IRMÃS DE SANGUE - Conto de Terror - Taisa Isayama
(Taisa Isayama - 6º Lugar
no Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)
Já
não espero que entenda. Tenho plena consciência do quão estranho vai soar, mas
saiba que soa igualmente estranho para mim, mesmo agora, depois de todo este
tempo. Às vezes penso que foi ela quem me deixou assim, mas às vezes penso que
permiti que ela chegasse a este ponto por já me sentir assim desde antes.
Talvez, em parte, a culpa seja minha, porque continuo a dar-lhe ouvidos. Ouço-a
agora mesmo dizendo que o que estou fazendo é inútil, que você não vai
acreditar, que você já desistiu de mim há muito tempo. Isto me incomoda, mas
não me assusta, o que me assusta é ela me dizer que você vai me afastar dela,
que nunca mais voltarei a vê-la. E como vou sobreviver deste jeito? Será que eu
quero mesmo descobrir quanto tempo eu suporto sozinha? Talvez ela tenha razão,
eu não sou nada sem ela, não sei onde eu começo e ela termina… Eu deixei que
chegasse a este ponto, eu sei, mas eu não queria. Juro que não queria.
Creio
que preciso, antes de tudo, falar sobre a minha irmã. Meu pai deve já deve
tê-la mencionado a você, mas não acho que eu tenha falado dela antes, sempre
tentava desviar o assunto. Ainda agora, sinto-me tentada a desviar novamente.
Eu poderia ter posto um fim a tudo isso na primeira vez em que você me
perguntou sobre ela. Sei que ri achando graça da sua preocupação descabida e
você provavelmente sabia que era mentira, que eu só não queria falar, talvez
achasse que eu não quisesse ser ajudada. Entendo que para você seja uma escolha
óbvia optar pelo caminho que traz a felicidade. Mas para mim não era. Não
quando seguir por este caminho significava deixá-la para trás. Eu não podia,
tente entender. Nós dividimos tudo, desde o começo: os genes, o útero, a mesma
célula embrionária. Eu sempre soube que poderia contar com ela com o que quer
que fosse, pois ela esteve ao meu lado desde muito antes de qualquer outra
pessoa.
Usávamos
um daqueles colares estúpidos que namorados usam, um coração que se parte ao
meio e cada um usa uma metade, não porque eu a amava daquele jeito, mas porque
isto era o que eu sentia: que ela era parte de mim, éramos a metade que complementava
a outra. Creio que, por isso mesmo, senti uma parte minha se estatelar junto
com ela no concreto firme no dia em que ela caiu do prédio. Senti como se me
arrancassem um membro do corpo. E o que eu faria com o que eu estava sentindo?
Com quem eu falaria? Era somente ela quem eu sabia que poderia procurar quando
me sentisse assim. Não meus pais. Não meus amigos, aliás, que amigos? Eu tive
ódio dela por algum tempo. Como ela podia ter sido tão egoísta? A pressão era
forte sobre nós duas, ela não sofria mais do que ninguém...
Mas
como se um pano estivesse cobrindo meus olhos a vida inteira e só então fosse
retirado, eu percebi que ela sempre pareceu lidar com tudo muito mais
graciosamente do que eu. Sempre tinha um sorriso no rosto e uma expressão tranquila,
eu jamais teria imaginado que tudo aquilo fazia parte do teatro, o papel que
ela desempenhava para os outros, para que ninguém soubesse o que realmente
estava acontecendo por dentro. Ela estava tão exausta quanto eu da constante
busca pela perfeição, uma perfeição que nós não queríamos, mas que nossos pais
faziam questão que atingíssemos e não aceitavam qualquer resultado diferente. E
para quê? Eles nem estavam aqui para ver!
A
pressão era a mesma em cima de nós duas, mas ela tinha a pressão extra de
parecer bem, porque eu obviamente não conseguia. Quando ela foi embora, eu
percebi. Percebi que não tinha mais ninguém com quem dividir aquela
responsabilidade, a pressão era toda em cima de mim. E eu não sabia se
aguentaria. Eu ia quebrar a qualquer momento. Talvez já tivesse quebrado.
Várias vezes, assim como ela, eu olhei pela janela do quarto e me perguntei se
não era uma boa ideia.
Na
última dessas vezes, eu, apoiada com os cotovelos sobre o parapeito, observava
os andares de baixo, imaginando o que ela deve ter sentido quando a cabeça se
encontrou com o chão. Logo percebi algo escalando as janelas. Algo tão horrendo
que me fez querer fechar o vidro, puxar as cortinas e me esconder, mas não
consegui, não consegui porque meus olhos repousaram sobre a metade de um
coração pendurada no pescoço daquela criatura. Mal acreditei que quase não a
havia reconhecido… Estava diferente. Não, é uma trivialização tão grande dizer
que ela estava diferente. Ela não estava diferente, ela estava morta. Sua pele
cinzenta parecia colada por um triz, se um vento mais forte batesse levaria a
pele embora e deixaria somente carne e ossos; os dedos manchados com uma
mistura de sangue seco e terra se agarravam ao parapeito; os olhos estavam
amarelados; estava magra, muito magra, podia ver os contornos dos ossos na
pele. Era óbvio que estaria com aquela aparência, não havia outra aparência
possível para alguém que passou as últimas semanas dentro de um caixão, mas ela
não parecia maligna, não parecia querer me machucar. Ela era minha irmã e
precisava da minha ajuda. Talvez este tenha sido meu erro. Eu não deveria tê-la
convidado para entrar, mas convidei.
Levei-a
primeiro ao banheiro e deixei que ela tirasse toda aquela terra do corpo. Dei a
ela algumas das roupas que ainda estavam guardadas no quarto que dividíamos.
Ela não disse nada, apenas me sorriu. Eu sei que parece estranho e que eu
deveria ter mandado aquela criatura horrenda embora, mas eu não podia, não
quando via nela o rosto da minha irmã e pela primeira vez naquele mês tive uma
sensação de equilíbrio. De novo eu tinha aquela pessoa com quem contar quando
tudo estivesse terrível e confuso. E tudo estava terrível e confuso, eu
precisava dela e nunca tinha reparado no quanto até perdê-la, mas agora eu a
tinha de volta. Com uma aparência estranha, mas era minha irmã. O colar que
usava e com o qual havia sido enterrada era evidência suficiente para mim.
Reparei
em como ela estava magra e desci as escadas até a cozinha, tentando fazer o
mínimo de barulho. Não queria acordar nossos pais, eles não entenderiam se a
vissem ali. Eles nem sequer a reconheceriam, eu tinha certeza disso. E ela
precisava de alguma coisa para comer. Trouxe sobras do jantar, mas ela estava
tão fraca que não conseguia agradecer, apenas sorriu. Talvez fosse o momento
perfeito para mandá-la embora, enquanto ela não podia falar nada. Enquanto a
voz dela ainda não ecoava dentro da minha cabeça. Eu dei força a ela, tenho
consciência disso. Não porque trouxe o prato de comida, isto não fez diferença,
ela o devorou em uma bocada, mas continuou fraca, débil, nem uma mínima cor
retornou ao seu rosto, ela ainda tinha o olhar de alguém faminto.
Eu a
mantive embaixo da minha cama por dias, pedia para ela não sair. Não queria que
meus pais a vissem. Eles não podiam saber, não entenderiam. Ela tinha voltado
para mim, para restabelecer a direção que eu havia perdido na vida, não podia
deixá-la à mercê da aceitação alheia, eles a mandariam embora e eu precisava
dela comigo. Por isto decidi que a esconderia, muito bem escondida enquanto
conseguisse.
Eu a
alimentava todos os dias, e quando dizia aos meus pais que preferia jantar no
quarto, na verdade estava levando comida para ela. Eu não me alimentava direito
para alimentá-la, esperava que assim ela se fortalecesse, mas ela nunca se
fortaleceu, ela parecia continuar seu processo de putrefação cada dia mais
avançado. Eu precisava dela, mas sentia que ela me abandonaria a qualquer
momento e eu não queria de novo ter que viver sem ela, sem a minha irmã… Minha
querida irmã.
Foi
por acidente que descobri o que ela queria de verdade. Fazia um dia
extremamente quente, muito mais quente do que o normal mesmo para estas bandas.
Era a semana de provas finais e eu sentia minha cabeça rodar de tantas horas
passadas entre livros e cadernos, sem pausa para nada. Já estava vendo tudo
embaçado, minha mente parecia funcionar em outra frequência, mas eu precisava
continuar. Professor nenhum se importaria com o meu esforço, eles só se
importariam com a nota final. Eu não vinha comendo fazia dias por causa dela,
que continuava a não falar, a não se mexer, a definhar a cada dia, como se
quisesse me punir por algo que eu tinha feito para ela. Eu sentia que era culpa
minha, por algum motivo, era sempre culpa minha. Ainda sinto. Deveria estar
entrando em colapso já naquela época, era óbvio que eu estava, por que outro
motivo meu nariz sangraria daquele jeito? Eu achei que não fosse mais parar.
Era meu cérebro já dando sinais do quão desgastado estava. Eu estava sangrando
não só por dentro, já estava escorrendo para fora. Mas eu não podia parar.
Tentei me levantar para ir ao banheiro, mas minha vista escureceu, eu desmaiei
no quarto e, quando abri novamente os olhos, vi o rosto dela próximo ao meu.
Ela nunca saía de baixo da cama, mas naquele dia ela saiu.
Não
entendi o porquê de início e quis mandá-la voltar, mas meu cérebro já estava
corroído, abatido, exausto. Já não tinha mais forças para reagir. Mantive-me
parada quando ela encostou seu rosto no meu e senti sua língua passar por toda
a extensão onde o sangue havia escorrido. Naquele momento entendi perfeitamente
do que ela precisava. Entendi o que precisava fazer para manter minha irmã por
perto.
Com
a força extra que arranjei vinda de algum lugar em mim que eu não sabia que
existia, descobri alguém determinado, alguém com iniciativa, alguém forte. Era
isso o que importava para o mundo, não? Forte. Levantei-me do chão e fui ao
banheiro. Peguei uma das lâminas de barbear do meu pai. Eu prefiro não lembrar
dos detalhes, não preciso contar, eu sei que você sabe o que aconteceu. Foi
assim que nos conhecemos pela primeira vez, então vou contar a parte que você
não sabe: sobre o sangue torrencial que esguichava repousaram dois lábios e
estes lábios faziam movimentos de sucção leves, mas não eram o suficiente para
impedir que o sangue escorresse pela boca e caísse no piso branco e frio do
banheiro. Nunca contei para ninguém, mas a última coisa que vi naquele dia foi
a minha irmã com o rosto sujo de sangue. Não aquele ser decrépito que eu só
reconhecia como irmã por causa do colar, a minha irmã de verdade. Ela sorriu
para mim, senti seus dedos tirarem uma mecha dos meus cabelos do rosto e a
passarem para trás da orelha. Ela se aproximou e sussurrou, sua voz tão baixa,
tão suave, que se confundia com o som ambiente da estática vindo das lâmpadas:
—
Obrigada, Clara. Eu te amo, nunca mais vou te deixar.
Eu
sorri, ela me sorriu de volta enquanto limpava os resíduos da substância
vermelha que sobrara em seu rosto. Eu só acordei no hospital com alguém
colocando uma sonda de alimentação em meu nariz.
Sei
que muito do que se sucedeu foi culpa minha. Eu deveria ter sido sincera desde
o começo. Eu nunca tive um problema alimentar e eu não tentei me matar, esta
parte era verdade, eu não queria morrer, mas o que eu não disse é que eu queria
alimentá-la. Eu queria sentir que de alguma forma ainda poderia trazê-la de
volta e restabelecer o equilíbrio em minha vida. E eu a trouxe. O meu sangue a
trouxe de volta.
Quando
fui liberada e voltei para casa, parei de trazer-lhe comida, pois sabia que não
era disso que ela precisava, aprendi a esconder as marcas que ela deixava em
mim com as mangas longas, as calças compridas. Eu sei que deveria ter entendido
logo ali que nada do que ela me mandava fazer seria bom para mim, mas ela
sempre me sorria, aquele sorriso frágil e me dizia, com a voz mais dócil e
meiga que qualquer um poderia imaginar, todas as coisas ruins que eu já havia
feito, todas as pessoas que eu já havia magoado, ela inclusive, por tudo o que
já havia pensado sobre ela enquanto esteve ausente. Talvez eu não merecesse
coisas boas, talvez eu merecesse o que ela me causava, por todo o sofrimento
que eu já havia infligido aos outros, talvez fosse minha hora de sofrer. Eu
merecia. As marcas que eu fazia em meu corpo para alimentá-la doíam, mas não
tanto quanto a dor interna ou quanto esta voz que soava igual à da minha irmã
que me dizia o quão ruim eu era.
Talvez
tivesse sido fácil me livrar dela se ela só me dissesse estas coisas, mas não
era só isso. Depois de se alimentar do meu sangue, ela me ajudava a cuidar das
feridas e havia um conforto estranho na forma como elas ardiam, mas
cicatrizavam e o sangue estancava, o mesmo conforto que eu sentia ao vê-la
sorrindo e ela sempre me sorria ao cuidar das minhas feridas. Eu acreditava que
se era possível cicatrizar por fora, o mesmo seria possível internamente.
Talvez algum dia eu conseguisse alcançar uma camada profunda o suficiente para
acertar o ponto nevrálgico desta dor toda que eu sentia e a cicatrizaria para
sempre, mas enquanto isso eu precisava continuar alimentando-a… Vê-la tão
próxima de mim era meu único conforto e sabia que ela iria embora se eu
parasse. Eu não sabia mais o que eu era sem ela. Eu não sabia mais como lidar
com nada sem ela. Era ela quem me dizia quando dormir, quando comer, quando
alimentá-la. Ela, que era uma cópia exata de minha irmã. Ela ainda está aqui.
Vejo-a me olhar com aquele mesmo olhar de reprovação da minha irmã que eu
odiava ver.
—
Você quer mesmo saber quem você é sem mim? — ela me diz. — Você quer mesmo
tentar continuar sem mim? Você acha que consegue? Você é fraca! Você não é nada
sem mim! — é o que ouço-a repetir uma e outra vez e mais outra.
Eu
sei o que você acha. Que com força suficiente eu consigo ignorá-la, que eu devo
pensar em coisas boas, mas eu não consigo, não quando ela sussurra em meus
ouvidos, mas a voz ecoa alta em mim e se propaga, fazendo meu corpo inteiro
vibrar com a onda sonora demoníaca que me penetra os tímpanos. Não quando estas
palavras me impedem de ouvir qualquer outra coisa.
Eu
sei o que você acha agora. Você acha que estou louca. Eu também acho, toda vez
que olho para o espelho e não a vejo ali ao meu lado. Tudo o que vejo é o meu
corpo decrépito, quase tão decrépito quanto aquele que apareceu escalando minha
janela. Quase não há mais carne. Só há ossos e pele. Uma pele tão pálida, quase
transparente, talvez porque, além da fome, me falte sangue. Já sangrei demais.
Por dentro, por fora. As cicatrizes estão aí para mostrar… Ela me tornou uma
sombra do que eu era e me irrita lembrar que algum dia pude acreditar que esta
coisa era minha irmã. Minha irmã nunca faria isso comigo. Mas a dor era demais
naquela época. Ainda é demais. Qualquer coisa que se parecesse com ela servia,
qualquer coisa que fizesse a dor passar, qualquer coisa que trouxesse um mínimo
de conforto.
Por
que te conto tudo isso, doutor? O que eu quero de você? Eu não sei como
responder a esta pergunta, eu não sei o que quero. Eu sei o que não quero, o
que nunca quis: eu não quero morrer. Eu só quero que isto acabe: esta dor, esta
voz me atormentando, esta coisa que não é a minha irmã. Eu só quero que isto
passe. Eu só quero ficar bem. Espero que você tenha uma resposta, pois eu não
quero morrer, mas não sei mais o que fazer para ela ir embora, agora que já a
convidei para entrar.
Taisa
Isayama tem 26 anos, é Bacharela em Comunicação Social (Midialogia) e
Mestra em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas. Sua experiência
com escrita inclui roteiros de curta-metragens, ensaios em revistas
universitárias e artigos acadêmicos. Em 2016, decidiu parar com a vida
acadêmica e se aventurar na ficção literária.
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