UMA AVENTURA MACABRA - Conto Clássico de Terror - Emilio Carrere
Emilio Carrere
(1881 – 1947)
(1881 – 1947)
Tradução de M. H. A.
Temos exemplos literários universalmente conhecidos de que os mortos voltam. Shakespeare nos presenta o pai de Hamlet e Caldós faz aparecer a mãe de Electra. É a celeste intuição do mistério que os poetas têm. Porém, à parte as criações artísticas, existem outras provas mais documentarias. Desde o velho, ingênuo e venerável Allan Kardec até agora, os testemunhos documentando a aparição dos que morreram centuplicaram-se. Há, a propósito, uma extensa bibliografia. Pérez, o admirável organista volta todas as noites para vibrar em acordes divinos o seu instrumento, como averiguou o gênio iluminado de Becquer.
Mais que um episódio literário, impressiona-nos um relato pessoal do fantasmagórico.
Vou lhes narrar um episódio que um diplomata estrangeiro conta em suas memórias. Ele viu e o refere com palpitante emoção de realidade, porque foi consigo que ocorreu.
Este jovem diplomata, cético e livre pensador, com bom filho do século XIX, foi uma noite a um baile de máscara, no Teatro Real, disposto a divertir-se, sem se preocupar com as consequências decorrentes. Era amigo do marquês de Salamanca e madrugada alta foi ao seu camarote, de onde melhor pôde contemplar o pitoresco e luxuoso conjunto da festa. Depois, dirigiu-se ao palco. Era o instante da maior animação. As mulheres mais formosas de Madri, os homens mais ilustres... A loucura agitava suas notas triunfantes no ritmo das danças sensuais... A orgia no antepalco culminava.
A cortina, repentinamente, foi alçada e uma bela dama se acercou do nosso herói. Era uma mulher alta, muito esbelta. Estava com um roupão negro e levava no peito, presa a ele, uma magnífica rosa chá. Um véu cobria o seu rosto. Estendeu suas mãozinhas aristocráticas e enluvada com um gracioso sorriso:
—Segue-me.
O diplomata viu-se seduzido pela aventura. Acedeu.
Atravessaram corredores, o vestíbulo e saíram à rua.
—Aonde vamos?
—Segue-me — replicou a misteriosa mascarada.
As ruas estavam desertas. Fevereiro havia revestido de neve os jardins e os tetos das casas. A dama da rosa no peito caminhava em silêncio, abstraída, como que olvidada da sua companhia e indiferente aos galanteios que ouvia.
Cruzaram a rua do Areal, a porta do Sol, a rua Alcalá... O diplomata começou a sentir-se inquieto com a grande caminhada. Não seria talvez uma cilada?
Estavam sós, numa rua sem ilumina
ção, a misteriosa e muda beleza e ele. Uma candeia acesa por um devoto ardia em frente à igreja de São José. A dama se encaminhou ao templo e nele, sem vacilações, penetrou.
— Mas, aonde vamos?
—Segue-me — ordenou novamente a enigmática criatura de roupão negro.
Agora começa o verdadeiramente sobrenatural.
Entraram na igreja, primeiro a dama e ele atrás. Entretanto, não e parece muito raro que aquelas horas, às três da madrugada, estivessem abertas as portas do templo?
A igreja permanecia em penumbra amedrontadora. A dama caminhou resolutamente pelas naves. Repentinamente, entre as sombras de um altar, a sua figura desapareceu em um penacho de fumo. O galã em vão a chamou, sufocado pelas trevas que o cercavam. Sua voz retumbava pelas cavidades do templo, com estrépito e um medo glacial do desconhecido, do outro mundo, o engolfou.
Enfim, divisou uma vaga claridade, amarelecida, na capela mais afastada. Como um autômato, encaminhou para lá os seus passos e esteve a ponto de cair morto de espanto. À luz dúbia de quatro círios se via uma urna funerária. Era então costume os cadáveres passarem a noite nas igrejas, antes de serem sepultados. Naquele dia, havia falecido uma senhorita de alta sociedade e o diplomata viu, no suntuoso ataúde, estendida, divinamente pálida, a misteriosa mascarada do baile do teatro Real. Sobre a negrura de seu roupão, à altura do peito, havia uma rosa chá.
Fonte: Jornal do Recife, 5 de janeiro de 1920
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