FILHO DA SOLIDÃO - Conto de Terror - Hélio Sena




FILHO DA SOLIDÃO

(Hélio Sena - Menção Honrosa no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)



Sim – morta, morta, morta. Seu corpo estava estirado entre os arbustos. Parece que ainda a vejo sorrindo... Nossa, como eu a amei! “Eu vou embora”, me disse ela, certa vez. Eu virei um bobalhão. Nem soube o que dizer. Então ela se foi. Quis ir atrás dela, mas me deixei ficar aqui, no meio dessa floresta interminável... Oh, Deus, tudo poderia ter sido tão diferente! Por que tivemos que encarar o horror?
***
Raquel está morta. Foi atacada e estraçalhada por um lobo... O corpo dela está caído entre os arbustos do pequeno caminho que vai do quintal de casa à floresta. Minha floresta. Minha! É assim mesmo que me refiro a esse imenso mar de árvores de todos os tipos e tamanhos que me cerca e ao qual estou ligado de forma definitiva, desde que vim da cidade grande, à procura de sombra, silêncio... e paz.
***
            Não, não, não sei a quem pertence essa floresta. Não quero saber. Talvez ela seja minha de fato, embora só tenha pagado por esta casa onde moro e por uns poucos metros de terra além, até onde está caído o corpo ensanguentado de Raquel, destroçada pela fúria de um lobo... Pobre Raquel! Ainda a vejo com o copo de vinho na mão, e aqueles cachos loiros se derramando sobre seus ombros pequeninos...
***
            Amei Raquel mais do que à minha esposa. Quando acabei meu casamento, e a encontrei, eu a trouxe para cá comigo. Ficamos apenas três meses juntos... Certa manhã, inesperadamente, ela pegou suas malas. “Sua vida está arrumada, então é melhor que eu volte para a minha vida”, disse ela com um sorrisinho infantil, enquanto eu, apalermado, gaguejava: “E agora, como vai ser...? Vou ficar só? Vou...?”
***
            Um mês depois, puxa!... Mal acreditei quando vi o carro dela aparecer na curva da estrada, levantando poeira e espantado passarinhos e calangos, e me enchendo de felicidade. Raquel, porém, desceu do automóvel com um sorriso contido. “O que foi?”, perguntei. “O que aconteceu?” Timidamente, ela me contou que havia encontrado “alguém”, e que viera se despedir – podia ter uma última noite comigo, podia?
***
            Apesar do tom de despedida, tivemos uma noite grandiosa, inesquecível. Comemos, bebemos, rimos, dançamos e depois fizemos amor uma, duas, várias vezes. De manhã, ela partiu novamente. Nos dias que se seguiram, passei momentos horríveis, cheguei a cogitar voltar para a cidade, e ser feliz para sempre com Raquel. Mas o tempo foi passando, e eu rezando para que um dia minha pequena voltasse.
***
            O senhor Miguel, o homenzinho baixo e corcunda que me presta alguns serviços, jura que Raquel não vai voltar. O senhor Miguel às vezes é bem estranho. Ele mora a menos de um quilômetro da minha casa. Vive só e nunca fala do seu passado. Certa vez, fazendo as costumeiras compras no vilarejo aqui perto, escutei uma mulher dizer para o dono do açougue e depois se benzer: “O Miguel corcunda? É um bicho!”
***
            Dois anos depois, Raquel apareceu. Dessa vez, vinha toda sorridente. Me abraçou, me beijou e disse que viera passar uma semana comigo. “E o seu ‘alguém’?”, perguntei. “Ele não precisa saber!”, disse ela. Daí desfrutamos nossa semana, até que, na véspera de sua partida, a convido para um passeio, à noite. Vamos até a floresta. A lua está cheia, brilhante, linda. Então eu me transformo... A solidão é algo assustador!


Hélio Sena nasceu (e ainda mora) no Distrito de Padre Linhares, em Massapê-CE, no ano de 1975. É professor graduado em Letras e pós-graduado em Gestão Escolar. Seus textos integram diversas coletâneas de contos e poemas, a maioria pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores,  entidade da qual é Membro Emérito. Publicou em 2012 um livro de contos, Falsidade da Noite. Em 2016, foi a vez de Estrela é Mesmo um Bicho Bom e Nós & a Rosa (ambos de poesia). Em 2017, saíram “Assassinato e Outros Contos e Canção Inversa (poesia). É Acadêmico Titular da Litteraria Academiae Lima Barreto, no Rio de Janeiro, onde ocupa a Cadeira Nº 71. Contato: heliosena@rocketmail.com


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MULHER ALTA - Conto Clássico de Terror - Pedro de Alarcón

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe