede. Ao virar-se, estremeceu, um velho caminhava em sua direção, oriundo de uma das camas do lado oposto. Estavam numa enfermaria.
Você o viu, meu filho? Você viu o fantasma do posto cinco? O velho que lhe perguntava mancava em sua direção. Sei que o viu. Há muito tempo ele não vem, você precisa me contar o que ele queria filho... se você o viu, seu sangue também estava lá.  Pedro arrepiou-se com a face cadavérica do homem, olhos fundos circundados por olheiras, a boca quase despida da carne parecia pronta para partir-se em finas linhas. Era o rosto de um maldito, assombrado por indefinidas sombras. Um rosto que lhe era familiar. Ao vê-lo se aproximar, desejou gritar para se afastasse, mas o pavor o envolveu. O jovem traumatizado e em choque tentava calçar os coturnos e confundia-se com o cadarço, a mente anuviada só desejava uma coisa. Fugir!  Mas logo um enfermeiro entrou e o medicou. Pedro tremeu até perder a consciência.
Naquela mesma noite, acordou de um sono sem sonhos e ao abrir os olhos, o velho o observava da cama ao lado, uma jarra com água estava a sua esquerda e quando fez menção de alcançá-la, o homem o serviu. Bebeu a água lentamente, a garganta dolorida. É a febre, vai melhorar...
Eu estava lá, murmurou o velho, eu estava lá naquela noite... Mas a voz rouca foi desaparecendo quando a névoa do sono mais uma vez o tomou. É a febre, vai passar...
Como explicar o inexplicável? O ser humano sempre agia de forma surpreendente frente a acontecimentos assim, alguns com sarcasmo e descrença, outros temerosos e com respeito. Os que são valentes podem tornar-se covardes, os cruéis, arrependerem-se. Mas nem sempre o tempo os favorece. Nem sempre há tempo para escolher.
Os dias na enfermaria passaram rapidamente, o mais constrangedor para Pedro era explicar o que havia acontecido e enfrentar o ar de incredulidade de quem o ouvia. Sempre se temeu os elementos, os espíritos e aparições, mas nunca existira uma prova sequer desses eventos. Entretanto, o estado da farda coberta de lama e o tecido queimado no local na altura dos ombros eram de certa forma a prova de que o inusitado acontecera. O ferimento no ombro impressionava, queimava e parecia que haviam arrancado um naco de carne. Os golpes e a humilhação sofrida ainda o atormentavam.
Depois do acidente, o posto cinco fora abandonado, ninguém aceitara ficar de guarda ali no local.  Por algumas noites, Pedro acordava suando e a ferida no ombro doía-lhe com intensidade. A infecção descia como um raio avermelhado pelo corpo. Em outras horas, ele apenas dormia e tinha pesadelos com as vozes daquela noite odiosa. Elas voltavam e mais uma vez, ele sentia na pele a angústia de outro.

         De acertos e contas

       As horas foram passando e lentamente, a febre diminuiu. Para Fagundes, dormir já não era tão atraente. Até que finamente, o paciente que aguardara por muitos dias por sua melhora, pôde enfim lhe falar. E lhe ouvir. Somente aquele paciente de olhos perdidos como ele acreditava em sua história e dispunha-se a ouvi-lo quando o desespero lhe invadia. Não importava que o julgassem louco, mais uma vítima do destacamento. Pedro precisava falar. Precisava entender. E todas as noites, dava-se início a uma palestra sombria.  Sentados nas camas da enfermaria, com os olhos baixos de terror ou fixos de espanto, dois homens foram aos poucos tecendo os fatos de uma tragédia cujas ramificações assolaram aquela região com desgraça e dor e ainda agiam. Um oficial linha dura, um pai intransigente e um jovem que não seria jamais talhado para a vida militar completariam o cenário narrado na voz baixa do ancião.
Foi no verão que o recruta Afonso Saldruany chegou ao acampamento trazido pelo pai, o major. Aquele homem era capaz de matar os inimigos da pátria a unha. Com todos os requintes de crueldade possíveis. Ao mesmo tempo, saltava aos olhos a postura desengonçada e a ausência do caráter militar no guri. Um frangote! Delicado demais para a vida na caserna. O pai impôs mais uma vez que fosse aceito, recomendou que ali no mato forjassem o homem que o filho deveria ter sido desde sempre. Afonso teria que aprender as duras regras da rotina militar. Mas as perseguições, as humilhações em nada ajudavam a moldar o homem de armas que esperavam, antes, a infelicidade parecia-lhe constante.  Ocasionalmente, o velho interrompia a narrativa, os olhos perdidos no horizonte. Eu estava lá, ele repetia então, eu estava entende, era minha obrigação estar lá...
Valha-me deus, pensava Fagundes, aquele sim era um fantasma. Um fantasma que andava e falava, a personificação do inquietante. O velho a sua frente tinha os olhos vagos, a face encovada perdia-se em um silêncio de pavor à medida que a narrativa prosseguia, mas em seguida, com um longo suspiro ele retomava a história que o soldado Fagundes aprenderia a conhecer em cada nuance.
Uma noite choveu, meu filho. A tempestade veio com força. Muitas árvores caíram na mata, mas no acampamento ninguém dormia. Aquele pobre garoto foi um recruta descuidado. Um soldado jamais abandona sua arma e deve zelar por ela, mas Afonso teve o fuzil roubado, alguém escondeu em mais uma brincadeira maliciosa. E no frio da noite chuvosa, ele pagou as flexões necessárias como punição. Quando não conseguiu mais, simplesmente caiu e permaneceu com o rosto na lama, virado para o lado tentando respirar. Aquele olhar, jamais poderei esquecer aquele olhar. O velho secou uma lágrima e prosseguiu, meneando a cabeça. Depois? Depois disso, nunca mais foi visto com vida, se enforcou em uma das árvores do acampamento. Mas antes lançou sua maldição. Uma maldição que nos atingiu como a peste e não deixaria nenhum de nós, nem nossos descendentes, terem paz novamente.
Nestas horas, Fagundes permanecia calado, imerso no horror do que lhe contava o homem, tomado por lembranças de uma noite insana. A memória presa a um homem que gritava punições, acompanhando-as com empurrões e chutes. Podia senti-los novamente, mas o que lhe causava mais dor eram as ofensas, a certeza de que estava preso naquele mundo desumano.
Sim, eu estava lá, murmurou o velho, eu estava lá naquela noite, quando o frio foi nos envolvendo e o corpo do garoto balançava no pé de tamarindo, um frio gelou minha alma e nunca mais me deixou. Ele vem nos sonhos sabe, os olhos mudos, as mãos geladas me queimam e vivo atormentado, pois sei que não poderei morrer enquanto ele não encontrar a paz. Derrubaram a árvore e construíram o posto cinco, mas não adiantou. Você o viu? A corda nas mãos? Desde então, muitas mortes ocorreram no destacamento São Miguel. Muitas mortes. Acidentes, eventos inexplicáveis, um terror velado que ninguém ousa comentar. Ele procura o que lhe foi roubado. Nem todos podem vê-lo, mas quando a tempestade cai, eu sei que sua força cresce e ele então, ele vem... Eu preciso do fuzil. Entende garoto, eu preciso do fuzil. Você também precisa do fuzil ou o preço do sangue será cobrado. Talvez eu seja o último.
Era o olhar de um fugitivo do inferno. Noite alta e a tempestade açoitava as janelas enquanto um frio inusitado crescia na enfermaria. O velho chorava e repetia incansavelmente eu estava lá, entende? Era minha obrigação estar lá... Cumprindo meu maldito dever.
Eram apenas dois homens, dois internos conversando à luz ocasional dos raios e o terror que cada palavra trouxera impregnou o ambiente até a madrugada trazer o sono repleto de pesadelos.
Não é o fuzil que ele deseja...
Quase não se ouviam os murmúrios de Pedro. Os raios iluminavam, através da janela, o seu rosto e o corpo se embalando na escuridão. O preço do sangue continuaria sendo cobrado. Não é o fuzil... Ele levantou-se da cama, o rangido foi leve, e caminhou em direção ao ancião, repetindo seu refrão amaldiçoado, enquanto a presença do Inominável tomou forma em dor e sangue.
Nunca foi o fuzil...
                                                                      **
Dizem - os que dizem sobre o que nem sempre entendemos -, que muitas vezes, quando soa o toque da alvorada, pode se ver surgindo pela estrada um andarilho. Este traz a farda rota, o andar lento e os trapos que carrega não escondem coturnos em frangalhos. Um louco? Um ladrão? Um herói da pátria? Com a cabeça inclinada ele segue, murmurando uma canção nem sempre compreensível...
Por mais terras que eu percorra... Não permita Deus que eu morra...



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