REPOSICIONAMENTO DE MARCA
REPOSICIONAMENTO
DE MARCA
(Ricardo Sorrenti - 1º Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)
— É de tirar o apetite, não é? —
destaca o delegado Pires com sua caricata voz trovejante, apontando para o
hambúrguer já frio com uma meia-lua dentada em uma das bordas. Dagoberto
assente, desconfortável por estar na delegacia e com a cabeça pesada, parecendo
um turbulento passeio de elevador. O olho esquerdo, menor, pulsava de dor.
— Sei que passou por muita coisa e
já vou liberá-lo, mas qualquer informação nova seria de grande ajuda — continua
Pires, um olho na testemunha e o outro no nada apetitoso lanche murcho entre
eles. Cortesia enviada pelos funcionários de Dagoberto, preocupados com o
agravamento do já vacilante estado mental do patrão.
Dagoberto reflete, morde o lábio inferior
e parece se esforçar para tirar, da última gaveta de sua memória, a peça
perdida de um quebra-cabeça. Então, desiste. — Eu só sei o que já contei para
os seus homens, Pires. Eu fui atacado a troco de nada, e todos que estavam na
hamburgueria podem confirmar isso — diz, enfim. A voz era uma costura cansada
de palavras, com pouco espaço entre elas.
— Uma hamburgueria vegetariana que
passou a servir carne — recomeça o delegado. Ele baixa os olhos para o lanche e
respira fundo. — O que não é o caso do seu lanche, aqui entre nós, meu caro.
Importa-se que eu dê uma provada?
Dagoberto desliza o prato para o
faminto delegado, que já tem os dedos desenhados em grossas pinças para fisgar
o lanche. Em três mordidas, antes mesmo de Dagoberto explicar que permanece
vegetariano, nada mais restava sobre o descartável. Nem migalhas, como um crime
perfeito. Após os cumprimentos a Dagoberto, o chef, prossegue com o
depoimento.
— Era de se esperar que, além de
novos clientes, você atrairia desafetos que nem mosca pairando sobre bosta de
cavalo, Dagoberto. Qual foi o motivo para isso tudo mesmo?
— Branding — responde
mecanicamente, quase como um político à frente das câmeras.
— Quê?
Dagoberto também não compreendia o
significado, mas tampouco precisam os papagaios enquanto praticam seus parcos
vocabulários. — Reposicionamento de marca — corrige-se, e deixa o único olho
aberto devanear pela sala, enquanto o oficial da lei passa a língua pelos
dentes, fingindo analisar alguns dos muitos papéis sobre sua mesa.
Detém-se em um mural penso, em uma das
paredes, com notificações ilegíveis à distância e uma série de fotografias com
olhares tão perdidos quanto os de seus respectivos donos. Cidade pequena, com
uma inusitada incidência de desaparecimentos e cada um deles conhecido por
Dagoberto. Uma fileira de familiaridades estampada no mural, como Denilson,
amigo de escola que disfarçava com o mesmo boné, desde aquela época, a calvície
precipitada. Ou Clara, a entusiasmada atendente da farmácia próxima à sua casa,
que sempre deixava uma marca bem delineada de beijo na bochecha de seu
filho. “Roxo púrpura”, dizia o menino sobre o tom de batom, quando
voltava com os fármacos em suas mãos. Dagoberto estremece com a enjoativa
agitação que sente ao analisar a ala de desvanecidos, cujos destinos poderiam
se tornar tão esquecíveis quanto suas fotografias em um futuro próximo.
— De qualquer forma, são
hambúrgueres fenomenais. Até mesmo o vegetariano — confessa e, após mais uma
folheada nos papéis, dá por encerrado o infrutífero inquérito. — É melhor você
descansar — aconselha o policial ao notar a palidez de Dagoberto acentuar-se no
rosto, expondo o inchaço soturno que contornava seu olho ferido.
— E tente não pensar muito sobre
isso — acrescenta, apontando para o mural. O aviso queria soar natural, mas o
próprio Pires falhou em disfarçar o temor. Em uma cidade habituada a perder
seus habitantes pela média na expectativa de vida e as fatalidades banais que não
se destacam em estatísticas regionais, os numerosos desaparecimentos que
começaram há cerca de um mês deveriam ser motivo de preocupação. A delicada
mentira de Pires era quase cômica, dentro de sua esfera trágica. Igual a
acobertar uma mentira para os pais com outra mentira, quando eles já sabem de
toda a verdade.
— Pode deixar — permitiu-se
mentir, cambaleando em direção à porta. Quando já virava a maçaneta, Pires
assoviou baixinho, chamando a sua atenção:
— E o Felipe, está melhor? — as
sobrancelhas arqueadas, genuinamente preocupadas.
— Está, sim, obrigado — mentiu
novamente, e partiu sem falar nada, evitando olhares. Inclusive, com outro
mural povoado pelos silenciosos apelos dos recém-desaparecidos. Ainda no
estacionamento, antes de ligar o carro, alcançou o celular no bolso de sua
camisa e avistou a ansiada mensagem de um número ainda não gravado na memória:
Td certo pra hj?
Replicou, certificando-se de colocar
todas as letras em cada palavra, e deixou o aparelho de lado. Seguiu na direção
de sua casa, respeitando a sinalização como um desapressado cidadão qualquer, e
logo avistou Selma, uma das professoras de seu filho, assim que virou a esquina
que dava para seu lar. Estava sob a fachada do edifício, a luz do hall incandescendo
sua beleza. Isso fez Dagoberto especular, mesmo de longe, o tempo que ela
levara para se arrumar.
Noite gelada, sem lua visível ou ventos
uivantes. Apenas uma fina brisa que empurrava Dagoberto na direção do seu
encontro, prostrada onde estivera desde que o vira. Ela sorri e ele, de volta,
desenha sua melhor careta de alegria. Beijam-se com um delicado encontro de
lábios e só então ela avalia o olho preto de Dagoberto.
— Espero que ele tenha ficado pior
do que você — conforta-o com um tom baixo de voz, no mesmo volume materno que
deveria usar com seus alunos para repreendê-los com delicadeza.
— Não tive nem chance — respondeu,
afastando gentilmente a mão de Selma. Um novo beijo silencia o provável
interrogatório conjugal, enquanto abre a porta do prédio com sua chave. Abre
passagem para Selma, que se adianta, mas logo vira ao reparar que Dagoberto não
acompanha seus estalados passos pela escada.
— Aconteceu alguma coisa, Dago? —
sussurra, talvez pela escuridão que os rodeia e acompanharia até o terceiro e
último andar do edifício, onde Dagoberto e seu filho moram.
— Deixei o celular no carro. Pode
subir enquanto eu vou buscá-lo, encontro com você no apartamento — diz com a
mesma mansidão que o guiara até ali.
— E o Felipe? — pergunta,
vacilante no fino muro que divisa a expectativa de ser anunciada oficialmente
como a namorada de seu pai e a natural dúvida que nasce e se alimenta da
imprevisibilidade em imaginar a reação do seu pequeno e adorável aluno.
— Ele está ansioso para vê-la. Ele
me disse por mensagem. Está no meu celular, só não deixe o menino esperando —
tenta afastá-la, abanando as mãos no ar. Passa o calço na porta, com os pés, e
joga as chaves em um vagaroso pêndulo até Selma, perdida em sua confusão cega
na escuridão do corredor. Ela sorri e segue a escadaria até desaparecer,
deixando os ecos de seus saltos ecoarem fantasmagóricos as entranhas do
edifício.
O caminhar de Dagoberto é familiar e
despreocupado. O prédio não possui garagem e a rua é de uma serenidade mórbida
a qualquer hora do dia. Estaciona sempre no mesmo lugar, quando retorna da
hamburgueria, a alguns metros do seu lar. Prefere essa caminhada que circunda
uma das laterais do prédio. Especialmente, no último mês, o que lhe rende
valiosos, ainda que escassos, segundos de preparação. É o que faz enquanto
conta os passos até o seu carro, pondera os necessários para o percurso de
volta e calcula a quantidade de degraus que separam Selma do seu apartamento.
Para ele, 560 passos. Para Selma, 80.
Cem, no máximo. Tem cautela em sua contagem até chegar ao carro, destrancá-lo,
apanhar o celular, fechá-lo, regressar pelo calçamento evitando as ervas
eclodindo entre as rachaduras urbanas, chutar o calço da porta, subir os três
lances de escadas, passando pelos lares que deixam vazar as emoções e rotinas
de seus residentes até se deparar com a sua, semiaberta, sem luzes vazando
pelas frestas.
Enquanto avança pela galeria de portas
ao seu redor, Dagoberto mantém o olhar fixo no vazio que é a sua sala quando
mergulhada no breu da noite. Empurra a porta, mortificado pelo silêncio do
outro lado, e encontra Selma esparramada sobre o tapete como uma boneca de
pano. As pernas retorcidas, o olhar eternizado de surpresa, a vida que lhe
escapuliu por dois pequeninos orifícios em seu pescoço. Uma cena corriqueira
para Dagoberto, no último mês.
As janelas e cortinas fechadas abafavam
o apartamento, evidenciando um cheiro intensamente familiar de morte, mas longe
de ser habitual. Era seco, claustrofóbico, como se puxasse o ar a milhares de
metros acima do nível do mar, e só inspirasse aromas envelhecidos ao invés de
oxigênio. À esquerda, a cozinha era um portal de opacidade e, do outro lado,
duas portas indicavam o paradeiro de Felipe. A que guiava para o seu quarto se
mantinha fechada. A do seu filho, entreaberta. Esticou o pescoço pela fresta e
encontrou-o dentro do guarda-roupa, onde passava a maior parte do dia.
Gavetas e roupas permaneciam jogadas ao
chão, estraçalhadas e pisadas. Do escuro do quarto, Dagoberto conseguia apenas
distinguir o olhar escarlate do filho, uma pigmentação recente, anormal. As
duas esferas rubras o encaravam de volta, apertadas em um profundo brilho
instintivo de sobrevivência. Dagoberto aprendera, passados pouco mais de 30
dias dessa fatal transformação, que o filho alimentado não representava perigo
a ele, mas o contrário, como se o seu menino fosse um cão raivoso e, ele, o sentenciador
do seu destino.
Aproximou-se e viu Felipe, que até
pouco tempo atrás chorava pelas naturais pétalas caídas de uma flor em
decorrência da mudança de estação, reagir em defensiva postura, contra a parede
do guarda-roupa. Um chiado selvagem saía de seus lábios espaçados e, ao chegar
até a metade do quarto, com as coloridas roupas do garoto marcadas por poças de
sangue ressequidas e pegadas deixadas pelos seus sapatos, encarou-o em sua
forma mais visceral. Olhos saltados e as presas à mostra. A palidez sepulcral
contagiava todo o seu corpo franzino, com a mordida que sofrera de um morcego
estampada, em uma grossa cicatriz, na região da omoplata.
Desistiu de alcançar a humanidade
restante em seu filho e voltou para a sala, com os passos pesados, como se
pressentissem a próxima etapa. Dagoberto encarou o corpo sem vida de Selma com
o mesmo pavor esgotado que confrontara as outras vítimas. Para muitos, a morte
só ocorria uma vez, enquanto Dagoberto se via em um ciclo interminável de
enfrentamentos contra a mortalidade que torna as pessoas tão humanas e
expiráveis. Sentia-se um imortal diante de tanto definhamento ao seu redor.
Começou pela retirada dos pertences
pessoais de Selma. Um par de brincos, um colar com brilhantes, o relógio de
pulso e a bolsa inteira. Sapatos e roupas foram arremessados para um canto
qualquer, fazendo volume a um monte ensanguentado de peças alheias, que não
serviam a Dagoberto ao seu filho. Abriu a gaveta da cômoda da sala e despejou
os objetos com a mesma habilidade de um maestro com a sua orquestra. O colar
pousou sem cerimônias entre um boné e um batom roxo púrpura, como
se lia nitidamente em sua embalagem. Pegou-a pelos pulsos, o corpo um pouco
mais pesado do que era em vida, e levou-a à cozinha.
Felipe não dava qualquer sinal de sua
presença na casa, que parecia ter uma gravidade mais densa, ali, do que no
resto do mundo. As lâmpadas da cozinha eram a única fonte de luz do
apartamento, mergulhado na condenação de seus ocupantes. Suspirou alto uma,
duas e tantas outras vezes que julgou necessário até puxar do faqueiro o
utensílio mais afiado dali.
Embora o garoto tenha sugado todo o
sangue de Selma, a evisceração mostrava o quanto ainda restava, no corpo da
finada professora, do líquido ordinariamente vermelho. Dagoberto parecia ter
emergido de uma veia pulsante, dos pés à cabeça pingado pela essência que flui
a vida. Ao ligar o moedor de carne, não conteve as lágrimas, que pingaram
tingidas sobre o ruidoso aparelho.
Passadas algumas horas, quando o hálito
da noite já se confunde com o frescor matinal, Dagoberto analisa qualquer
vestígio na cozinha meticulosamente limpa. Um cheiro presente de alvejante toma
o ar. No refrigerador, centenas de hambúrgueres roubam qualquer espaço que
pudesse conter alimentos ou bebidas para Dagoberto. O blend é
fundamental em um hambúrguer, ele pensou, à medida que a luz no interior do
refrigerador se apaga.
De volta ao quarto, Felipe permanecia
inerte, monstruosamente repousado sobre os espólios carnais do seu banquete.
Dagoberto, como qualquer outro, julgava-se no limite de sua sanidade. Seguiu
até o banheiro e acendeu a luz, apenas para dar de encontro com o próprio
reflexo, que o encarava de volta no espelho. Atrás dele, um quarto revirado
compunha o cenário, com um guarda-roupa vazio onde antes havia o seu adormecido
filho cumprindo os rigores de uma digestão vampiresca.
Dagoberto olha para trás, alarmado, e
encontra o filho na mesma posição, inerte como Selma ficara por todo o tempo em
que ele separara a carne da pele e conservara os tendões e ossos em reforçadas
sacolas de lixo. Com o único olho aberto que tinha, voltou suas atenções para o
espelho, sob a vigília do fino fio de água escorrendo em uma coloração purpúrea
pelo ralo. No reflexo, novamente não se via sinal do filho selvagem por quem ele
ainda zelava com todo o seu amor paterno.
Encarava apenas a si mesmo através do
espelho. O sangue seco em seu rosto assumia um aspecto terroso, quebradiço. Uma
evidência da monstruosidade que o doce Felipe encarnara e sugara Dagoberto como
um tornado irrefreável. Ele sabia que o apartamento não tardaria para ser
rotulado como uma duradoura cena do crime. Pegou-se perguntando para o próprio
reflexo o que poderia fazer senão alimentar o monstro diante de si, e aquele
que não refletia em nenhuma superfície espelhada? Adormeceu com todas as
perguntas e amanheceu com elas ainda pulsando em seu semblante derrotado.
Ricardo Sorrenti nasceu em São Paulo,
capital, e desde cedo já tinha a literatura como companhia e fonte de
aprendizado. Não tardou para que o interesse evoluísse em histórias próprias —
sendo a maior parte delas inspiradas em fragmentos do cotidiano. A formação em
jornalismo contribuiu para desenvolver versatilidade na escrita, ora objetiva e
factual, ora prolongada e emocional. Trabalha com a produção de conteúdos e
vive um momento transitório para se dedicar, cada vez mais e exclusivamente, à
literatura. Não passa um dia sequer sem assistir a um filme ou série, e folhear
um livro, mas segue guiado também pelos instantes do dia a dia — fonte
primordial para a realização do seu primeiro livro, ainda sem título e data
para finalizá-lo.
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