CATALEPSIA - Narrativa Verídica - Narrativa de Horror - Anônimo do século XIX
CATALEPSIA
Anônimo
do séc. XIX
Poucas
doenças apresentam sintomas tão extraordinários como a catalepsia. Tem por
causa ordinária o excesso de trabalhos intelectuais, o abuso de licores
fermentados, ou qualquer alteração ou desarranjo na economia animal e,
particularmente, nos órgãos do cérebro.
A
catalepsia é uma doença letárgica, uma imobilidade absoluta unida à grande
rigidez dos membros, que conservam a posição que tinham no momento do acesso,
ou naquela em que alguém os coloca. O pulso torna-se mais fraco, sem deixar de
bater; a respiração é quase insensível; o queixo fica num estado convulso, a
pele esfria e os olhos conservam-se abertos, mas com imobilidade completa da
pupila, e sem que a luz a faça contrair, prova de que o doente nada vê.
Embora
o paciente ouça e não perca o olfato, nem os perfumes mais enérgicos podem pôr
termo ao acesso. A pele perde toda a sua sensibilidade, e os ataques desta
doença, que apresenta todos os sintomas de morte, duram muitas vezes doze
horas. Termina quase sempre por suspiros, bocejos e por uma espécie de delírio.
Os seus ataques são súbitos e imprevistos. É à catalepsia que cumpre atribuir os
enterros muito numerosos de pessoas ainda vivas. Eis os pormenores de um
enterro destes, narrados por um inglês
que quase foi vítima dessa terrível enfermidade, e que escapou por um acaso dos
mais felizes:
“Sofri
por algum tempo um ataque nervoso, as minhas forças diminuíam gradualmente, mas
o sentimento da vida parecia tornar-se cada vez mais ativo, à medida que as
minhas faculdades corporais diminuíam. Conheci pelos gestos do médico que havia
perdido a esperança de salvar-me, e a dor muda, mas expressiva, dos meus
amigos, dizia-me que todos os esforços da arte eram inúteis.
“Uma
noite veio a crise. Fui atacado de um tremor geral, e de um zunido que me
atordoava. Vi em volta de minha cama grande número de figuras extravagantes.
Eram brilhantes, vaporosas e sem corpo. O quarto estava iluminado e apresentava
um aparato solene. Procurei mover-me, mas não o pude conseguir. Uma confusão
terrível me perturbou então os sentidos. Mas quando, passados alguns instantes,
tornei em mim, recordei-me de tudo o que havia passado, possuía toda a minha
inteligência. Em uma palavra, gozava de tudo o que pertence à vida, menos a
faculdade de agir e de falar. Ouvi alguns gemidos e a voz do enfermeiro
pronunciar: “Está morto!” Impossível me é descrever o que senti ao ouvir estas
lúgubres palavras. Quis tentar um último esforço para mover-me, mas nem pude
mexer a pálpebra. Após um curto intervalo, aproximou-se um amigo ao meu leito,
agitado pela dor, e com o rosto banhado em lágrimas. Pôs-me a mão na cara e
fechou-me os olhos. Fiquei, então, nas trevas. Mas podia ainda ouvir, sentir e
sofrer.
“Depois
que me cerraram os olhos, conheci, pelos discursos das pessoas que ficaram no
quarto, que o meu amigo me tinha deixado e, pouco depois, senti os agentes
funerários amortalharem-me. A sua frígida indiferença era-me mais penosa do que
a dor dos meus amigos. Viravam-me de todos os lados, riam-se e tratavam com a
maior brutalidade aquilo que chamavam cadáver.
“Quando
esses miseráveis acabaram, retiraram-se, e então começou a formalidade das
honras funérias. Por espaço de três dias, foi grande o número de amigos que
veio ver-me. Eu os ouvia falar em voz baixa das minhas boas qualidades, dos
meus defeitos, e sentia os dedos de muitos deles apalpando-me o rosto. No
terceiro dia, falavam do mau cheiro que havia no quarto.
“Veio
o caixão, meteram-me dentro, e senti as lágrimas do meu amigo caírem sobre o
meu rosto.
“Passados
alguns minutos, conheci que se retiravam todos os meus amigos e conhecidos, e
que entravam os carpinteiros para fechar o caixão. Eram dois: um saiu antes de
acabada a obra. O outro eu ouvia assobiar ao furar com a verruma, parar,
calar-se, e, por fim, meter o ultimo prego.
“Fiquei
só. Todos fugiam do meu quarto. Sabia, porém, que ainda não estava enterrado.
Suposto estivesse imóvel e nas trevas, tinha ainda alguma esperança. Mas ela se
desvaneceu bem depressa. Chegou o dia do enterro. Senti levantarem e levarem o
caixão. Percebi que o colocavam no coche, e que era muita a gente que o
rodeava: algumas pessoas falavam de mim com afeição. O carro principiou a
andar. Sabia que me levavam para o cemitério. Parou o coche e tiraram o caixão:
pela desigualdade dos movimentos, notei que era levado sobre os ombros de
algumas pessoas. Houve uma pausa. Ouvi o atrito das cordas, moveu-se o caixão,
e senti pouco depois que balançava. Foi descendo e parou no fundo da cova. Ouvi
cair as cordas sobre o ataúde. Fiz um esforço terrível para mover-me, mas todos
os meus membros ficaram imóveis.
Logo
depois, lançaram alguns punhados de terra sobre o caixão, e houve uma segunda
pausa. Passaram-se alguns minutos, e ouvi o som da pá. A terra caía sobre mim,
e o ruído da sua queda, mais terrível que o estrondo do trovão, enchia-me de
horror. O ruído diminuiu gradualmente, e, pela surdez do som, reconheci que a
cova estava cheia. Terminada esta operação, ficou tudo no mais profundo
silêncio.
Não
tinha meio algum de conhecer o tempo que passava assim; o silêncio continuava.
Eis, pois a morte, dizia eu, e ficarei debaixo da terra até o dia da
ressurreição. O meu corpo vai corromper-se, os vermes virão fartar-se nos meus
membros. Enquanto me ocupava com estas horríveis reflexões, ouvi sobre a terra,
por cima da cabeça, um som surdo e prolongado; julguei que eram os bichos e os
répteis da morte que vinham reclamar a sua presa.
“O
ruído aproximava-se e aumentava. Seria possível que os meus amigos se
lembrassem que me tinham enterrado antes de tempo? Fiquei cheio de esperança.
“Cessou
o ruído, e senti uma mão apalpar-me o rosto. Tiraram-me do caixão pela cabeça.
Senti o ar. Fazia um frio glacial. Levavam-me furtivamente talvez para o
tribunal terrível! Talvez para as chamas eternas!
“Passados
alguns minutos, atiraram comigo como se fosse algum fardo, mas não no chão. Um
momento depois, reconheci que estava em uma carruagem e, por algumas frases
soltas, soube que estava em poder desses ladrões noturnos, chamados homens da
ressurreição, que profanam os túmulos para fazerem um trafico sacrílego com os
cadáveres que desenterram. Logo que a carruagem principiou a rodar, começou um
desses homens a assobiar e o outro a cantar algumas cantigas obscenas.
“Parou
a carruagem, pegaram-me, levaram-me, e percebi, pela densidade do ar e mudança
da temperatura, que estava em um quarto. Arrancaram com violência a mortalha em
que estava envolto, e puseram-me cima de uma mesa. Pela conversa que ouvi
desses dois homens e de outro que ali se achava, soube que devia ser dissecado
essa mesma noite.
"Os
meus olhos estavam ainda cerrados. Nada via, mas concluí, logo depois, pelo
tropel que ouvi, que haviam chegado os estudantes de anatomia. Alguns deles
aproximaram-se da mesa e examinaram-me minuciosamente. Por fim, chegou o lente.
“Antes
de começar a dissecção, propôs que se fizessem no meu cadáver algumas
experiências galvânicas, e preparou-se um aparelho para esse fim. O primeiro
choque abalou todos os meus nervos, que ressoaram e vibraram como as cordas de
uma harpa. À vista deste fenômeno, testemunharam os estudantes a sua admiração.
O segundo choque fez-me abrir os olhos, e a primeira pessoa que vi foi o médico
que me tinha assistido na minha enfermidade. Estava eu, porém, como um morto,
ainda que pudesse distinguir entre os estudantes algumas caras que me não eram
desconhecidas. Logo que os meus olhos se abriram, ouvi pronunciar o meu nome
por muitos dos circunstantes em tom de compaixão, e ouvi dizer a muitos que
teriam desejado que as suas experiências não fossem feitas sobre o meu cadáver.
“Logo
que terminaram as suas experiências galvânicas, o mestre tomou o bisturi e fez-me uma incisão grande no
peito; senti uma sensação terrível em todo o corpo; um tremor convulso se
apoderou de mim, e todo o auditório começou a dar gritos horrorosos. Os laços
da morte estavam quebrados; a letargia tinha cessado. Prestaram-me todos os
socorros, e, passada uma hora, recuperei todas as minhas faculdades.”
Fonte:
Museo
Universal, 1838. Fizeram-se breves adaptações textuais.
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