VAMPIRO DE CARREIRA - Conto de Terror - Humor - Gabriel Agustinho Piazentin
VAMPIRO
DE CARREIRA
(Gabriel Agustinho Piazentin - 19º Lugar no Concurso
Bram Stoker de Contos de Terror)
— Deixa eu ver se entendi
direito.
O coaching da
assistência social repousa os óculos na escrivaninha à frente de si e olha a
figura pálida prostrada na cadeira do outro lado dela.
— Você é um vampiro?
— Isso.
— E você veio procurar
emprego?
— Senhor, com todo respeito,
vampiro também tem conta pra pagar.
Marcos estava há anos
naquela vida de receber currículos e encaminhar futuros empregados aos mais
diversos lugares, com backgrounds de vidas um mais impressionante que o
outro. Dessa vez, a surpresa se superou.
— Eu fico impressionado por
muitas razões.
— Consigo imaginar —responde
Donnas.
Por um momento os dois
se olharam e o ar pesou na sala. Passou uma centelha de medo na cabeça de
Marcos. Se ali estava uma figura tão assustadora como diz ser, ele poderia ser
uma vítima. E se ele não conseguisse o emprego? Seria atacado e viveria uma
vida vampira?
Tentou ordenar a ordem
dos fatos na cabeça. Não é possível, deve ser algum tipo de piada. O que antes
era medo agora foi tomando pinceladas de irritação.
— Eu quero que você me diga
uma coisa.
— Quantas você quiser.
— Obrigado pela disposição, eu
vou muito me utilizar dela. Mas veja —pontuou o coaching —que horas são
agora?
O vampiro Donnas sabia
onde aquilo iria chegar e abriu um sorriso de leve. As presas se mostraram, e
Marcos sentiu um gelo na espinha como se estivesse em queda livre pelas costas.
— São 15:27h —e tentou conter
o riso.
— Exatamente — o coaching
se ajeitou na cadeira depois que o medo deu uma trégua. — Como você chegou até
aqui num sol desses?
Donnas acertara na
previsão sobre a motivação da pergunta.
— Senhor, eu confesso que não
é fácil. Mas depois de alguns séculos de vida a gente toma um jeito. Tipo usar
esse sobretudo, apesar do calor, óculos de sol e muito protetor solar.
— Você disse séculos de vida?
—e tornou a olhar a ficha do currículo. No papel, dizia ter 25 anos.
— Eu estou sendo sincero com
você agora nessa conversa. Não poderia colocar ali “nascido em 1458”.
— Você nasceu em 1458?
— Eu nasci como vampiro nessa
época.
Um artefato vivo —bom,
mais ou menos —com uma bagagem histórica incrível fitava o coaching, que
não sabia se se sentia confuso, com medo ou irritado. A fluência de sentimentos
só piorava a cabeça de Marcos. O destino empregatício era a última coisa em que
pensava no momento.
— Eu nunca vi um vampiro antes
— deixou escapar entre os dentes, já arrependido antes mesmo de a frase
terminar.
— Você deve ter visto, apenas
não reconheceu.
Bom, a gente nunca sabe
mesmo quem é a pessoa por detrás das carcaças com quem se encontra na rua, né?
— Olha só — e tentou ser o
mais profissional possível —, imagina eu dizer ao empregador: então, esse cara
é um vampiro. Você acha que ele aceitaria tranquilamente? Eu tenho minhas
dúvidas.
— Entendo. É bem complicado.
Por isso mesmo eu vim buscar a sua ajuda.
Marcos tinha um dilema
ético. Não poderia mentir ao empregador. Mas também, ele parecia ter
qualificações dado o quanto já viveu. O que haveria de ser feito? Não dá para
desconsiderar esses dentes também. Talvez algo que não envolvesse lidar
diretamente com pessoas. Omitir não é mentir, né?
— Como você se manteve esse
tempo todo?
— É uma pergunta de resposta
muito longa —e Donnas se aprumou na cadeira. —Eu tenho meus jeitos. Já fiz de
quase tudo.
Marcos respirou fundo
porque não sabia o quanto poderia passar por este tópico, mas mesmo assim
arriscou.
— Você já matou? — e o coaching
olhava sério. Vampiro tem ficha criminal?
Donnas demorou mais do
que deveria para responder.
— Matei.
Só a respiração era
audível durante os enormes segundos após a resposta.
— E até por isso eu vim te
consultar —continuou. —Procuro algo dentro da legalidade, para voar debaixo do
radar.
— Obrigado pela sinceridade
—completou Marcos ao final do tempo dado. —Ainda assim, você teria que
continuar matando para sobreviver, não?
— Hm... —Donnas refletiu por
outro instante — existem crimes e crimes, não é?
Sem querer abriu um
sorriso malicioso que tentou esconder sem sucesso.
— Essa não foi a melhor das
repostas que você me deu hoje. Mas uma coisa ainda me incomoda. Digo, muitas
coisas, mas uma delas em específico. A sua data de nascimento como vampiro é de
antes da colonização do Brasil. E... aí...? — nem conseguia formular direito a
pergunta uma hora daquelas.
— O meu corpo físico não
nasceu no Brasil, é verdade. Eu sou da Itália.
— Por que razão um vampiro vem
a um país tropical?
— Na época das navegações aqui
parecia ser um bom celeiro. Sabe como é, lugar novo, ainda meio sem lei. Vale
tudo.
— Você veio de navio, então?
— Sim, cheguei em 20 de julho
de... —tentava recordar o ano —de 1517. — Deixei para trás o castelo da minha
família, com a fortuna acumulada por gerações. Eu fugi antes que me pegassem.
Foi um caso de necessidade.
— E você não quis mais sair
daqui? Ir pra um lugar menos ensolarado, onde tem emprego?
— A bem da verdade, eu já fui
—o vampiro respondia tudo com uma naturalidade que nem deixava transparecer os
séculos de vida, nem a respeito das pessoas que conheceu, que amou, que usou e
que matou. — Apesar de tudo, o Brasil é fascinante.
— Por quê? — aquilo há muito
deixou de ser uma entrevista de emprego, e o coaching estava
impressionado por Donnas. Queria saber de tudo. As motivações, os lugares em
que esteve, quando esteve, quais momentos históricos presenciou, quantas
pessoas viu morrer.
— Aqui eu sinto que tenho mais
liberdade, apesar do sol. A noite tropical me agrada.
Marcos não sabia ao
certo se entendera o que aquilo quis dizer. Considerou, inclusive, que desviara
demais da proposta inicial e se colocou de volta aos trilhos.
— Eu acho que já ouvi o
bastante. Mas ainda falta um ponto importante: quais são as suas competências?
Você estudou em alguma faculdade ao longo de todo esse tempo ou...?
— Sim e não — reponde Donnas.
— Eu nem sei se adianta
perguntar o motivo.
— Estudei, mas minha graduação
de nada vale. Sou da primeira turma de Direito da USP. Quer dizer, imagina
mostrar um diploma do século XIX, seria muito estranho — e o vampiro bacharel
deu de ombros. — Nesse meio tempo acompanhei de perto a evolução do sistema
judiciário brasileiro e, bom, tive tempo suficiente para decorar o vade
mecum.
— Ainda assim —Marcos brincava
com os óculos entre os dedos —é uma boa sinalização. Apesar de estranharem o
fato que você não envelhece. O que você me diz de trabalhar na política?
Dessa vez o vampiro que
se contorceu com o gelo da espinha.
— Não é nem tanto pelas
pessoas. Mas vira e mexe tem uns crucifixos pelas paredes que me doem.
— Ok, direito, sem
crucifixos...
— Nem espelhos.
— Nem espelhos — esquecera-se
Marcos. — Você prefere trabalhar de dia ou de noite?
— Olha, pra mim tanto faz. Mas
de noite é menos desgastante, sim.
— Quer saber? — Marcos teve um
clique na cabeça. —Eu acho que tenho um bom lugar para você. Na verdade, eu te
sugiro atuar em duas frentes. Primeiro, quando você tiver algum dinheiro,
invista a longo prazo. Tempo não é problema para você. Não entendo como até
hoje você nunca pensou nisso.
— Na verdade, eu pensei. Mas
tenho algumas questões com bancos. Tem algo neles que me incomoda desde os
tempos imperiais. Os gerentes sempre empurram mais do que você precisa e as
linhas miúdas dos contratos te sugam até a alma. É verdade que hoje dá para
fazer movimentações pela internet. Mas a ficha de cadastro com data de
nascimento é sempre um problema.
Donnas não podia culpar
Marcos por pensar como um humano mortal.
— Bom, verdade. É difícil ter
um Cadastro de Pessoa Física... neste... estado — tentou ser respeitoso com
Donnas. — De qualquer forma, eu tenho um amigo na polícia. Essa é a outra
opção. Eu imagino que vocês se deem bem investigando juntos. E eu tenho certeza
que ele consegue guardar segredo de você ser um vampiro.
— Tudo bem se as minhas
condições forem mantidas? Sabe, de noite, sem cruz, nem espelho. Nem alho.
— É bem possível. Vocês
atuarão de forma complementar. Até pelo seu histórico cultural e jurídico,
creio que vocês têm muito o que colaborar um com o outro —concluiu Marcos.
— Mas para entrar na polícia
eu não devo prestar concurso público?
— Bom, você pode, se quiser.
Mas também, se quiser vir comigo, é um caminho mais rápido e seguro.
— E depois você ainda pergunta
por que eu preferi ficar aqui.
Gabriel Agustinho Piazentin é
Linguista-Jornalista, ou o contrário. Está em uma relação complicada com a
linguagem. Acredita que um texto nunca está editado o suficiente. Publicado
três vezes na Revista
LiteraLivre, participou da antologia da Revista Litere-se, da Revista Literalmente Intrigante e
do site Enchendo Estantes. Recebeu menção honrosa no 13° Concurso de
Contos da Universidade Metodista de Piracicaba em 2017.
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