A CASA TORTA - Conto de Terror - Conto Fantástico - Ana Gama
A
CASA TORTA
(Ana Gama, Menção Honrosa no Concurso
Bram Stoker de Contos de Terror)
Ele sabia a
verdade. Todo ano várias pessoas morriam na casa torta. Na mesma noite do ano.
Não vou dizer a data, para evitar que vocês tenham a ideia de visitar a casa
nesse dia. Mesmo durante o dia. Não é seguro.
A casa torta
atraía suas vítimas, que chegavam aos poucos, logo após o pôr do sol, e não
saíam nunca mais. Seus corpos eram encontrados em pontos diferentes da cidade,
em meses diferentes do ano.
Ele
acompanhou o fenômeno por muito tempo, chegando cada vez mais perto, e logo
percebeu o horror: todas as pessoas que entravam na casa torta eram crianças,
idosos, ou muito frágeis por uma ou outra razão. Triste e revoltante, mas
significava que ele estava imune.
Comprou a
casa ao lado e construiu uma ponte, algum tempo antes da noite fatídica. Entrou
na casa torta e estudou suas partes. O andar de baixo era um só cômodo gigante.
Dois quartos enormes e um banheiro no andar de cima. Muitos móveis e objetos
entulhados. Sem cozinha.
Organizou sua
própria casa, ao lado. Espalhou colchões no quarto branco, o que tinha a porta
para a ponte. Empilhou mantas e travesseiros. Instalou prateleiras e estocou
nelas comida e kits de primeiros
socorros. Comprou dez lanternas e deixou-as dentro de um saco na porta da
ponte. Tudo em ordem.
Quando a data
chegou, o plano A era ficar na porta
da casa torta, impedindo a entrada das vítimas. Sentou nos degraus da frente e
esperou escurecer.
Muitas horas
se passaram e ninguém chegou. Seu lado otimista chegou a crer que sua presença
ali tinha cancelado o banho de sangue anual.
Então
começaram os gritos. Como todo ano.
Quando ele se
levantou dos degraus e olhou para trás, constatou horrorizado que estivera
sentado aquele tempo todo na frente de uma parede maciça. A porta havia
simplesmente sumido. Deu a volta completa na casa, ouvindo gritos cada vez
piores, e não achou nenhuma porta ou janela no térreo.
O único
acesso à casa torta era pela ponte que saía da sua própria casa.
Correu para
dentro, galopou pelas escadas e cruzou a ponte. A primeira pessoa que viu foi
uma mulher ensanguentada. Ela não tinha uma perna, e ele não saberia dizer se a
perdeu ali.
Pegou-a nos
braços e correu de volta para o quarto branco. Ela chorava muito. Ele a
acomodou num colchão e se esqueceu de lhe oferecer cobertor e comida. Cuidaria
dela mais tarde, ainda havia muitos gritos.
Voltou para a
casa torta, pela ponte. Um velhinho tremia e gritava ao lado de uma criança
catatônica. Levou a criança para o quarto branco. A mulher, ainda chorando,
estendeu os braços para pegar o menino. Dessa vez ele se lembrou de indicar as
prateleiras, se ela quisesse comida e curativos enquanto ele prosseguia com o
resgate.
Na ponte, ouviu o menino começar a chorar e
dizer à mulher:
__ Não quero voltar lá, por favor. Por favor,
não. Por favor. Não quero ir naquele quarto.
Então as coisas estavam acontecendo no quarto.
Ignorou o velhinho novamente e entrou no
quarto, pegando uma criança pequena em cada braço. Viu uma senhora estirada no
chão, no canto. Levou as crianças correndo e voltou para buscá-la. Ela era
muito pesada e demorou muito mais para carregá-la até o quarto branco. Além
disso, era a primeira vítima que parecia ter medo dele. Esperneava o máximo que
podia, e então disse algo terrível:
__ Não! Me larga! Não! Não! Eu não quero ir,
por favor não! Não me faça voltar pro outro
quarto.
Ele estava salvando as pessoas do quarto
errado.
Deixou a senhora no quarto branco, onde todos
tremiam e choravam baixinho, assustados. Pelo menos, agora havia dois adultos
lá e ele não precisava se preocupar tanto com eles. Seu foco era apenas tirar as pessoas de dentro
da casa torta. O máximo de pessoas. O mais rápido possível.
O velhinho não estava mais onde ele o tinha
deixado. Entrou rapidamente no outro quarto, mas não viu ninguém lá. Parou por
um momento, tentando identificar de onde vinham os gritos e gemidos. O quarto
temido parecia vazio, mas era difícil saber com tanto entulho. Sentiu dedos no
seu tornozelo.
Tinha imaginado que sua imunidade se aplicava
apenas ao chamado da casa, e provavelmente não resistiria a uma intervenção
ousada como essa. Já tinha se preparado para o momento em que se tornaria também
um dos corpos encontrados meses depois, longe dali. Por isso a pressa e a
aflição de salvar muitos o quanto antes. Antes de chegar a vez dele próprio.
Mas ainda não era agora. A mão que agarrava
sua perna era do velhinho que ele tinha preterido já duas vezes. Talvez, se não
tivesse ignorado esse senhor, poderia tê-lo impedido de ir parar nesse quarto.
Pediu desculpas enquanto o levava pelo braço, mas o velhinho explicou:
_— Eu que me escondi lá. Embaixo das coisas.
Eu que fui pra lá. Pra me esconder. Senão eu ia parar lá no banheiro. Ah, meu
filho, tudo, tudo menos o banheiro.
Largou o velhinho no meio da ponte, esperando
que ele conseguisse andar até o final.
O
banheiro da casa torta tinha sangue por todas as paredes. Puxou a cortina de
plástico. Três pessoas esfarrapadas se abraçavam dentro da banheira, encolhidas
e tremendo, aterrorizadas.
Os preparativos que ele tinha organizado
durante o ano previam cerca de dez vítimas.
Depois de várias viagens para dentro da casa torta, já contava quinze pessoas
espalhadas pelos colchões do quarto branco. Cada vez que retornava, encontrava
mais gente na banheira.
Enquanto trazia uma criança, teve a impressão
de ver algo na escada com o canto do olho. Tudo era muito rápido e a casa era
muito escura. Não havia tempo de investigar tudo. Na volta, percebeu que o
vulto era uma mulher que se arrastava degrau por degrau. Quando o viu, estendeu
o braço ferido e tentou dizer alguma coisa. Implorava com os olhos.
Pediu às pessoas do quarto branco que
cuidassem dela, porque estava muito ferida e em choque. Era a que estava em
pior estado até então. Percebeu que todas as vítimas arregalaram os olhos ao
vê-la em frangalhos.
__ Ai meus Deus! Ai meu Deus! Acho que ela...
acho que ela estava... no andar de baixo.
Ele não sabia se suas forças estavam indo
embora por causa do esforço físico ou da frustração contínua.
A escada da casa torta era uma espiral também
muito torta e ele não tinha como correr nela sem o perigo de cair. Pisou num
olho e numa mão no caminho para baixo. O corrimão estava escorregadio de
sangue. Sem dúvida, o andar de baixo era o epicentro da atividade. Ano que vem
começaremos por aqui.
Havia mais entulho no andar de baixo, muito mais
que nos quartos. As pessoas que ele achava estavam sempre soterradas ou presas
de alguma forma, e muitas ele decidiu deixar para conferir depois se ainda
estavam vivas. Quando ele retornava, ninguém estava no mesmo lugar.
Mais ou menos uma hora antes de amanhecer, os
gritos pararam. Ele entrou na casa torta mais uma vez, revirou tudo e vasculhou
todos os cômodos. Nada. Sua missão foi cumprida. Não tinha mais ninguém lá.
Voltou para o quarto branco, para checar se
todos estavam bem. Eram quase quarenta pessoas espremidas. Ele sentou no chão, cobriu
o rosto com as mãos e suspirou longamente, cansado. E então ouviu uma
risadinha.
Levantou alarmado, mas viu com alívio que era
uma das crianças que estava rindo baixinho e tapando a boca com as mãozinhas.
Ficou feliz em ver que não parecia traumatizada. A criança ao lado começou a
rir também.
E então outra.
E mais outra.
Todas.
E depois os adultos.
Todos riam alto e perversamente. Percebeu no
centro do quarto um montinho de pilhas. Eles tinham tirado todas as pilhas das
lanternas, porque sabiam que a força estava prestes a acabar. Riram ainda mais
alto vendo o pavor nele, quando se deu conta de que todos já estavam mortos.
Mortos há muitas horas. Mortos desde o ano passado. As pessoas do ano que vem
já estavam começando a morrer em suas casas.
A luz apagou. Ele ouviu um estalo, e sabia o
que era. Sua própria casa começava a entortar.
Ana Gama tem 35 anos e
nasceu em Santos, onde começou a escrever contos e publicá-los em fóruns da
internet. Em 2001, mudou-se para São Paulo, onde mora até hoje com a irmã e sua
gata Boo. Cursou Letras da Usp e foi funcionária pública por quatro anos antes
de decidir se dedicar integralmente a dar aulas de inglês; hoje é professora do
Ensino Fundamental. Grande fã de obras de terror e ficção científica, passou a
escrever mais contos nesses gêneros nos últimos anos. Seu conto "Ninho Vazio" está em
vias de publicação na antologia Mulheres
Contistas.
Muito bom parabéns
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