A SOLUÇÃO FINAL - Conto de Terror - Jorge Eduardo Machado
A
SOLUÇÃO FINAL
(Jorge Eduardo Machado - 6º Lugar no Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)
2018
Já
eram quase nove horas da noite quando o Dr. V. Helsing foi surpreendido por um
inesperado anúncio de seu secretário particular, que àquela altura se preparava
para recolher-se. O inverno nova-iorquino não recomenda visitas a essa hora,
mas o que deixara o eminente médico geneticista atônito fora o nome do
recém-chegado. Era alguém de quem não tinha notícias havia quase quarenta anos.
Mesmo considerando a evidente falta de etiqueta, não conseguiu negligenciar a
curiosidade que o estava arrebatando e mandou que o criado convidasse o homem a
entrar.
— Vincent? —
disse o visitante, assim que adentrou o gigantesco gabinete, que ocupava quase
a metade do primeiro andar da cobertura onde vivia o anoso e celibatário
cientista. — O tempo quase conseguiu apagar da minha lembrança suas feições.
— Arthur
Harker! — exclamou o anfitrião, fechando as páginas do livro sobre lendas
eslavas cuja leitura interrompeu para recepcionar seu interlocutor. E, após
dispensar o criado, retomou a conversa. — Muito tempo se passou. Não sabia nem
que você estava vivo. A que devo a visita?
— Muitos anos
mesmo… Mas tempo é algo de que já não disponho. Estou morrendo. E não quero
morrer sem saber...
— Morrendo?
Está doente?
— Foi tudo
muito rápido. De uns três dias pra cá. Estou muito fraco. Me sinto um
morto-vivo.
— Você não
parece tão mal para alguém de… setenta e três anos? É isso? Se a minha memória
não falha, você era cinco anos mais novo do que eu — lembrou V. Helsing,
enquanto encarava Harker, de pé à frente da mesa de leitura e vestido com uma
pesada jaqueta com capuz, que encobria as cãs e o pescoço.
— As
aparências enganam, Vincent. Veja você. Quem diria que o respeitável médico,
membro da Academia de Ciências, é um dos maiores genocidas do século XX? Se
estivesse numa pracinha de bairro, você passaria por um vovô simpático.
— Mas que
diabos!? Você… Você veio aqui pra me insultar? Ponha-se daqui pra fora!
— Não sem
antes você me responder a duas perguntas — sentenciou A. Harker, ao mesmo tempo
que girava a chave na fechadura da porta do gabinete.
— O que pensa
que está fazendo? Vou chamar Edgar…
— É melhor
você fazer o que digo — insistiu o visitante, sombrio.
O
tom do contendor fez com que V. Helsing serenasse os ânimos.
— O que você
quer afinal?
— A primeira
pergunta é: como você conseguiu conviver com a culpa durante estes anos todos?
Precisava ouvir isso de você e constatar se a sua fleugma britânica sobreviveu
a todos os crimes que perpetrou.
— Culpa? Não
sinto culpa por nada. Fizemos o que tinha de ser feito. Você inclusive.
O
pragmatismo do cientista exasperou Harker.
— Eu fazia
parte da sua equipe! Confiava em você. Consegue compreender que não tive mais
nenhuma noite de sono tranquilo nos últimos 37 anos? Não tenho paz, Vincent.
— Recrutei os
melhores médicos geneticistas e biólogos da América e da Europa. Você era um
jovem promissor. Sua defecção posterior me decepcionou bastante.
— Aquilo foi
monstruoso, Vincent. Foi como matar um paciente para eliminar a doença.
— Não “foi
como”. Foi exatamente isso. Repito: fizemos o necessário. Parece que os anos
afetaram sua memória. Vou lembrar a você como tudo começou. O Departamento de
Estado me contratou, pôs ao meu dispor verbas e me confiou uma missão:
exterminar os vampiros, que estavam se multiplicando pelas zonas temperadas do
globo. Não havia escolha.
— Mas por que
tinha de ser daquele jeito? Quantas mortes!
— Arthur!
Seja mais racional. Em 1970, já havia mais de duzentos anos desde que as
primeiras atividades de vampiros tinham sido registradas. Quantas vítimas eles
fizeram nesses dois séculos? Quantos cientistas antes de nós arriscaram suas
vidas ou até mesmo morreram para obter um conhecimento sistematizado da
natureza biológica e social dos vampiros?
— Para você
tudo se resume a isso. Um jogo calculista. E as pessoas que morreram? Você não
sente nada… por elas???
— Sinto.
Gratidão. Perceba, Arthur. Os dados estavam sobre a mesa. Na década de 60,
descobrimos as propriedades do vírus africano. Por quase dez anos, o
aperfeiçoamos em laboratório. Nesse meio tempo, percebemos seu potencial
deletério sobre a saúde dos vampiros, o que só foi possível quando entendemos
que esses seres da noite, longe de serem entes fantásticos, eram indivíduos
dotados de uma anatomia sofisticada; sobre-humana, porém natural. Quando nos
demos conta de que o sentido da termorrecepção, que comungam com os
quirópteros, tinha um antípoda, a termoemissão, associada a um fluido
invisível, o quiroplasma, que os afeta fisicamente, percebemos a chave para
erradicá-los. Eles são animais gregários, como nós. Dormem em cavernas, em
bando, dependurados. Um único espécime contaminado era capaz de contagiar todos
os outros… — o cientista se empolgava com a explanação, à medida que relembrava
detalhes do projeto que chefiara.
— Eu sei de
tudo isso, Vincent! O que me perturba é o que aconteceu a partir de 1981. A
solução final. Milhões de vítimas… Não pude suportar aquilo. Surtei, me afastei
da minha família, não aguentava mais ouvir o noticiário. Há 37 anos, anoiteci
por dentro e não vivenciei mais nenhuma alvorada.
— Precisávamos
de iscas. Milhares, milhões. Era isso. Tínhamos dinheiro, conhecimento. Só
faltavam as iscas. Jogamos os dados e testamos a sorte.
— Iscas… Você
não se arrepende de nada mesmo. Criou um mal para combater outro — lamentou
Harker, e fez uma pausa, enigmático. — A segunda pergunta é mais importante:
valeu a pena? Ou ainda resta algum deles?
— Você pode
ter uma certeza: essa espécie está extinta. Há dez anos não há mais registro de
atividade vampírica no mundo inteiro. A sorte nos sorriu. Quebramos a banca.
*
1986
A
madrugada caía prometendo uma trégua com o verão abafado, e um novo frescor
invadia aquele pequeno apartamento no Queens, compartilhado por dois jovens
radiantes de vida. Aquele era o dia do plantão de Quincey no hospital, mas
Renfield aproveitara a folga se divertindo em um dos muitos clubes noturnos
nova-iorquinos e agora chegava em casa para descansar. Pela manhã, o balcão da
lanchonete fast-food o aguardava.
Ligou
o rádio que ficava no banheiro. Gostava de ouvir música enquanto tomava ducha.
Ensaboou-se ao som de The Final Countdwon, da banda Europe, e esfregou
com especial asseio o ânus. Era como um ritual de purificação. A água retirava
de seu corpo as impurezas mundanas, e, findo o banho, já era novamente digno de
estar em seu santuário particular, o lar doce lar.
Estava
acabando de se enxugar quando ouviu um barulho no quarto.
— Quincey, é
você? — berrou, sem obter resposta. Lembrou-se de ter deixado a janela aberta e
pensou que poderia ser um gato intruso.
Enrolou-se
na toalha e foi ver o que era. Ao entrar no quarto, deu um gritinho assustado.
Alguém o observava desde a escada de incêndio.
Reconheceu
prontamente o visitante inesperado. Trocaram olhares na entrada da boate e
durante um tempo na discoteca. Depois, perdeu o paquera de vista. Era um homem
másculo, de quase um metro e noventa de altura, cabelos negros e fartos, olhos
cinzentos, compleição austera, vestido com um sobretudo inapropriado para a
temperatura daquela época do ano.
Renfield
o achava lindo e certamente teria transado com ele. No entanto, mesmo sendo um
adepto do culto à promiscuidade, não estava mais disposto. A exaustão sexual o
consumia. Depois que as luzes abaixaram na danceteria, começou a brincadeira do
“navio negreiro”, com aquele choque de dezenas de corpos excitados no escuro, e
ele foi possuído por três parceiros. A orgia sugara todo o seu vigor. Quem sabe
outro dia? Agora, queria que o homem fosse embora.
Renfield
não sabia, mas Drago era seu nome. Ele tinha fome. Não de sexo, mas de sangue.
Uma fome ancestral, que vinha de longe, de quando eram neófitos os que hoje são
experientes, ou de quando estes nem haviam nascido.
O
olhar sedutor e hipnótico do estranho penetrava o do anfitrião. Como
dispensá-lo? Como não convidá-lo a entrar, mesmo que fosse para apenas se
conhecerem melhor?
— Entre —
assentiu Renfield, que em segundos desfaleceu nos braços do homenzarrão, nu,
completamente entregue. Logo, sentiu uma incisiva pressão em dois pontos do
pescoço, suavemente dilacerado pelos caninos do vampiro, que, ao fim do
banquete, deitou a presa sobre a cama, exangue.
Drago
conhecia bem o que os próximos dias reservavam a Renfield. Uma dolorosa e lenta
transformação, ao fim da qual ele seria mais um da sua linhagem. Todavia, isso
não importava. A caçada o deixara extenuado. Era hora de voltar para casa, para
junto dos seus, e descansar. Metamorfoseou-se num morcego e saiu voando através
da janela, à luz da lua, até chegar ao seu ninho, localizado numa montanha a
léguas de distância da Grande Maçã, só um entre as centenas de santuários da
espécie ao redor do mundo.
Acostumado
a espalhar o terror ao longo de séculos, Drago já não se lembrava mais de como
era sentir medo. Mas logo reconheceu a sensação, ao notar que sua pele, ainda
na forma animal, explodia em centenas de ulcerações. Transformou-se em humano e
urrou de dor. Seu corpo estava tomado por ferimentos, e, se fosse possível se
mirar no espelho, veria sua face deformada, como se exposta a temperaturas
infernais.
Em
volta, tudo era caos. Seus consortes sofriam o mesmo processo, como se um gás
venenoso tivesse sido liberado dentro da caverna. O farfalhar de pavor dos que
estavam quirópteros e os gritos desesperados dos que se apresentavam sobre-humanos
se chocavam com as estalactites, produziam ecos e confundiam o radar natural
dos vampiros. Em pouco tempo, a algaravia cessou, e todos ali encontraram um
destino improvável para seres pretensamente imortais. Tratava-se de um desfecho
irônico para uma epopeia secular: no covil dos vampiros, a morte entrou sem ser
convidada.
*
2018
— Está certo
disso? — insistiu A. Harker, como que ensaiando abalar o sólido edifício das
certezas de V. Helsing, ao plantar dúvidas explosivas em seus pilares.
— Depois do
lançamento da solução final, levou algum tempo até que os efeitos do vírus se
alastrassem na população. Em seguida, os registros de ataques de vampiros foram
diminuindo ano a ano e se tornaram raros. A partir daí, monitoramos os poucos
espécimes ativos, até que desaparecessem. Após cinco anos sem qualquer
notificação, concluímos que a peste estava erradicada. Não há nenhuma dúvida
quanto a isso.
— Eu me
lembro de que, entre os especialistas do projeto, não era uma preocupação tão
relevante o que aconteceria com as cobaias depois de serem mordidas…
— De acordo
com os testes e as projeções, estava claro que, infectadas pelo novo vírus, não
seriam contaminadas pelo vampirismo. Infelizmente, seu destino certo era a
morte. Aonde quer chegar?
— Quantos
vampiros existiam quando foi lançada a iniciativa, Vincent? Quatrocentos,
quinhentos mil? Para matar menos de meio milhão de vampiros, você espalhou um
vírus que ceifou a vida de dezenas de milhões de pessoas. Você não enxerga mesmo
o absurdo das suas ações?
— Das nossas
ações, você quer dizer. Me diga uma coisa, Arthur: um sujeito tão escrupuloso
quanto você, que mergulhou num estado mental decadente por se entregar à culpa,
por quais razões guardou um segredo por 37 anos? Por que não foi a público
compartilhar sua angústia?
A.
Harker gargalhou alto.
— Você só
pode estar brincando. Quem acreditaria num lunático que denunciasse uma teoria
da conspiração desse tamanho? Além do mais, eu tinha medo. O governo sumiria
comigo em dois tempos.
— Medo? Ora,
Arthur. Não éramos mafiosos. Você acha que o governo o mataria?
— Foram
capazes de matar milhões de inocentes. Lançaram um vírus sem nem conhecer a
cura ou a vacina contra ele.
— Não seja
radical. Foram medidas extremas para um problema extremo. Reconheço que os
efeitos saíram do controle, avançaram muito além do que poderíamos imaginar.
Ainda assim, com o tempo, a condição das cobaias melhorou bastante, novos
tratamentos foram descobertos. No início, o risco foi calculado. A população
escolhida como cobaia estava no estrato social mais descartável, e…
— Para você,
homossexuais, prostitutas e usuários de drogas são descartáveis! Sua ideologia
me enoja, Vincent. Depois de tudo o que aconteceu, como pode dormir tranquilo
sabendo que foi o responsável pelo desenvolvimento e pela disseminação do vírus
da aids!? — vociferou Harker, e nesse momento se aproximou, fixou as mãos
magras sobre a mesa e encarou V. Helsing, sentado atrás do móvel.
O
quase octogenário cientista estremeceu, porém tentou recompor-se e retomar o
controle da situação.
— Acho que já
fomos longe demais. Vou pedir a Edgar que o acompanhe até a saída — disse,
notando que o rosto de Harker parecia mais pálido do que quando chegara. Uma
vez mais, chamou-lhe a atenção o modo como o interlocutor se vestia, com o capuz
da jaqueta a revelar apenas a face. — Está muito frio lá fora?
— Não mais
que aí dentro.
Como
Harker não movera um músculo desde que insinuara a despedida, o anfitrião
decidiu chamar o criado:
— Ed…
No
entanto, foi interrompido pela mão esquerda aparentemente frágil, mas
surpreendentemente forte e ágil, do visitante, que agora comprimia o pescoço do
médico e o puxava para perto de si, por sobre a mesa.
— Escute bem,
seu velho idiota. Não existe cem por cento em ciência. Antes de dizer que
obteve algum sucesso, leve sempre em conta as exceções, as probabilidades
ínfimas da estatística, aquilo que escapa pelas fímbrias do racional. Há poucos
dias, fui atacado por um certo Renfield. Era para ele ser um entre os seus
milhões de vítimas. Mas ele sobreviveu, graças ao vampirismo. E agora estou
seguindo sua trilha. Somos uma casta imune — revelou Harker, retirando com a
mão direita o capuz e deixando à mostra o pescoço com duas pequenas nódoas
arroxeadas.
— Vo...cê
de...se...ja meu san...gue? — perguntou com dificuldade V. Helsing, com a voz
abafada pela força do sobre-humano.
— Seu sangue?
Não… Ainda consigo controlar minha fome. De todo modo, eu teria engulho em me
banquetear com seu sangue. Na verdade, queria dar a você algo que lhe pertence
— disse o vampiro, enquanto passeava a mão pelo bolso direito da jaqueta e dele
retirava uma seringa com material biológico, que cravou no braço esquerdo de V.
Helsing, mesmo por sobre a manga da camisa de linho.
Depois
de injetar o sangue contaminado com HIV, Harker livrou o pescoço do médico, que
tombou na cadeira e soltou um grito de horror.
— Sinto que
não sou mais humano. Você bem sabe como é isso. Boa sorte, Vincent —
despediu-se o visitante. E abriu a pesada janela, que bafejou para dentro do
gabinete uma lufada de ar frio. Transformou-se em morcego e sumiu na noite
densa de inverno.
*
Mais
de um mês depois, o convalescente V. Helsing ouviu do médico o indesejado
diagnóstico:
— Infelizmente,
a ministração dos coquetéis não surtiu efeito. O senhor agora é soropositivo,
Dr. Vincent Helsing.
Mas
não era bem a presença do vírus em seu sangue que o abatia. Já nos estertores
da vida, o geneticista se dava conta de que a ciência, com seus métodos,
procedimentos e cálculos, não oferece todas as respostas. A despeito de todos os
testes e controles, a natureza sempre presenteia o imponderável com as
exceções. E, no caso da malograda solução final, V. Helsing encontrara em
Renfield o seu zero-vírgula-zero-um-por-cento, o que em outras palavras
significava dizer que ele experimentou o fracasso a cem por cento…
Jorge Eduardo Machado, de 38 anos, é jornalista formado pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), em 2002. Repórter com passagens pelos jornais O Globo,
Extra e Folha Dirigida, além da Rádio Nacional, foi, ainda, revisor da Empresa
Municipal de Multimeios da Prefeitura do Rio (Multirio) durante oito anos.
Também bacharel em Direito, atualmente é analista judiciário do TRT/RJ.
Premiado em concursos literários e participante de diversas antologias, em 2017
lançou seu primeiro livro solo, O diabo
mora nesta casa e outras histórias de horror e suspense, pela Multifoco
Editora.
Comentários
Postar um comentário