CASERNA EM SOMBRAS - Conto de Terror - Tânia Souza
CASERNA EM SOMBRAS
Tânia Souza
Poderia ser mais um conto
das casernas. Poderia...
Mas esta não é apenas uma destas histórias de sombras e medo, também de melancolia e sonhos desperdiçados. Por que lembrá-la se aconteceu há tantos anos? Não seria melhor deixá-la perdida nas memórias falhas dos homens e guardada pelos que repousam infinitamente? No entanto, há certas marcas na alma dos homens que não podem sumir, as histórias então as renovam para que a dor não seja esquecida, para que os mortos - os que dormem e os que andam - sejam honrados e toda injustiça, cobrada até o fim.
Uma melodia ao alvorecer
O sol nascera há pouco e podia-se ouvir o clarim chamando, o toque melancólico da alvorada marcava o início da manhã. Na casa de madeira, a luz invadia a janela e uma voz fina e doce cantarolava "... por mais terras que eu percorra não permita Deus que eu morra, sem que volte para lá...” a mulher no fogão, sem parar de virar os bolinhos que fritava, sorriu para o menino magro que cantava. O rosto miúdo se levantou e ele disse, olhos brilhantes: mãe, vou ser capitão. No Exército, aquele garoto marcado pela fome teria a chance de mudar uma história de pobreza e privações. O pai, um soldado desaparecido, a mãe na luta diária como lavadeira.
Mas esta não é apenas uma destas histórias de sombras e medo, também de melancolia e sonhos desperdiçados. Por que lembrá-la se aconteceu há tantos anos? Não seria melhor deixá-la perdida nas memórias falhas dos homens e guardada pelos que repousam infinitamente? No entanto, há certas marcas na alma dos homens que não podem sumir, as histórias então as renovam para que a dor não seja esquecida, para que os mortos - os que dormem e os que andam - sejam honrados e toda injustiça, cobrada até o fim.
Uma melodia ao alvorecer
O sol nascera há pouco e podia-se ouvir o clarim chamando, o toque melancólico da alvorada marcava o início da manhã. Na casa de madeira, a luz invadia a janela e uma voz fina e doce cantarolava "... por mais terras que eu percorra não permita Deus que eu morra, sem que volte para lá...” a mulher no fogão, sem parar de virar os bolinhos que fritava, sorriu para o menino magro que cantava. O rosto miúdo se levantou e ele disse, olhos brilhantes: mãe, vou ser capitão. No Exército, aquele garoto marcado pela fome teria a chance de mudar uma história de pobreza e privações. O pai, um soldado desaparecido, a mãe na luta diária como lavadeira.
Muitos
anos depois, a farda dobrada e engomada, os coturnos brilhantes: o sonho da
carreira militar tornara-se real. O período de instruções foi difícil, a
hierarquia militar, muitas vezes cruel, entretanto os meses de treinamento no
mato forjaram o homem e ele superara o primeiro ano. Pedro Fagundes da Silva.
Nome de guerra: Fagundes; já existiam muitos Silvas no quartel. Fora engajado e
com a transferência para o Destacamento de São Miguel, o soldo aumentaria, as
promoções viriam. Eu vou ser capitão, costumava repetir nos momentos mais
difíceis. Essa era sua oração. A Canção do Expedicionário fora seu hino matinal
por muitos anos, costumava ainda cantarolar os versos quando a solidão da
maturidade perturbava o ar corado de um rosto de menino, onde a barba só se
fizera ver pelo uso constante do barbeador.
Onde os anjos não moram
Destacamento
São Miguel. No horizonte, o sol tingia o céu de vermelho quando o jipe parou
próximo à guarda, no portão central. Dois soldados e um oficial desceram do
veículo. Fagundes era um deles. Seus olhos percorreram o local. Alguns jovens
estavam em instrução e um grupo jogava futebol num campo mais afastado. As
vozes se misturavam aos sons da natureza. São Miguel localizava-se em uma
região de mata fechada em Mato Grosso, próximo a uma importante fronteira.
Alguns anos depois, com a divisão do estado, seria Mato Grosso do Sul. Os três
homens atravessaram a clareira em busca do oficial responsável e foram seguidos
por murmúrios baixos. Fagundes, no seu primeiro dia percebeu a tensão constante
e indisposição geral para conversar.
Se
fosse influenciável, teria previsto uma temporada sombria a partir daquela
noite. No alojamento vazio, se preparou para um banho. A ducha era forte e a
água, apesar de salobra, eliminava o calor de um dia cansativo. Perdido em lembranças,
ouviu o som do interruptor sendo desligado. A luz se apagou e, ao mesmo tempo,
a água parou de cair. Fagundes riu, então era isso, uma prova para os novatos,
mas ao virar-se, a luz acendeu-se e a porta bateu violentamente. Procurou, mas
não havia ninguém no longo corredor, apenas um inesperado vento frio.
Quando
entrou no rancho para o jantar, perguntou sobre o autor da brincadeira. Mas
recebeu apenas olhares apreensivos como resposta e uma reprimenda do oficial do
dia. Diferente do que já vira em outros quartéis, comiam em silêncio.
Homens que haviam aprendido desde cedo a respeitar a hierarquia, mantinham-se
quietos, sobressaltados e ariscos. Os dias passavam, mas a animosidade
permanecia.
Os
jovens logo desistiram de entender o estranho comportamento geral e se
adaptaram à rotina militar. Uma calma que não duraria muito tempo. Certo
domingo, Fagundes levantou cedo e foi para o rio. Na verdade, um riacho que
deveria ser a diversão nas horas de folga e permanecia abandonado.
Descobriram-no ao acaso e muitas vezes, pescaram ali nas horas de ócio. O sol
ainda não havia nascido quando ele mergulhou. Aproveitou o silêncio inesperado
debaixo das águas, a sensação do rio o acolhendo. E, quando menos esperava,
afogou-se.
Acordou
quando era arrastado pela margem, vomitando a água que ardia em seus
pulmões. Para todos, fora um infeliz acidente, um quase afogamento. Mas
naquela noite, sozinho em sua cama, Fagundes viu em sua pele nua duas marcas de
fogo. Não fora um delírio. Algo o segurara e queimara suas pernas. Um voz
angustiada lhe pedira que fosse embora para sempre. Lembrou-se da ferocidade
com que tentara fugir e de um zumbido crescendo a ponto de parecer estourar
seus tímpanos. Pela primeira vez, a vida na caserna lhe pareceu sombria e um
sentimento angustiado impediu que dormisse.
Posto cinco
O
destacamento era bem guardado e essa guarda se dava em pequenos postos
numerados, as guaritas serviam de abrigo a quem tirasse o serviço noturno.
Naquela noite, após a última troca de sentinela, a ronda caberia ao soldado
Fagundes. Caminhou lentamente quando viu alguém se movendo próximo ao portão
lateral. A pessoa parou junto ao portão que batia violentamente, Fagundes se
aproximou, mas simplesmente não havia ninguém lá. Um violento arrepio o
acometeu, tinha certeza do que vira. Chamou, mas o silêncio foi sua resposta.
Não havia para onde ir além da mata e quem quer que ali estivesse, boas
intenções não teria.
Ainda
perturbado pelo estranho acontecimento, continuou seu caminho,
responsabilizando a tensão dos últimos dias pela visão. Às duas da madrugada,
ao iniciar outra volta, encontrou as guaritas em ordem, no entanto, ao passar
pela guarita cinco, notou que estava vazia. Chamou pelo soldado que ali deveria
estar e nada. Chamou mais uma vez e se aproximou.
As
árvores moveram-se de forma agitada. O zumbido que lhe atordoara no rio parecia
estar de volta. Em um resquício do menino que fora, sentiu o medo oprimindo-lhe
o peito, entretanto, o soldado que se tornara aproximou-se da pequena estrutura
circular, caiada e manchada pelo tempo. Estava vazia, apenas um fuzil jazia,
abandonado no chão.
Um
soldado jamais abandona sua arma, nem seu posto.
Procurou
pelo amigo até reconhecer que era preciso chamar ajuda. Naquela noite, buscaram
por horas o soldado desaparecido, mas De Souza só seria detido dois dias
depois, balbuciando nas encostas de uma estrada do outro lado da cidade
próxima. Trazia um pé descalço e outro ainda com coturno, as mãos segurando um
punhal e a pele coberta por longos arranhões. Os olhos vagos ocasionalmente
brilhavam de pavor e ele então gritava sobre um fuzil perdido. Terrores
indescritíveis o acometiam ao lembrar-se do posto cinco.
Teria
sido uma mente impressionada com o silêncio da noite assustando-se com as
brincadeiras que, em segredo, alguém continuava a realizar? Não seria a vítima
que informaria, a razão parecia haver deixado definitivamente o jovem militar.
Por
muitos dias, se falou em voz baixa sobre o fato, Fagundes soube então que não
fora a primeira vez que acontecia algo insólito no destacamento, dois dias
antes de sua chegada, alguém havia sido ferido gravemente em condições até
então ignoradas... Havia uma lista de ocorrências terríveis e abafadas do
conhecimento público.
Um soldado perde seu fuzil
O
soldado Fagundes conhecia De Souza, serviram e foram transferidos juntos, sabia
da firmeza do colega. Por isso não aceitava que simplesmente ele perdesse o
juízo. Algo havia acontecido naquela guarita. A mesma guarita onde ele estava
de guarda naquela noite.
Ergueu
o queixo, aprumou os ombros e segurou o fuzil bem junto de si. Podia sentir o
frio inesperado e fora de época se intensificando. Algo roçou em seu ombro, mas
quando se virou, nada viu. Medo. Eu
vou ser capitão, repetiu como um mantra, tentando esquecer o pavor.
Pensou na mãe, no rosto suave e risonho por estar enfim aposentada com sua
ajuda. Todavia, o medo se tornava palpável, sentia a garganta apertar-se com a
impressão de que algo terrível estava para acontecer. O frio aumentou quando
ouviu uma voz perguntar vagamente a frase que seria sua tormenta até os últimos
dias da sua vida
Você viu meu fuzil?
Virou-se
e estremeceu ao ver o soldado que o indagava. Finalmente, o pavor explodia,
imobilizando-o. No pescoço que pendia de forma anormal para o lado, uma mancha
arroxeada espalhava-se; a cabeça parecia quebrada naquela estranha posição. Nos
cabelos, lama e sangue formavam uma crosta imunda. Esconderam meu fuzil, você pegou meu
fuzil? A ladainha era repetida enquanto o outro se aproximava.
Nas mãos, uma corda enrolada.
Frio,
cada vez mais frio. O concreto em suas costas, o frio gelando os ossos... as
paredes foram sumindo e muitas vozes, vozes de outras épocas pareciam invadir o
local num caleidoscópio sombrio...
Você viu meu fuzil? A voz agora era um lamento,
as mãos gelavam seu ombro e ele não conseguia se mover. Os ossos doíam e a
carne queimava com o contato. Vozes cruéis, debochadas. Vai, paga dez, vamos lá mocinha! De
novo!
A
sua volta as imagens se confundiam, preso em um estranho delírio, sentiu a
chuva em sua pele e as risadas dos comandantes. Os raios cortavam o céu e o
vento fustigava as árvores. Você
é a nossa piada... Chama o papai, chama! Os ossos doíam com o
frio da chuva, mas ele continuava com as flexões. No entanto, as horas passavam
e a punição prosseguia. Você
é uma vergonha para sua família, uma vergonha para o exército! Onde está?
Vamos, diga!
Eu não sei onde está sargento, não sei... alguém pegou... Fagundes
tremia e encolhia-se perante o homem abrutalhado que gargalhava na desolação da
noite iluminada por raios. Você
dormiu soldado? Você perdeu seu fuzil? Não senhor, não perdi não, senhor,
alguém pegou, senhor... E era ele ali, ajoelhado, negando
desesperadamente. O rosto cheio de ódio crescia a sua frente. Você é uma vergonha soldado.
Fagundes tentou encolher a barriga para se proteger do chute, a boca
enchendo-se de terra quando gritou de dor.
Uma vergonha para o exército. Um soldado sem fuzil é um
homem sem alma.
Você é uma vergonha, frangote!
O
vento uivava desesperadamente entre os galhos quando Fagundes viu-se de repente
em casa, acorde meu
filho, acorde... e
o sol invadindo a janela ao som choroso do clarim iluminou o rosto suave da
mãe. Não, eu não sou uma
vergonha, berrou Fagundes, eu
vou ser capitão.
Voltou
a si e viu-se na velha guarita, encolhido num canto. Tremendo de frio, quando
tentou se mover, a dor foi aguda. A farda na região do ombro estava
queimada, onde a mão do soldado o tocara latejava terrivelmente. O estômago
doía-lhe. Fagundes duvidava da sua sanidade, mas a boca suja de terra, o gosto
do sangue, a farda molhada e o frio intenso tornavam tudo ainda mais
enigmático. Com movimentos frágeis, levou o apito aos lábios em busca de
socorro e saiu aos tropeços da guarita, sentindo nos músculos a violência
sofrida. Cambaleou e antes de desmaiar, pareceu-lhe ainda ouvir a voz chorosa.
Você viu meu fuzil?
Um fantasma quer falar
Quando
o dia nasceu, Pedro empurrou as cobertas, mas permaneceu na cama, preso ao que
pensava ser um sonho. Entretanto, quando olhou ao seu redor, viu-se cercado por
camas de campanhas. Tentou se levantar, mas o corpo doía-lhe. Sede, sentia
muita sede. Ao virar-se, estremeceu, um velho caminhava em sua direção, oriundo
de uma das camas do lado oposto. Estavam numa enfermaria.
Você o viu, meu filho? Você viu o fantasma do posto cinco? O
velho que lhe perguntava mancava em sua direção. Sei que o viu. Há muito tempo ele não
vem, você precisa me contar o que ele queria filho... se você o viu, seu sangue
também estava lá. Pedro arrepiou-se com a face
cadavérica do homem, olhos fundos circundados por olheiras, a boca quase
despida da carne parecia pronta para partir-se em finas linhas. Era o rosto de
um maldito, assombrado por indefinidas sombras. Um rosto que lhe era familiar.
Ao vê-lo se aproximar, desejou gritar para se afastasse, mas o pavor o
envolveu. O jovem traumatizado e em choque tentava calçar os coturnos e
confundia-se com o cadarço, a mente anuviada só desejava uma coisa.
Fugir! Mas logo um enfermeiro entrou e o medicou. Pedro tremeu até perder
a consciência.
Naquela
mesma noite, acordou de um sono sem sonhos e ao abrir os olhos, o velho o
observava da cama ao lado, uma jarra com água estava a sua esquerda e quando
fez menção de alcançá-la, o homem o serviu. Bebeu a água lentamente, a garganta
dolorida. É a febre, vai melhorar...
Eu estava lá, murmurou o velho, eu estava lá naquela noite...
Mas a voz rouca foi desaparecendo quando a névoa do sono mais uma vez o
tomou. É a febre, vai
passar...
Como
explicar o inexplicável? O ser humano sempre agia de forma surpreendente frente
a acontecimentos assim, alguns com sarcasmo e descrença, outros temerosos e com
respeito. Os que são valentes podem tornar-se covardes, os cruéis,
arrependerem-se. Mas nem sempre o tempo os favorece. Nem sempre há tempo para
escolher.
Os
dias na enfermaria passaram rapidamente, o mais constrangedor para Pedro era
explicar o que havia acontecido e enfrentar o ar de incredulidade de quem o
ouvia. Sempre se temeu os elementos, os espíritos e aparições, mas nunca
existira uma prova sequer desses eventos. Entretanto, o estado da farda coberta
de lama e o tecido queimado no local na altura dos ombros eram de certa forma a
prova de que o inusitado acontecera. O ferimento no ombro impressionava,
queimava e parecia que haviam arrancado um naco de carne. Os golpes e a
humilhação sofrida ainda o atormentavam.
Depois
do acidente, o posto cinco fora abandonado, ninguém aceitara ficar de guarda
ali no local. Por algumas noites, Pedro acordava suando e a ferida no ombro
doía-lhe com intensidade. A infecção descia como um raio avermelhado pelo
corpo. Em outras horas, ele apenas dormia e tinha pesadelos com as vozes
daquela noite odiosa. Elas voltavam e mais uma vez, ele sentia na pele a
angústia de outro.
De acertos e contas
As horas foram passando e lentamente, a febre diminuiu. Para Fagundes, dormir já não era tão atraente. Até que finamente, o paciente que aguardara por muitos dias por sua melhora, pôde enfim lhe falar. E lhe ouvir. Somente aquele paciente de olhos perdidos como ele acreditava em sua história e dispunha-se a ouvi-lo quando o desespero lhe invadia. Não importava que o julgassem louco, mais uma vítima do destacamento. Pedro precisava falar. Precisava entender. E todas as noites, dava-se início a uma palestra sombria. Sentados nas camas da enfermaria, com os olhos baixos de terror ou fixos de espanto, dois homens foram aos poucos tecendo os fatos de uma tragédia cujas ramificações assolaram aquela região com desgraça e dor e ainda agiam. Um oficial linha dura, um pai intransigente e um jovem que não seria jamais talhado para a vida militar completariam o cenário narrado na voz baixa do ancião.
De acertos e contas
As horas foram passando e lentamente, a febre diminuiu. Para Fagundes, dormir já não era tão atraente. Até que finamente, o paciente que aguardara por muitos dias por sua melhora, pôde enfim lhe falar. E lhe ouvir. Somente aquele paciente de olhos perdidos como ele acreditava em sua história e dispunha-se a ouvi-lo quando o desespero lhe invadia. Não importava que o julgassem louco, mais uma vítima do destacamento. Pedro precisava falar. Precisava entender. E todas as noites, dava-se início a uma palestra sombria. Sentados nas camas da enfermaria, com os olhos baixos de terror ou fixos de espanto, dois homens foram aos poucos tecendo os fatos de uma tragédia cujas ramificações assolaram aquela região com desgraça e dor e ainda agiam. Um oficial linha dura, um pai intransigente e um jovem que não seria jamais talhado para a vida militar completariam o cenário narrado na voz baixa do ancião.
Foi no verão que o recruta Afonso Saldruany chegou ao acampamento
trazido pelo pai, o major. Aquele homem era capaz de matar os inimigos da
pátria a unha. Com todos os requintes de crueldade possíveis. Ao mesmo tempo,
saltava aos olhos a postura desengonçada e a ausência do caráter militar no
guri. Um frangote! Delicado demais para a vida na caserna. O pai impôs mais uma
vez que fosse aceito, recomendou que ali no mato forjassem o homem que o filho
deveria ter sido desde sempre. Afonso teria que aprender as duras regras da
rotina militar. Mas as perseguições, as humilhações em nada ajudavam a moldar o
homem de armas que esperavam, antes, a infelicidade parecia-lhe
constante. Ocasionalmente, o velho interrompia a narrativa, os olhos
perdidos no horizonte. Eu
estava lá, ele repetia então, eu
estava entende, era minha obrigação estar lá...
Valha-me deus, pensava Fagundes, aquele sim era
um fantasma. Um fantasma que andava e falava, a personificação do inquietante.
O velho a sua frente tinha os olhos vagos, a face encovada perdia-se em um
silêncio de pavor à medida que a narrativa prosseguia, mas em seguida, com um
longo suspiro ele retomava a história que o soldado Fagundes aprenderia a
conhecer em cada nuance.
Uma noite choveu, meu filho. A tempestade veio com força.
Muitas árvores caíram na mata, mas no acampamento ninguém dormia. Aquele pobre
garoto foi um recruta descuidado. Um soldado jamais abandona sua arma e deve
zelar por ela, mas Afonso teve o fuzil roubado, alguém escondeu em mais uma
brincadeira maliciosa. E no frio da noite chuvosa, ele pagou as flexões
necessárias como punição. Quando não conseguiu mais, simplesmente caiu e
permaneceu com o rosto na lama, virado para o lado tentando respirar. Aquele
olhar, jamais poderei esquecer aquele olhar. O velho secou uma
lágrima e prosseguiu, meneando a cabeça. Depois? Depois disso, nunca mais foi visto com vida, se
enforcou em uma das árvores do acampamento. Mas antes lançou sua maldição. Uma
maldição que nos atingiu como a peste e não deixaria nenhum de nós, nem nossos
descendentes, terem paz novamente.
Nestas
horas, Fagundes permanecia calado, imerso no horror do que lhe contava o homem,
tomado por lembranças de uma noite insana. A memória presa a um homem que
gritava punições, acompanhando-as com empurrões e chutes. Podia senti-los
novamente, mas o que lhe causava mais dor eram as ofensas, a certeza de que
estava preso naquele mundo desumano.
Sim, eu estava lá, murmurou o velho, eu estava lá naquela noite, quando o
frio foi nos envolvendo e o corpo do garoto balançava no pé de tamarindo, um
frio gelou minha alma e nunca mais me deixou. Ele vem nos sonhos sabe, os olhos
mudos, as mãos geladas me queimam e vivo atormentado, pois sei que não poderei
morrer enquanto ele não encontrar a paz. Derrubaram a árvore e construíram o
posto cinco, mas não adiantou. Você o viu? A corda nas mãos? Desde então,
muitas mortes ocorreram no destacamento São Miguel. Muitas mortes. Acidentes,
eventos inexplicáveis, um terror velado que ninguém ousa comentar. Ele procura
o que lhe foi roubado. Nem todos podem vê-lo, mas quando a tempestade cai, eu
sei que sua força cresce e ele então, ele vem... Eu preciso do fuzil. Entende
garoto, eu preciso do fuzil. Você também precisa do fuzil ou o preço do sangue
será cobrado. Talvez eu seja o último.
Era
o olhar de um fugitivo do inferno. Noite alta e a tempestade açoitava as
janelas enquanto um frio inusitado crescia na enfermaria. O velho chorava e
repetia incansavelmente eu
estava lá, entende? Era minha obrigação estar lá... Cumprindo meu maldito
dever.
Eram
apenas dois homens, dois internos conversando à luz ocasional dos raios e o
terror que cada palavra trouxera impregnou o ambiente até a madrugada trazer o
sono repleto de pesadelos.
Não é o fuzil que ele deseja...
Quase
não se ouviam os murmúrios de Pedro. Os raios iluminavam, através da janela, o
seu rosto e o corpo se embalando na escuridão. O preço do sangue continuaria
sendo cobrado. Não é o
fuzil... Ele levantou-se da cama, o rangido foi leve, e
caminhou em direção ao ancião, repetindo seu refrão amaldiçoado, enquanto a
presença do Inominável tomou forma em dor e sangue.
Nunca
foi o fuzil...
**
Dizem - os que dizem sobre o que nem sempre entendemos -, que muitas vezes, quando soa o toque da alvorada, pode se ver surgindo pela estrada um andarilho. Este traz a farda rota, o andar lento e os trapos que carrega não escondem coturnos em frangalhos. Um louco? Um ladrão? Um herói da pátria? Com a cabeça inclinada ele segue, murmurando uma canção nem sempre compreensível...
**
Dizem - os que dizem sobre o que nem sempre entendemos -, que muitas vezes, quando soa o toque da alvorada, pode se ver surgindo pela estrada um andarilho. Este traz a farda rota, o andar lento e os trapos que carrega não escondem coturnos em frangalhos. Um louco? Um ladrão? Um herói da pátria? Com a cabeça inclinada ele segue, murmurando uma canção nem sempre compreensível...
Por mais terras que eu percorra... Não permita Deus que eu
morra...
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