DE PROFUNDIS - Conto de Terror - Mauren Guedes Müller
DE PROFUNDIS
Mauren
Guedes Müller
A
primeira sensação de Ernesto foi agradável. Sentiu que estava deitado sobre
alguma coisa macia e sedosa, como cetim. No instante seguinte, porém, um cheiro
horrível atingiu-lhe as narinas. Abriu os olhos e percebeu que estava em meio à
mais profunda escuridão. Tentou erguer as mãos, que repousavam sobre seu peito,
e descobriu que, alguns centímetros acima de seu corpo, havia uma prancha de
madeira, também acolchoada com cetim, que o enclausurava. Mal conseguia mover
as pernas. Deslizou os dedos para os lados, tocando em mais cetim, e descobriu
que havia uma substância gordurosa que impregnava o tecido. E começou a
sentir-se sufocado, como se o ar do ambiente restrito em que se encontrava se
estivesse consumindo por sua respiração angustiada, sem que alguma lufada de
vento viesse renová-lo.
Lembrou-se,
então, da forte tontura que o fizera perder os sentidos. Então, já em pânico,
adivinhou o que acontecera depois. Havia sido dado como morto e enterrado na
gaveta do cemitério vertical que, já há algum tempo, comprara, para que fosse
seu túmulo. Aterrorizado, tentou levantar a tampa do caixão. Teve a sensação de
movê-la um milímetro, e o cheiro de carne podre tornou-se ainda mais intenso,
porém sentiu que as alças fechadas do ataúde o impediriam de abri-lo.
Desesperado, começou a bater na tampa com todas as suas forças, enquanto
gritava:
—
Socorro! Socorro, por favor! Alguém me ajude!
De
repente, ouviu uma voz de homem:
—
Tem alguém aí dentro?
—Tem,
sim! — gritou. — Socorro, por favor! Eu estou vivo! Fui enterrado vivo!...
—
Calma —respondeu a voz. —Por favor, fique quieto e poupe seu ar. Vou chamar
alguém para tirá-lo daí.
—Tire-me
você daqui, por favor! O cimento ainda deve estar fresco!
—Não
posso.
—Por
que não pode?
—Porque
sou aleijado. Mas fique calmo que vou procurar ajuda. Não grite e tente
respirar devagar.
Ernesto
sentiu o suor que lhe cobria o rosto e encharcava o cetim da cobertura interna
do caixão. Procurou controlar os nervos. Pelo menos, alguém o tinha ouvido, o
que já era uma grande coisa. Todavia, o homem que fora buscar ajuda começou a
demorar. O ar imundo estava cada vez mais pesado, e ele começou a amaldiçoar o
momento em que comprara um túmulo tão barato. Por outro lado, se estivesse
enterrado no chão, provavelmente seus gritos não teriam sido ouvidos, ou, quando
a ajuda chegasse, já seria tarde...
Então,
começaram a vir-lhe à mente, como que num filme, todas as cenas de sua vida.
Primeiro, os momentos agradáveis. Depois, seus erros, suas falhas de caráter,
seus pecados de juventude. À medida que o socorro demorava, sentia-se cada vez
mais angustiado. Não tinha um bom relacionamento com a esposa e com os filhos,
o que provavelmente fora decisivo para resolverem enterrá-lo o mais rápido
possível. Mas, caramba, e a precipitação do médico? Com certeza iria processá-lo
assim que se visse fora daquele túmulo horrível. Já se antevia tirando-lhe um
bom dinheiro. Mas a demora do socorro começou a deixá-lo ainda mais aflito. De
repente, num ímpeto, gritou de novo:
—Socorro!
Tem alguém aí?...
—
Calma —respondeu a mesma voz de antes. —Eu estou aqui. Não grite.
—Mas
e você não foi buscar ajuda, homem? — desesperou-se
Ernesto.
—Não
consegui encontrar o coveiro, mas encontrei um menino e pedi que ele o
procurasse.
—Caramba,
eu estou sufocando aqui dentro! Vá procurar o coveiro você também!
—Está
bem —respondeu ele. —Mas é mais provável que o garoto o encontre, porque eu me
locomovo muito, muito devagar.
Ernesto
respirou profundamente. O ar estava extremamente pesado e nauseabundo. Súbito,
ele se deu conta de que a substância oleosa que escorrera para dentro de seu
caixão devia ser a gordura do cadáver que estava na gaveta acima da sua, e
sentiu uma náusea violenta. Virou o rosto para o lado, tentando desesperadamente
não se afogar no vômito que empapou o cetim e grudou-se, quente, em seu rosto e
em seus cabelos. Tossiu um pouco e lembrou-se de que deveria manter a calma,
não gritar, não respirar muito. Manter a calma. Aquelas palavras martelavam em
sua mente. Manter a calma... Não entrar em pânico...
Então,
lembrou-se daquele episódio em sua juventude, no qual não conseguira manter a
calma e o pânico o fizera simplesmente fugir.
Vinha
dirigindo, num carro esporte, meio bêbado. Dera uma tragada no cigarro e levara
aos lábios a garrafa de uísque. Então, sentira o impacto. Perdera o controle do
veículo, até que conseguira frear, assustado. Num primeiro momento, tentara
acreditar que havia atropelado um cão. Mas se atrevera a olhar pelo espelho
retrovisor e percebera, horrorizado, que um corpo humano jazia no meio do
asfalto. Então, tomara mais um gole de uísque, atirara a garrafa vazia pela
janela e fugira, sem socorrer a vítima...
Nunca
soubera o que acontecera ao homem que havia atropelado. Sempre tentara se convencer
de que não tinha chegado a morrer. Mas, pela quantidade de sangue que vira no
retrovisor, e pela forma como percebera que os membros do infeliz haviam ficado
retorcidos, sabia que ele deveria ter ficado no mínimo aleijado...
Subitamente,
a voz do homem diante do túmulo interrompeu seus pensamentos:
—Você
ainda está vivo?
—Sim!
—gritou Ernesto, já quase sem ar. —Você já trouxe ajuda?
Seguiu-se
um breve silêncio, que a Ernesto pareceu uma eternidade.
—Agora,
você pode gritar o quanto quiser —disse o homem.
—O
quê?
—Agora,
você pode gritar à vontade. Já consegui mantê-lo quieto por todo o tempo de que
precisava. Agora, já anoiteceu, o cemitério já fechou e o coveiro já foi
embora. Todas as pessoas que poderiam ouvi-lo e ajudá-lo já se foram, Seu
Ernesto...
De
repente, Ernesto compreendeu o que estava acontecendo.
Então,
enquanto o homem aleijado se afastava lentamente, apoiando-se na única perna
que lhe restava e nas muletas que fixava sob os tocos do que já tinham sido
seus braços, Ernesto gritou, com todas as forças, até que o ar e a voz
definitivamente lhe faltaram...
Nota:
esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, ideias
ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera
coincidência.
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