A TORMENTA NA RUA 7 - Conto de Terror - Vinicius Carvalho Quesada
A TORMENTA NA RUA 7
(Vinicius Carvalho Quesada – Menção Honrosa
no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)
Ao longe,
muito acima das montanhas, alguns pássaros cortavam os céus cinza-plúmbeos
daquele dia chuvoso, voando em sua característica formação em V. O rugido de um
trovão reverberou por toda a extensão do pasto abaixo, sobrepujando alguns cães
que buscavam matar sua fome nas proximidades de um laranjal. As nuvens pendiam,
pesarosas, pouco acima das grandes corcovas montanhosas do solo fértil, só o
que restava dos vívidos raios solares de outrora era uma luminosidade mórbida e
opaca, obstruída pelas frontes de água acumuladas no interior das nuvens
maciças. Pouco tempo após um raio incendiar uma árvore solitária na paisagem,
uma tormenta foi desencadeada vigorosamente.
As gotas,
semelhantes às lágrimas de deuses furiosos, embruteceram a paisagem, içando a
poeira do solo e sufocando-a pouco a pouco. Pelos olhos dos pássaros, as
pessoas corriam para dentro de abrigos na paisagem urbana mais abaixo, no reino
de terra. Ao que parecia, a paisagem seria tomada pelas águas pelos próximos
dias, e as vãs esperanças de um final de semana no bosque municipal
evanesceram-se tão rapidamente quando os raios solares naquele início e manhã.
Tomado pela
fadiga, um pardal arremeteu-se contra a janela de uma das poucas lojas de materiais
para construção da cidade. Não tardou em adentrar o reino dos mortos ali mesmo,
mas não sem causar certo reboliço nas pessoas que buscavam abrigo perto de
algumas ferramentas.
— Ele morreu?
— Um homem perguntou, aproximando-se. O jovem que passava por ali, inquieto. — Ele
morreu, sim. O homem insistiu, mas havia perdido de vista o funcionário da
loja, que caminhava apressado.
No interior, o
jovem moveu alguns dos objetos do balcão para baixo, assim teria mais espaço
para executar sua tediosa labuta. Quando se voltou para a estante atrás de si,
deparou-se com o proprietário das lojas do prédio, fitando-o.
— Me desculpa
o atraso, seu Izaac. Não vai acontecer de novo.
— Não
esquenta a cabeça. Com essa chuva eu não vou descontar do seu pagamento. Mas
não é para se acostumar. —Piscou com o olho direito e subiu as escadas para
cuidar de seus afazeres, dos quais Maurício pouco sabia.
Ele deixou
seus pertences caírem ruidosamente dentro de uma gaveta e lá se podia ver o
nome na cédula de identidade: Maurício.
Havia
conseguido aquele trabalho recentemente, mas não esperava ter permanecer por lá
por tanto tempo, afinal a faculdade havia mudado os horários e era cada vez
mais difícil organizar todo aquele caos que sua vida havia se tornado; algo
parecido com a tormenta do lado de fora, que ganhava mais e mais volume,
adensando-se. Era inacreditável!
Considerava
também o efeito das chuvas. Já podia ver pessoas amontoando-se na loja,
buscando materiais para reconstruir as casas do outro lado da cidade durante a
próxima semana. Muito embora fosse um local agitado, ele apreciava aquele
burburinho constante. Era mais reconfortante do que aquele silêncio sombrio
dentro de sua casa desde que fora deixado (um eufemismo para expulso da casa da
ex). Ali dentro tudo parecia estar ocorrendo de maneira perfeitamente normal,
até que...
...Do lado de
fora ouviu um ruído que estava além da capacidade de interpretação de seus
sentidos: um som metálico que reverberava e fazia todas as janelas pelas
proximidades tremerem e o vidro de algumas cederem. Era um som grave e
profundo, muito embora fosse intenso o suficiente para que algumas pessoas
tapassem os ouvidos. Diminuiu gradativamente até desfalecer-se. Que diabos fora
aquilo?
Contrariando
seu bom senso, Maurício saiu pela entrada da loja e se reuniu com algumas
pessoas que se indagavam sobre a natureza daquele som, mas era difícil
compreender o que cada um dizia naquela celeuma; o que havia era uma sinfonia
caótica de vozes humanas, água despencando e o que parecia ser um acidente de
carro na esquina com a escola de idiomas. O velho saiu pela porta da frente
logo atrás, e não pareceu importar-se com o fato de que seus funcionários
haviam abandonado seus postos. Na verdade, parecia mais interessado no acidente
com o fusca vermelho mais adiante. Maurício, no entanto, dirigiu sua atenção
para a parede da frente daquela casa espaçosa do vizinho. Havia visto algo de relance?
Ou era sua impressão? Havia percebido a água turvar-se nas proximidades da
parede branca. Não teve tempo de pensar em mais nada, pois em uma fração de
segundo a parede desabou escandalosamente. Algumas das pessoas que estavam se
abrigando da chuva na entrada da loja saltaram para dentro, tomadas pelo pânico.
Maurício, da mesma forma, não havia escapado daquele breve susto: havia uma
pontada gélida em seu coração, seguida pelos calafrios.
Ele se
aproximou do local destruído, imaginando se poderia encontrar algum vestígio do
que acreditava ter visto. Como um dos poucos estudantes de engenharia da
cidade, sabia que haveria a necessidade de uma força muito maior do que a de um
vento médio como aquele para ruir uma parede, mas só notou depois de algum tempo
o que o havia levado até ali. Os tijolos e todo o entulho haviam sido empurrados
para o interior da casa. Como era possível? Era como se algo tivesse perfurado
a parede da casa pelo exterior e destruindo os móveis no processo. A chuva
cessou por alguns momentos, permanecendo rala o suficiente para que mais
pessoas saíssem às ruas.
A polícia
chegou depois de algum tempo, afastando a maioria das pessoas do acidente.
Maurício soube que era definitivamente hora de voltar para sua labuta e parar
de abusar de sua própria sorte. Quando entrou de volta na loja, viu que o local
estava menos tumultuado do que antes, e ouviu a clássica música do plantão de
notícias. Havia abandonado o luxo de uma TV em casa para se focar nos estudos, mas
ficara alienado dos acontecimentos no mundo todo. Viu uma repórter narrando os
acontecimentos. Antes que pudesse aumentar o volume, Izaac o fez.
—...de granizo volumoso atingiu a costa do Japão. Já em
Sakurajima, um dos maiores vulcões, a erupção deixou centenas de mortos. Na Itália
e no Equador a...
Izaac parecia
ter visto o suficiente da reportagem. Desligou a TV sem cerimônias
—Eu tenho lá
cara de quem quer ouvir tragédia? Você ouviu o que andam falando?
—Não, não
ouvi...
—Parece que
eles ouviram um som parecido com esse lá no Japão, e o vulcão matou muita
gente. Tem muita gente comentando que é um sinal do apocalipse. Como é que é o
nome daquela coisa? Você é jovem. Deve lembrar... Trompa de não sei do quê...
—O senhor
fala das trombetas do apocalipse?
—Isso mesmo. Você
acredita nessas coisas ou...
Foi
interrompido pelo telefone. O velho começou uma discussão acalorada com alguém.
Aparentemente a água havia causado algum estrago em sua casa. Maurício pôde
ouvir detalhes menores enquanto atendia alguns clientes. Por fim, Izaac
encerrou a discussão:
—Cê pode fechar a loja mais tarde? Vou
ter que sair agora.
Maurício não
sabia o que havia ocorrido, mas o velho parecia verdadeiramente tomado pela
ira. Sabia que não deveria perguntar coisa alguma, caso contrário serviria de
bode expiatório para a fúria de seu patrão. Seguiu-o por um trecho, mas não
ousou pisar novamente para fora da loja. Muito embora não tivesse saído do
local pelas próximas horas, soube por alguns fregueses que um vulcão na Itália
havia irrompido; no mesmo dia, um no Equador e outro na Indonésia. Ficava
imaginando se caso sua mãe ainda estivesse viva, estaria fazendo aquelas
orações alucinadas e divagando sobre um suposto final trágico para a
humanidade. Estava compenetrado em seus pensamentos, mas foi repentinamente
arrancado de suas próprias ideias quando os gritos e murmúrios começaram do
lado de fora.
Não pode
acreditar no que ocorria do lado de fora. A água da chuva havia ganhado mais
volume e começara a arrastar itens da loja rua abaixo. Correu naquela direção,
praguejando ante a ideia de ser responsabilizado por aquelas perdas.
Perdeu
algumas peças metálicas no bueiro. Caminhou até o meio da rua, frustrado, mas
parou por ali, tomado por um medo crescente que se instaurou repentinamente. Diante
de si, a chuva não parecia atingir o solo. Era como se uma estátua invisível
impedisse que as profusas gotas atingissem o chão. Deu um passo para trás, e
viu algo se movendo. Conforme a chuva aumentava, observou que o que quer que
fosse que se movia em meio à chuva, era muito grande. Uma menina apontou para
aquela forma e começou a gritar. Por um breve momento, após o início do
tumulto, Maurício viu algo voando em sua direção. Abaixou-se, mas fora
desnecessário: o fusca vermelho fora arremessado com muita força e atingira o
topo da loja de materiais. Viu algo caminhando pela chuva em sua direção.
Correu para dentro da loja. Sabia que o velho guardava um revólver nas gavetas.
Havia algo de errado.
Ouviu um
estranho rugido atrás de si quando passou pela entrada. Alguma coisa destruiu
parcialmente a parede ao passar pelo mesmo caminho.
Quando
Maurício finalmente atingiu o balcão, arfando, tentou buscar pela arma, mas
tudo o que pôde encontrar na gaveta foi sua carteira e seus documentos. É claro!
A arma havia sido deixada do outro lado (o velho era um psicopata. Sempre
deixava a arma carregada), na loja de tintas no mesmo prédio. Respirou fundo e
notou que pairava um estranho silêncio dentro do local, apesar do caos
crescente do lado de fora. Ouviu alguns disparos, e ao que tudo indicava, mais
algum veículo fora arremessado, desta vez, contra a parede da escola. Caminhou,
tentando enxergar algum movimento no interior da loja, mas não conseguiu ver
coisa alguma. Avançou mais alguns passos para o lado direito. Esbarrou em algo.
Sentiu um
calor intenso, mas não parecia haver nada diante de si. Uma gota preguiçosa
escorreu por uma superfície vítrea diante de seus olhos e atingiu o ladrilho.
Sentiu uma brisa leve e hedionda que julgava ser a respiração do que quer que
fosse aquilo, antes que percebesse, foi arremessado contra uma prateleira após
um golpe violento em seu peito. Gritou quando o osso de seu braço direito se
partiu. Ouviu alguns baques titânicos no chão. Passos? Não teve tempo para
pensar. Viu que uma das estantes no centro da loja despencou e se pôs a correr.
A entrada para a loja de tintas era ali. Sentiu algo quente escorrendo por cima
de seus olhos, seu mundo foi tingido de vermelho por alguns segundos; limpou
seus olhos com a mão esquerda e sentiu uma pontada de dor. Quando passou pela
entrada, viu pedaços do concreto sendo destruídos atrás de si e a tinta de
algumas latas na prateleira escorrendo.
Naquele
momento, talvez como uma piada de mal gosto de algum deus cruel, a tinta
atingiu a criatura que passava pela porta a largas passadas. Maurício teve um
vislumbre do rosto: os olhos estavam nos lugares errados, o corpo truculento
lhe lembrava o de um gorila gigantesco, e os dentes... lhe lembravam lápides
apodrecidas e disformes.
Atingiu o
balcão da loja. Do lado de fora ouviu um ruído estrondoso de motores. Imaginou
que deveriam ser caminhões ou algo do gênero. Não teve tempo de pensar. Seu
braço direito estava quebrado (muito possivelmente em mais de um lugar), por
isso pegou a arma na gaveta com a mão esquerda. Viu a coisa hedionda caminhando
em sua direção. Fez uma breve oração, e puxou o gatilho.
As pessoas no
cinema faziam aquilo parecer fácil, mas logo aprendeu que na vida real era
bastante diferente. O baque fez com que a arma lhe escapasse das mãos e caísse
em cima do caixa registrador. Pegou-a novamente, e disparou. Desta vez viu o
projétil perfurar a pele da criatura, que protestou com um feroz rugido. Atirou
mais uma vez, mas isto não barrou o avanço do gigante invisível. Não teve tempo
de fazer mais nada, pois os militares invadiram a sala, descarregando uma
tempestade de projéteis incandescentes enquanto alguém berrava ordens na sala
anterior.
Saltou em
direção ao chão e sentiu uma dor lacerante no braço. O resto foi escuridão.
***
Quando
acordou, não sabia ao certo quanto tempo havia se passado. Levantou-se,
resfolegando depois de ter engolido água... Salgada? Água do mar? Estavam longe
do litoral... Ouviu um dos militares gritando ordens do lado de fora. Ouvia-se
o sino da igreja ressoando, gotas de chuva tamborilando nos telhados, tanques
de guerra desfilando pelas ruas com seus motores ruidosos. Podia ver algumas
das criaturas mortas sobre telhados ou nas ruas. Via algumas coisas pousando em
árvores e outras voando perto dos telhados, mas só podiam ser vistos por causa
do impacto com a chuva. Teve de abaixar-se para evitar mais uma saraivada de
disparos. Quanto tempo havia ficado ali? Não sabia. Mas parecia ter sido muito
tempo, pois a paisagem havia se modificado demasiadamente: soldados e criaturas
cobriam toda a rua sete, onde trabalhara no último ano.
Seu coração
pareceu parar por alguns segundos e o sangue congelou em suas veias quando
ouviu novamente o som ecoando pelos céus: grave e profundo, mas muito intenso.
Outra trombeta soou imperiosa.
Ouviu o
pastor Diego gritando a plenos pulmões na entrada do cinema:
— COM O TOQUE
DA SEGUNDA TROMBETA, UMA GRANDE MONTANHA EM CHAMAS SE LANÇOU AO MAR, E ENTÃO AS
EMBARCAÇÕES NAUFRAGARAM...!
Do outro lado
da janela, ele viu o fim do mundo.
Nascido em Alfenas, Minas Gerais, Vinicius Carvalho Quesada mudou-se
muito jovem para Vargem Grande do Sul, cidade do interior paulista. O autor
graduou-se em Letras em 2008. Especializou-se em Língua Portuguesa; Mestre em
Linguística e Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de São
Carlos. Desde jovem manifestou interesse pelo artístico, em especial pelo
literário, tendo lido a maioria dos livros de Stephen King na tenra idade, além
de outros do mesmo gênero. Esboçou os primeiros contos oficialmente no ano de
2007, quando encerrava os estudos musicais e focava-se cada vez mais nos
estudos de Literatura Inglesa.
Comentários
Postar um comentário