A MORTE ALADA - Conto Clássico de Terror - H. P. Lovecraft
A MORTE ALADA
H.
P. Lovecraft
Tradução
de Renato Suttana
O
Orange Hotel fica na High Street, próximo à estação ferroviária, em
Bloemfontein, na África do Sul. Num domingo, a 24 de janeiro de 1932, quatro
homens estremeciam de terror num dos quartos em seu terceiro piso. Um deles era
George C. Titteridge, proprietário do hotel; outro era o guarda de polícia Ian
De Witt, da Delegacia Central; o terceiro era Johannes Bogaert, o juiz
investigador local; o quarto, e aparentemente o menos perturbado do grupo, era
o doutor Cornelius Van Keulen, o médico legal.
Sobre
o piso, incomodamente evidente em meio ao intenso calor do verão, jazia o corpo
de um homem morto; mas não era disso que os quatro tinham medo. Seus olhares
vagavam da mesa, sobre a qual havia uma curiosa mixórdia de coisas, para o teto
logo acima, ao longo de cuja suave brancura uma série de caracteres grandes e
hesitantes tinham de algum modo sido garranchados a tinta; e vez ou outra o
doutor Van Keulen olhava furtivamente para um surrado livro encapado em couro,
para as palavras rabiscadas no teto e para uma mosca morta de aspecto peculiar
que flutuava numa garrafa de amônia sobre a mesa. Também sobre a mesa estavam
um tinteiro aberto, uma caneta e uma almofada para escrita, uma valise de
médico, uma garrafa de ácido clorídrico e um copo contendo um quarto de óxido
de manganês preto.
O
livro encapado em couro era o diário do morto e deixava claro que o nome
Frederick N. Mason, da Mining Properties, Toronto, Canadá, assinado no registro
do hotel, era falso. Havia outras coisas, coisas terríveis, que a partir dele
se tornavam claras também; e ainda outras que ele apenas sugeria de modo horrível,
sem as deixar claras ou sequer torná-las inteiramente críveis. Era a meia
suspeita dos quatro homens, fecundada por vidas inteiras que passaram junto aos
segredos sombrios da África nativa, que os fazia tremer tão violentamente, a
despeito do calor causticante de janeiro.
Tratava-se
de um caderno pequeno, e todas as entradas apareciam numa caligrafia bonita, a
qual, entretanto, se tornava descuidada e nervosa à medida que se aproximava do
fim. Consistia de uma série de apontamentos soltos, irregularmente espaçados no
princípio, mas que finalmente se tornavam cotidianos. Chamá-lo de diário não
seria inteiramente correto, pois recobria a crônica de apenas um setor das
atividades do autor. O doutor Van Keulen reconheceu o nome do morto no momento
em que virou a capa, pois se tratava de um eminente membro de sua própria
profissão que tinha estado amplamente ligado aos assuntos africanos. Num outro
momento, ficou horrorizado ao descobrir seu nome ligado a um crime covarde não
solucionado oficialmente, que tinha frequentado os jornais há uns quatro meses.
E quanto mais lia mais se aprofundavam seu horror, seu pasmo, sua aversão e seu
pânico.
Aqui,
em essência, está o texto que o doutor leu em voz alta naquele quarto sinistro
e perturbador, enquanto os três homens à sua volta perdiam o fôlego, se
remexiam em suas cadeiras e disparavam olhadelas medrosas para o teto, para a
mesa, para as coisas que estavam no chão, bem como entre si mesmos:
DIÁRIO DE THOMAS SLAUENWITE – MÉDICO
Comovente
punição de Henry Sargent Moore, Ph.D., do Brooklyn, Nova Iorque, professor de
Biologia dos Invertebrados na Universidade de Colúmbia, Nova Iorque, N.Y.
Preparada para ser lida após minha morte, pela satisfação de tornar pública a
realização de minha vingança, a qual, de outro modo, poderá nunca vir a ser
creditada a mim, caso obtenha sucesso.
5
de janeiro de 1929 – Estou agora plenamente resolvido a matar o doutor Henry
Moore, e um incidente recente me mostrou como o farei. Doravante, seguirei uma
linha de ação consistente; daí o começo deste diário.
Não
há muita necessidade de repetir as circunstâncias que me levaram em tal
direção, pois a parte informada do público está familiarizada com todos os
fatos relevantes. Nasci em Trenton, Nova Jérsei, em 12 de abril de 1885, e sou
filho do doutor Paul Slauenwite, que antes esteve em Pretoria, no Transvaal, na
África do Sul. Estudando medicina em consonância com uma tradição familiar, fui
conduzido por meu pai (que morreu em 1916, enquanto eu servia na França num
regimento sul-africano) a me especializar em febres africanas; e, após me
formar pela Colúmbia, dediquei bastante tempo a pesquisas que me levaram de
Durban, em Natal, até o próprio equador.
Em
Mombaça, trabalhei em minha teoria sobre a transmissão e o desenvolvimento da
febre remitente, ajudado apenas em parte pelas anotações do último médico do
governo, Sir Norman Sloane, as quais encontrei na casa em que vivi. Quando
publiquei minhas conclusões, tornei-me de súbito uma autoridade famosa.
Falaram-me acerca da probabilidade de uma posição quase suprema no serviço de
saúde sul-africano e até mesmo de uma comenda, na eventualidade de que eu me
tornasse cidadão naturalizado, e em função disso dei alguns passos
indispensáveis.
Então
sobreveio o incidente pelo qual estou prestes a matar Henry Moore. Esse homem,
meu colega de estudos e amigo durante anos na América e na África, deliberou
minar minhas pretensões quanto à teoria, alegando que Sir Norman Sloane me
antecipara em todos os detalhes essenciais e dando a entender que eu teria
encontrado mais papéis dele do que declarara em meus escritos. Para corroborar
essa acusação absurda, ele trouxe à luz certas cartas pessoais de Sir Norman
que de fato mostravam que o velho já teria percorrido meu caminho e que
publicaria seus resultados, não fosse pela sua morte repentina. Tudo isso eu
poderia admitir com alguma mágoa. O que não podia desculpar era a suspeita
invejosa de que havia roubado a teoria dos papéis de Sir Norman. O governo
inglês, sensível demais, ignorou essas difamações, mas retirou a prometida
indicação e a comenda, sob justificativa de que minha teoria, embora original
em parte, não era de fato nova.
Percebi
que minha carreira na África fora bruscamente interrompida, não obstante
tivesse apostado todas as minhas esperanças nela, ao ponto mesmo de desistir da
cidadania americana. Uma frieza tocante em relação à minha pessoa se manifestou
no governo de Mombaça, principalmente entre os que tinham conhecido Sir Norman.
Foi então que resolvi acertar contas com Moore, mais cedo ou mais tarde,
conquanto não fizesse idéia de como. Ele invejara minha prematura celebridade e
tirara partido de sua antiga correspondência com Sir Norman para me arruinar.
Tudo isso vindo de um amigo em quem eu mesmo suscitara o interesse pela África,
a quem orientara e inspirara, até que adquirisse sua fama atual como autoridade
em entomologia africana. Mesmo agora, decerto, não vou negar que suas
conquistas tenham sido profundas. Eu o ajudei, e em troca ele me arruinou.
Agora, algum dia, o destruirei.
Quando
vi que perdia espaço em Mombaça, solicitei uma transferência para o interior,
para M’gonga, onde permaneço atualmente, apenas a cinquenta milhas da fronteira
com Uganda. Trata-se de um entreposto para comércio de algodão e marfim, com
somente oito homens brancos, além de mim. Um lugar bestial, quase na linha do
equador, cheio de todo tipo de febres que a humanidade já conheceu. Serpentes
venenosas e insetos por toda parte, e negros portadores de doenças de que
ninguém ouve falar fora do ambiente médico. No entanto meu trabalho não é
difícil, e tenho tempo de sobra para pensar no que fazer com Henry Moore.
Diverte-me dar aos seus Dípteros da África Central e Meridional um lugar
proeminente em minha estante. Suponho que seja realmente um manual padrão,
usado em Colúmbia, em Harvard e em Winsconsin, porém minhas próprias sugestões
é que são de fato responsáveis por metade de seus pontos fortes.
Na
semana passada encontrei aquilo que me decidiu sobre o modo de acabar com
Moore. Um grupo enviado de Uganda trouxe um negro acometido por uma doença que
ainda não posso diagnosticar. O homem parecia letárgico, com uma temperatura
muito baixa, e se contorcia de um modo peculiar. A maioria dos outros tinha
medo dele, dizendo que estava sob algum tipo de feitiçaria; no entanto Gobo, o
intérprete, disse que ele fora picado por um inseto. Qual fosse, não posso imaginar,
pois há apenas uma ligeira ferroada no braço. É de um vermelho brilhante, porém
com uma auréola arroxeada ao redor. De aparência espectral, não me espanto de
que os rapazes a atribuam à magia negra. Parecem ter visto casos semelhantes em
outros tempos e dizem que, com efeito, não há nada a fazer.
O
velho N’Kora, um dos nativos de Oromo a trabalhar no posto, sugere que possa
ser a mordida de uma mosca-diabo, que faz com que suas vítimas se esgotem e
morram, para então tomar posse de sua alma e de sua personalidade, se esta
ainda estiver viva, voando por aí com todos os seus gostos, aversões e com sua
consciência. Uma curiosa lenda, e não sei de inseto mortal o suficiente com o
qual relacioná-la. Dei a esse negro doente (cujo nome é Mevana) uma boa dose de
quinino e extraí uma amostra de seu sangue para exame, mas não obtive
progresso. Existirá, certamente, algum germe estranho envolvido, mas não posso
identificá-lo sequer remotamente. A coisa mais próxima é o bacilo que se
encontra em bois, cavalos e cachorros picados pela tsé-tsé; porém moscas
tsé-tsé não infectam seres humanos, e estamos muito ao norte para encontrá-las
por aqui.
Entretanto
o importante é que me decidi sobre como matar Moore. Se esta região interior
tem insetos tão venenosos como os nativos afirmam, providenciarei para que
receba um suprimento deles de uma fonte insuspeita, e com muitas garantias de
que são inofensivos. Certo de que ele negligenciará toda cautela quanto ao
estudo de uma espécie desconhecida, e então veremos como a natureza segue seu
curso! Não será difícil achar um inseto que tanto amedronta os negros.
Primeiro, observar o que acontece ao pobre Mevana, e então encontrar meus
próprios emissários mortais.
7
de janeiro – Mevana não melhorou, embora eu lhe tenha aplicado todas as
antitoxinas que conheço. Tem acessos de tremor, nos quais o ouvimos arengar
medrosamente sobre o modo como sua alma passará, quando ele morrer, para o
inseto que o picou; mas entre os acessos permanece numa espécie de semiestupor.
Pulsação cardíaca ainda forte, de modo que poderei ajudá-lo. Tentarei, pois ele
provavelmente pode me guiar melhor do que qualquer outro até a região onde foi
picado.
Enquanto
isso, escreverei ao doutor Lincoln, meu antecessor por aqui, pois Allen, o
administrador chefe, diz que ele tinha um profundo conhecimento das doenças
locais. Ele deverá saber sobre a mosca-diabo, se é que algum branco sabe. Está
em Nairobi atualmente, e um mensageiro negro deverá me trazer uma resposta
dentro de uma semana, usando a ferrovia para a metade do trajeto.
10
de janeiro – Paciente estável, mas encontrei o que queria! Foi num antigo
volume dos registros locais de saúde que eu tinha estado a percorrer com
diligência enquanto esperava por notícias de Lincoln. Trinta anos atrás teria
ocorrido uma epidemia que matou milhares de nativos em Uganda, e fora
definitivamente atribuída a uma rara mosca chamada Glossina palpalis, um tipo
de primo da Glossina norsitans ou tsé-tsé. Vive nos arbustos às margens de
lagos e rios e se alimenta do sangue de crocodilos, antílopes e grandes
mamíferos. Quando esses animais portam o germe da tripanossomíase, ou
doença-do-sono, ela o adquire, desenvolvendo agudo poder de infecção num
período de trinta e um dias. Então, durante setenta e cinco dias, passa a
representar morte certa para qualquer um ou qualquer coisa que venha a picar.
Sem
dúvida, essa deve ser a mosca-diabo de que falam os negros. Agora sei o que
estou buscando. Espero que Mevana se levante. Devo receber notícias de Lincoln
em quatro ou cinco dias; é grande a sua reputação em lidar com coisas desse
tipo. Meu problema maior será passar as moscas a Moore sem que ele as
reconheça. Com sua maldita aplicação acadêmica, não seria difícil que ele já as
conhecesse desde que houvesse registros a respeito.
II
15
de janeiro – Acabo de receber notícias de Lincoln, que confirma tudo o que os
registros dizem acerca da Glossina palpalis. Ele dispõe de um remédio para a
doença-do-sono que obteve sucesso num grande número de casos, desde que
ministrado em tempo. Injeções intramusculares contra a infecção. Uma vez que
Mevana foi picado há dois meses, não sei que efeito terá; mas Lincoln diz que
sabe de casos que se arrastaram por dezoito meses, de modo que eu talvez não
esteja tão atrasado. Lincoln enviou um pouco do material, e me apressei a dar a
Mevana uma dose reforçada. Em estupor agora. Trouxeram da aldeia a sua primeira
esposa, mas ele sequer a reconhece. Caso se recupere, certamente poderá
mostrar-me o lugar onde estão as moscas. É um grande caçador de crocodilos,
segundo informações, e conhece Uganda com a palma da mão. Vou lhe dar outra
injeção amanhã.
16
de janeiro – Mevana parece hoje um pouco mais vívido, mas sua pulsação tem se
atrasado um pouco. Manterei as injeções, mas evitarei sobrecargas.
17
de janeiro – Melhoras realmente notáveis, hoje. Mevana abriu os olhos e mostrou
sinais de efetiva consciência, embora ofuscada, após a injeção. Espero que
Moore nada saiba sobre a triparsamida. Há boas chances de que não saiba, desde
que nunca se dedicou à medicina. A língua de Mevana parece paralisada, mas
creio que isso se corrigirá se eu ao menos conseguir despertá-lo. Até que
apreciaria um bom sono eu mesmo, mas não dessa natureza!
25
de janeiro – Mevana quase curado! Com mais uma semana, e poderei fazer com que
me leve até a selva. Estava amedrontado quando chegou, com medo de que a mosca
tomasse sua personalidade depois da morte; mas finalmente se animou, quando lhe
contei que ficaria bom. Sua esposa, Ugowe, cuida bem dele agora, de modo que posso
descansar um pouco. Então, aos enviados da morte!
3
de fevereiro – Mevana está bem agora, e conversei com ele a respeito de caçar
moscas. Ele teme aproximar-se do lugar onde elas o picaram, mas estou jogando
com sua gratidão. No mais, ele supõe que posso tanto afastar doenças quanto
curá-las. Sua coragem envergonharia um homem branco; não há dúvida de que ele
irá. Posso me ausentar, dizendo ao administrador chefe que será uma viagem a
serviço dos interesses sanitários.
12
de março – Em Uganda, finalmente! Tenho cinco rapazes, além de Mevana, mas são
todos de Oromo. Não houve como contratar os negros locais, nem convencê-los a
se aproximarem da região, depois do que aconteceu com Mevana. Esta selva é um
lugar pestilento, fumegante de vapores miasmáticos. Todos os lagos parecem
estagnados. Em certo ponto, descobrimos traços de ruínas ciclópicas que fizeram
mesmo os oromenses recuar num círculo aberto. Dizem que esses megálitos são
mais antigos que o próprio homem e que costumavam servir como abrigo ou posto
avançado dos “Pescadores de Fora” – o que quer que isso signifique – e dos
deuses malignos Tsathoggwa e Cthulhu. Hoje em dia, diz-se que tenham uma
influência malévola e que, de algum modo, estejam conectados com as moscas-diabo.
15
de março – Atingimos o lago Mlolo nesta manhã, onde Mevana foi picado. Uma
coisa diabólica, coberta por uma crosta verte e repleta de crocodilos. Mevana
armou uma pequena arapuca para moscas, feita de arame, usando carne de
crocodilo como isca. Possui uma abertura estreita, e uma vez que algum
aventureiro penetre não terá condições de sair. São tão estúpidas quanto
mortais, e loucas por carne fresca ou uma tigela de sangue. Espero que
obtenhamos um bom suprimento. Decidi que preciso fazer experiências com elas,
encontrando um modo de alterar sua aparência a um extremo que Moore não as
reconheça. Possivelmente poderei cruzá-las com outras espécies, obtendo um
híbrido estranho cuja capacidade de infecção não será diminuída. Veremos.
Preciso esperar, mas agora não tenho pressa. Quando estiver pronto, farei com
que Mevana me traga um pouco de carne infectada para alimentar meus enviados da
morte. E, então, ao correio. Não deve haver problemas em captar a infecção,
pois este país é um verdadeiro ninho de pestes.
16
de março – Sorte. Duas gaiolas cheias. Cinco vigorosos espécimes com asas que
cintilam como diamantes. Mevana os está guardando num grande pote com uma tampa
segura, e penso que os apanhamos a tempo. Poderemos levá-los a M’gonga sem
dificuldades. Estocando carne de crocodilo suficiente para alimentá-los. Sem
dúvida, toda ela ou a maior parte se acha infectada.
20
de abril – De volta a M’gonga e a trabalhar no laboratório. Solicitei ao doutor
Joost, em Pretória, algumas tsé-tsés para experimentos de hibridização. Tal
cruzamento, se funcionar, deverá produzir qualquer coisa bem difícil de
reconhecer e, ao mesmo tempo, tão mortal quanto as palpalis. Se não der certo,
tentarei com outros dípteros do interior, e já mandei pedir ao doutor Vandervelde,
em Nyangwe, alguns tipos do Congo. Não terei que mandar Mevana em busca de mais
carne corrompida, pois creio que posso manter, por tempo indefinido, culturas
em tubo do germe Trypanossoma gambiense, retirado da carne que conseguimos no
mês passado. Quando chegar a hora, corromperei alguma carne fresca e
alimentarei meus arautos alados com uma boa dose. Então, bon voyage para eles!
18
de junho – Minhas tsé-tsés enviadas por Joost chegaram hoje. Gaiolas para
criação já estavam prontas há muito, e agora estou fazendo seleções. Pretendo
usar raios ultravioletas para acelerar o ciclo vital. Por sorte, disponho do
aparato necessário no meu equipamento regular. Naturalmente, não digo a ninguém
o que estou fazendo. A ignorância dos poucos homens daqui torna fácil esconder
minhas intenções e fingir que estudo espécies existentes com propósitos
científicos.
29
de junho – O cruzamento é fértil! Grandes depósitos de ovos na última
quarta-feira, e agora tenho larvas excelentes. Se os insetos maduros parecem tão
estranhos quanto elas, nada mais preciso fazer. Preparando gaiolas separadas e
numeradas para os diferentes espécimes.
7
de julho – Novos híbridos se formaram! O disfarce é excelente quanto à forma,
mas o lustro das asas sugere a palpalis. O tórax possui ligeiras sugestões das
listras da tsé-tsé. Discretas variações entre os indivíduos. Tenho-as
alimentado com carne corrompida de crocodilo, e depois que a infecciosidade se
desenvolver vamos testá-las em alguns dos negros, com ares, é claro, de acidente.
Há tantas moscas moderadamente venenosas por aqui que se pode fazer isso com
facilidade e sem despertar suspeitas. Libertarei um inseto em minha sala de
jantar hermeticamente protegida, quando Batta, meu camareiro, trouxer o café da
manhã, mantendo-me em guarda eu mesmo. Quando ela fizer seu trabalho, vou
capturá-la ou esmagá-la – uma tarefa simples, devido à conhecida estupidez – ou
asfixiá-la enchendo o cômodo de gás clorídrico. Se não der certo da primeira
vez, tentarei de novo até que dê. Decerto, terei à mão a triparsamida, para o
caso de ser picado – mas tomarei cuidado para não o ser, pois nenhum remédio é
garantido.
10
de agosto – Infecciosidade amadurecida, e providenciei para que Batta fosse
picado de jeito. Apanhei a mosca sobre sua pele, devolvendo-a à gaiola.
Amenizei a dor com iodo, e o pobre diabo ainda ficou grato pelo serviço. Esses
serão os únicos testes que ousarei fazer por aqui. No entanto, se precisar de
outros, levarei alguns espécimes até Ukala e obterei dados adicionais.
11
de agosto – Falhei com Gamba, mas recapturei a mosca viva. Batta ainda parece
bem, como de costume, e não sente dor nas costas onde foi picado. Esperarei,
antes de tentar em Gamba outra vez.
14
de agosto – Remessa de insetos por Vandervelde, finalmente. Sete espécies
claramente distintas, algumas mais ou menos venenosas. Mantenho-as bem
alimentadas para o caso de o cruzamento com a tsé-tsé não funcionar. Algumas
delas parecem bem diferentes da palpalis, mas o problema é que podem não
produzir um cruzamento fértil com ela.
17
de agosto – Atingi Gamba hoje, mas tive de matar a mosca que pousou sobre ele.
Ela o mordeu no ombro esquerdo. Tratei a picada, e Gamba ficou tão agradecido
quanto Batta. Nenhuma alteração em Batta.
20
de agosto – Gamba ainda inalterado, e Batta também. Tenho experimentado com uma
nova forma de disfarce para suplementar a hibridização – um tipo de tintura
para mudar o brilho denunciador das asas da palpalis. Um matiz azulado seria
bom, algo que eu pudesse borrifar sobre todo um enxame de insetos. Iniciarei
investigando coisas como o azul-da-prússia e o azul-marinho, sais de ferro e
cianogênio.
25
de agosto – Batta se queixou de uma dor nas costas hoje. As coisas podem estar
em andamento.
3
de setembro – Obtive razoável progresso em meus experimentos. Batta exibe
sinais de letargia e diz que suas costas doem o tempo todo. Gamba começa a
sentir desconforto no ombro mordido.
24
de setembro – Batta piorando mais e mais e começando a se amedrontar por causa
da picada. Acha que pode ser uma mosca-diabo e me implorou que a matasse, pois
me viu colocá-la na gaiola, até que aleguei que ela já tinha morrido há muito.
Disse-me que não pretendia que sua alma passasse para ela após sua morte.
Dou-lhe injeções de água pura com uma seringa para manter seu moral.
Evidentemente a mosca conserva todas as propriedades da palpalis. Gamba abatido
também, e repetindo todos os sintomas de Batta. Posso decidir-me e lhe dar uma
chance com a triparsamida, para o caso de a mosca provar sua eficiência. No
entanto deixarei que Batta prossiga, pois quero ter uma idéia aproximada de
quanto tempo um caso leva para terminar.
Experimentos
com tintura revelando-se profícuos. Uma forma isomérica de ferro-ciano pode ser
dissolvida em álcool e borrifada sobre os insetos com um efeito esplêndido. Ela
mancha de azul as asas sem afetar muito o tórax escuro e não se apaga quando
abluo os espécimes com água. Com esse disfarce, penso que poderei usar os
híbridos atuais da tsé-tsé, sem me incomodar com outros experimentos. Por mais
sagaz, Moore não poderia reconhecer uma mosca de asas azuladas com um meio
tórax de tsé-tsé. Naturalmente, mantenho todo esse assunto de tingimento sob
segredo. Mais tarde, nada deverá me ligar às moscas azuis.
9
de outubro – Batta caiu em letargia e se recolheu ao leito. Tenho ministrado
triparsamida em Gamba por duas semanas e suponho que se recobrará.
25
de outubro – Batta muito por baixo, mas Gamba praticamente bem.
18
de novembro – Batta morreu ontem, e uma coisinha aconteceu que me deu um grande
estremecimento, em vista das lendas nativas e dos receios do próprio Batta.
Quando retornei ao laboratório depois de sua morte, ouvi um zumbido e um
bulício singulares na gaiola 12, onde estava a mosca que picara Batta. A
criatura parecia frenética, mas se aquietou quando apareci, brilhando sobre a
grade de arame e olhando para mim de um modo estranhíssimo. Lançava as patas
sobre os olhos, como se estivesse desnorteada. Quando voltei, após ter jantado
com Allen, a coisa estava morta. Evidentemente teria enlouquecido e morrido de
tanto se chocar contra a gaiola.
Certamente
é peculiar que isso tenha ocorrido logo que Batta morreu. Se algum negro o
tivesse visto, teria creditado o fato à absorção da alma do pobre diabo. Dentro
de pouco tempo colocarei meus híbridos azulados a caminho. O poder de morte dos
híbridos parece um pouco maior do que o da palpalis pura, suponho. Batta morreu
três meses e oito dias após a infecção – mas, naturalmente, há sempre uma larga
margem de incerteza. Quase desejaria ter deixado o caso de Gamba prosseguir.
5
de dezembro – Ocupado em planejar o modo como enviarei meus arautos a Moore.
Preciso fazer com que pareça terem vindo de algum entomologista desinteressado,
o qual teria lido os seus Dípteros da África Central e Meridional e acreditaria
que ele se interessasse em estudar esta “espécie nova e não identificada”.
Deverá haver também amplas garantias de que a mosca de asas azuis seja
inofensiva, como o prova a longa experiência dos nativos. Moore baixará a
guarda, e uma das moscas certamente o pegará mais cedo ou mais tarde, embora
não se possa dizer quando.
Terei
de confiar nas cartas de amigos de Nova Iorque (ainda falam de Moore, de tempos
em tempos) para me manter informado acerca dos últimos resultados, embora eu
ouse dizer que os jornais anunciarão sua morte. Sobretudo, preciso mostrar
agora interesse em seu caso. Enviarei as moscas durante uma viagem, mas não
devo ser reconhecido quando o fizer. O melhor plano será tirar umas longas
férias no interior, deixar a barba crescer, postar a encomenda em Ukala,
passando por lá como um entomologista visitante, e retornar para aqui depois de
raspar a barba.
12
de abril de 1930 – De volta a M’gonga depois de minha longa viagem. Tudo correu
da melhor maneira, com precisão de relógio. Enviei as moscas a Moore sem deixar
rastros. Tirei férias natalinas, em 15 de dezembro, e parti de imediato com o
material preparado. Providenciei uma excelente embalagem para correio, com
espaço bastante para incluir alguma carne de crocodilo contaminada, para a
alimentação dos enviados. Até o fim de fevereiro, já tinha barba bastante para
me passar por um perfeito Van Dyke.
Apareci
em Ukala, a 19 de março, e datilografei uma carta para Moore na máquina do
entreposto comercial. Assinei como “Nevil Wayland-Hall”, suposto entomologista
de Londres. Penso ter conseguido o tom certo: interesse de parceiro cientista e
tudo o mais. Fui artisticamente casual ao enfatizar a “total ausência de
periculosidade” dos espécimes. Ninguém suspeitou de nada. Barbeei-me assim que
cheguei ao mato, de modo que não se notasse nenhuma irregularidade quando
estivesse de volta. Prescindi de carregadores nativos, exceto num pequeno
trecho pantanoso. Sou capaz de prodígios com uma simples mochila, e meu senso
de direção é bom. Por sorte, estou acostumado a tais viagens. Expliquei minha
ausência prolongada, alegando uma ponta de febre e alguns erros de direção
enquanto atravessava o mato.
Mas
agora vem, psicologicamente, a pior parte – esperar notícias de Moore sem
demonstrar ansiedade. Naturalmente, ele pode muito bem escapar às picadas até
que o veneno se esgote; mas com o seu estouvamento as chances são de uma para
cem contra ele. Não me arrependo de nada. Depois do que me fez, ele merece isso
e muito mais.
30
de junho de 1930 – Ufa! O primeiro passo foi dado! Acabo de ouvir casualmente
de Dyson, da Columbia, que Moore recebeu da África algumas moscas novas, de
asas azuis, e que está absolutamente intrigado com elas! Nenhuma palavra sobre
picadas; mas, se conheço o jeito relaxado de Moore, como penso conhecer, não
tardará a acontecer alguma coisa.
27
de agosto de 1930 – Carta de Morton, de Cambridge. Diz que Moore escreveu sobre
sentir-se abatido e fala de uma picada de inseto na parte de trás do pescoço –
de um curioso espécime novo que recebeu por meados de junho. Terei tido
sucesso? Aparentemente Moore não conecta a mordida com sua fraqueza. Se a coisa
for de verdade, então Moore foi picado bem dentro do período de infecciosidade
dos insetos.
12
de setembro de 1930 – Vitória! Outra linha de Dyson diz que Moore se acha num
estado alarmante. Ele agora relaciona sua doença com a picada, que recebeu no
entardecer de 19 de junho, e está completamente confuso quanto à identidade do
inseto. Tem tentado obter contato com o tal “Nevil Wayland-Hall”, que lhe
mandou a encomenda. Das cem que lhe enviei, cerca de vinte e cinco parecem ter
chegado vivas. Algumas escaparam ao prazo para a mordida, mas várias larvas
surgiram de ovos colocados desde o dia da postagem. Ele está, Dyson diz,
encubando cuidadosamente essas larvas. Quando amadurecerem, suponho que
identificará a hibridização da tsé-tsé palpalis, mas isso de pouco lhe servirá.
No entanto se perguntará por que as asas azuis não se transmitem por
hereditariedade!
8
de novembro de 1930 – Cartas de meia dúzia de amigos falam da séria enfermidade
de Moore. A de Dyson chegou hoje. Diz que Moore está absolutamente desnorteado
sobre os híbridos que surgiram das larvas e começou a pensar que os pais
obtiveram suas asas azuis por algum processo artificial. Passa a maior parte do
tempo na cama agora. Nenhuma menção ao uso de triparsamida.
13
de fevereiro de 1931 – Contratempos! Moore afunda e parece não conhecer nenhum
remédio, mas creio que suspeita de um. Recebi uma carta bastante animada de
Morton, no mês passado, que não mencionava Moore; e agora Dyson escreve, algo
constrangido, que Moore está elaborando teorias sobre o assunto. Tem procurado
“Wayland-Hall”, por meio do telégrafo, em Londres, Ukala, Nairobi, Mombaça e
outros lugares; e, naturalmente, nada encontra. Julgo que terá aventado com
Dyson acerca do suspeito, mas que Dyson ainda não acredita. Temo que Morton
acredite.
Vejo
que o melhor é traçar planos para fugir daqui e camuflar minha identidade. Que
fim para uma carreira que se iniciou tão bem! Mais um trabalho de Moore; mas
agora está pagando por ele adiantado! Creio que retornarei à África do Sul. E,
enquanto isso, tratarei discretamente de depositar algum fundo lá a crédito de
meu novo eu, “Frederick Nasmyth Mason, de Toronto, Canadá, agente de
minerações”. Estabelecerei uma nova assinatura, para identificação. Se nunca
tiver de dar esse passo, poderei facilmente transferir de volta os fundos para
minha identidade atual.
15
de agosto de 1931 – Meio ano já, e ainda o suspense. Dyson e Morton, bem como
vários outros amigos, parecem ter parado de me escrever. O doutor James, de São
Francisco, recebe vez por outra notícias dos amigos de Moore e diz que Moore se
acha num quase contínuo estado de coma. Não tem podido andar desde maio.
Enquanto conseguia falar, queixava-se de frio. Agora não consegue falar, embora
se pense que ainda tenha relances de consciência. Sua respiração é rápida e
curta e pode ser ouvida à distância. Nenhuma questão além do Trypanossoma
gambiense lhe interessa agora; mas ele resiste melhor do que os negros por
aqui. Três meses e oito dias acabaram com Batta, e aqui está Moore, vivo, mais
de um ano após ter sido picado. Ouvi rumores, no mês passado, sobre uma intensa
busca por “Wayland-Hall” nos arredores de Ukala. No entanto não acho que haja
necessidade de me preocupar, pois não existe absolutamente nada que me ligue a
esse negócio.
7
de outubro de 1931 – Acabou-se, finalmente! Notícias na Mombasa Gazette. Moore
morreu a 20 de setembro, depois de vários acessos de tremor e com uma
temperatura largamente abaixo do normal. E foi tudo! Eu disse que o pegaria, e
o fiz! O jornal traz um relato de três colunas acerca de sua doença e morte, e
sobre a improfícua busca por “Wayland-Hall”. Obviamente, Moore era na África um
personagem maior do que pensei. O inseto que o picou foi agora identificado adequadamente,
a partir dos espécimes sobreviventes e das larvas desenvolvidas, e a tintura
das asas também foi detectada. Notou-se, de modo geral, que as moscas teriam
sido preparadas e enviadas com o intuito de matar. Moore, ao que parece,
comunicou certas suspeitas a Dyson, mas este último, junto com a polícia, tem
mantido segredo, devido à ausência de provas. Todos os inimigos de Moore têm
sido observados, e a Associated Press aventa que “uma investigação,
possivelmente envolvendo um médico eminente que se acha exterior, se seguirá”.
Uma
coisa bem no finalzinho da notícia (sem dúvida a invenção romanesca de algum
jornalista menor) me trouxe um curioso estremecimento, em vista das lendas dos
negros e do modo como as moscas se tornaram indóceis quando Batta morreu.
Parece que um incidente estranho teve lugar na noite em que Moore morreu. Dyson
foi despertado pelo zunido de uma mosca de asas azuis, a qual imediatamente
voou pela janela, logo antes de a enfermeira telefonar dando notícias da casa
de Moore, milhas distante, no Brooklyn.
Mas
o que mais me diz respeito é o final africano do caso. Pessoas em Ukala se
lembram do estrangeiro barbado que datilografou a carta e mandou o pacote, e os
investigadores estão varrendo o país em busca de quaisquer negros que o tenham
ajudado. Não empreguei muitos, mas se os oficiais questionarem os nativos que
me conduziram através do cinturão da selva N’Kini, terei de explicar mais do
que pretendo. Ao que parece, chegou a hora de desaparecer. Portanto, amanhã
creio que pedirei demissão e me prepararei para viajar a algum lugar
desconhecido.
9
de novembro de 1931 – Trabalho duro para manejar minha demissão, mas a
liberação veio hoje. Não quis agravar suspeitas arribando imediatamente. Na
semana passada ouvi de James alguma coisa sobre a morte de Moore, mas não mais
do que viera nos jornais. As pessoas de seu círculo em Nova York se mostram
bastante reticentes quanto aos detalhes, embora todos falem de uma
investigação. Nenhuma palavra de meus amigos do Leste. Moore deve ter semeado
suspeitas perigosas ao seu redor antes de perder a consciência, mas não existe
a menor prova que ele pudesse ter aduzido.
Mesmo
assim, não quero correr riscos. Na quinta-feira partirei para Mombaça e uma vez
lá tomarei um vapor até Durban, descendo pela costa. Depois disso sumirei de
vista. Porém logo em seguida o agente de minerações Frederick Nasmyth Mason, de
Toronto, aparecerá em Johannesburg.
Seja
este o final de meu diário. Se no fim eu não estiver sob suspeita, servirá ao
seu propósito original, após minha morte, e revelará o que de outro modo não
seria conhecido. Se, por outro lado, tais suspeitas se materializarem e
persistirem, confirmará e clarificará as acusações vagas, preenchendo
importantes e desconcertantes lacunas. Naturalmente, se o perigo me ameaçar,
terei de destruí-lo.
Bem,
Moore está morto, como muito bem merecia estar. Agora o doutor Thomas
Slauenwite está morto também. E quando o corpo que pertenceu a Thomas
Slauenwite estiver morto, o público poderá conhecer este relato.
III
15
de janeiro de 1932 – Um novo ano, e uma relutante reabertura deste diário.
Desta vez estou escrevendo unicamente para aliviar meu espírito, pois seria
absurdo imaginar que o caso não esteja definitivamente encerrado. Instalei-me
no Hotel Vaal, em Johannesburg, sob meu novo nome, e ninguém até agora duvidou
de minha identidade. Tive algumas conversas inconclusivas sobre negócios, para
reforçar meu papel como agente de mineração, e creio que possa até entrar nesse
ramo. Mais tarde irei a Toronto e semearei algumas evidências acerca de meu
passado fictício.
Mas
o que me preocupa foi um inseto que invadiu meu quarto por volta do meio-dia de
hoje. Por certo tenho tido toda sorte de pesadelos com moscas azuis
ultimamente, mas esses eram previsíveis em vista de minha permanente tensão
nervosa. Esta coisa, porém, era uma verdade da vigília, e estou completamente
desorientado a seu respeito. Zumbiu em torno de minha estante por um bom quarto
de hora e se esquivou a qualquer tentativa de capturá-la ou de matá-la. A coisa
mais inusitada era a sua cor e o seu aspecto, pois tinha asas azuis e era, sob
todos os títulos, uma duplicata de meus enviados híbridos da morte. Se poderia
ser de fato um deles não tenho a menor idéia. Tive controle sobre todos os híbridos
– manchados e não manchados – que não enviei a Moore, e não posso me lembrar de
nenhuma evasão.
Seria
isso uma completa alucinação? Ou algum dos espécimes que escaparam no Brooklyn
quando Moore foi picado poderia ter achado seu caminho de volta para a África?
Houve aquela história absurda da mosca que despertou Dyson quando Moore morreu.
Mas, afinal, a sobrevivência e o retorno de alguns dos bichos não são de todo
impossíveis. É perfeitamente possível que o azul tenha aderido às asas, pois o
pigmento que apliquei era tão permanente quanto a tatuagem. Por eliminação,
essa pareceria ser a única explicação racional para a coisa, conquanto seja
bastante curioso que o bicho tenha chegado a tal extremidade no sul.
Possivelmente se tratará de algum instinto inerente ao ramo das tsé-tsés.
Afinal, essa parte do grupo pertence à África do Sul.
Preciso
me precaver contra picadas. Naturalmente o veneno original (se esta for
realmente uma das moscas que escaparam de Moore) se esvaiu eras atrás; mas o
exemplar deve ter se alimentado quando retornou da América e pode muito bem ter
vindo através da África Central, readquirindo a infecciosidade. Com efeito, é
mais provável do que improvável. Para a palpalis metade de sua hereditariedade
a levaria de volta a Uganda e a todos os germes da tripanossomíase. Ainda tenho
um pouco de triparsamida – não suportaria destruir minha caixa de remédios, por
mais incriminadora que seja – mas, desde que comecei a ler sobre o assunto, já
não estou mais tão seguro da ação da droga quanto estive no começo. A mesma
concede ao indivíduo uma oportunidade de lutar, e certamente salvou Gamba, mas
sempre resta uma imensa probabilidade de fracasso.
É
diabolicamente estranho que essa mosca tenha entrado bem em meu quarto, de
todos os lugares da imensa extensão africana! Parece conduzir ao extremo uma
coincidência. Suponho que, se retornar, eu certamente a matarei. Estou surpreso
de que me tenha escapado hoje, pois ordinariamente esses tipos são bastante
estúpidos e fáceis de apanhar. Seria uma pura ilusão, afinal de contas?
Certamente o calor está me afetando nestes últimos tempos, como nunca o fez
antes, mesmo lá em Uganda.
16
de janeiro – Estarei enlouquecendo? A mosca retornou nesta tarde e agiu de um
modo anormal, que me pareceu sem pés nem cabeça. Somente uma ilusão de minha
parte poderia explicar o que aquela peste zunidora parecia estar fazendo.
Surgiu de lugar nenhum e foi direto para minha estante, fazendo círculos e círculos
diante de uma cópia dos Dípteros da África Central e Meridional, de Moore. De
vez em quando, coruscava em cima ou atrás do volume, mas no final dardejava em
direção a mim e se retirava antes que eu pudesse atingi-la com algum papel
dobrado. Nunca se ouviu falar de semelhante esperteza com relação aos dípteros
notoriamente estúpidos da África. Por quase meia hora tentei acertar a maldita,
mas por fim ela disparou janela a fora, através de um buraco no mosquiteiro que
eu não havia notado. Por vezes imaginei que estivesse a zombar de mim, entrando
no alcance de minha arma e então, com muita destreza, se esquivando quando eu a
atacava. Preciso ter mais controle sobre minha consciência.
17
de janeiro – Ou eu estou louco ou o mundo foi vítima de uma súbita suspensão
das leis da probabilidade, conforme as conhecemos. A mosca infame surgiu de
algum lugar logo antes do meio-dia e começou a zumbir em torno da cópia dos
Dípteros de Moore que está em minha estante. Outra vez tentei apanhá-la, e
outra vez a experiência de ontem se repetiu. Finalmente a peste disparou em
direção a um tinteiro sobre minha mesa e enfiou nele as patas e o tórax,
mantendo limpas as asas. Então voou até o teto e pousou, começando a rastejar e
deixando um rastro de tinta. Após algum tempo estremeceu um pouco e fez uma
única mancha de tinta, desconectada do rastro. Por último desceu direto até meu
rosto e, finalmente, zumbindo, sumiu de vista antes que eu pudesse pegá-la.
Alguma
coisa em tudo isso me soou sinistramente monstruosa e anormal, e muito mais do
que eu poderia explicar a mim mesmo. Olhado sob diferentes ângulos, o rastro de
tinta no teto pareceu-me cada vez mais familiar, e de repente me ocorreu que
formava um ponto de interrogação absolutamente perfeito. Que maligno truque poderia
ser mais apropriado? Espanto-me de não ter desmaiado. No entanto os ajudantes
do hotel não o notaram. Não viram a mosca nesta tarde e neste anoitecer, mas
estou mantendo meu tinteiro bem fechado. Penso que o extermínio de Moore esteja
me perseguindo e me proporcionando mórbidas alucinações. Talvez não haja mosca
nenhuma.
18
de janeiro – Em que estranho inferno de pesadelo vivo estarei mergulhado? O que
ocorreu hoje é algo que não poderia acontecer normalmente; e, no entanto, um
empregado do hotel viu as marcas no teto e admite sua realidade. Por volta das
onze da manhã, quando eu trabalhava num manuscrito, alguma coisa se atirou para
dentro do tinteiro pela fração de um segundo e relampejou para o alto outra
vez, antes que eu pudesse ver o que era. Erguendo os olhos, vi no teto aquela
mosca infernal, como tinha visto antes, a rastejar e a traçar uma nova trilha
de curvas e volteios. Não havia nada que eu pudesse fazer, mas enrolei um
jornal na expectativa de atingir a criatura caso ela se aproximasse o bastante.
Depois de ter feito várias voltas no teto, voou para um canto escuro e
desapareceu. E quando olhei de novo para o emboço desfigurado notei que a nova
trilha de tinta compunha a enorme e inequívoca imagem do algarismo 5.
Por
um tempo fiquei quase inconsciente diante de uma onda de inominável ameaça da
qual não me dava conta totalmente. Então convoquei toda a minha resolução e
tomei uma atitude. Fui até uma loja de materiais químicos e comprei resina e
outras coisas necessárias à preparação de uma armadilha pegajosa, e também um
tinteiro similar. Retornando ao quarto, enchi o tinteiro com a mistura viscosa
e o coloquei aberto no ponto onde estivera o original. Em seguida tentei me
concentrar em alguma leitura. Por volta das três horas ouvi de novo o maldito
inseto e o vi circulando em torno do tinteiro. Desceu até a superfície viscosa,
mas não a tocou; e logo após avançou em minha direção, recuando antes que eu o
atingisse. Então foi até à estante e circulou em torno do tratado de Moore. Há
alguma coisa de profunda e diabólica no modo como o intruso esvoaça perto desse
livro.
A
pior parte foi a última. Abandonando o livro de Moore, o inseto voou em direção
à janela e começou a se chocar ritmadamente contra a tela de arame. Ouvia-se
uma série de batidas e então uma série de igual extensão e depois uma pausa e
assim por diante. Alguma coisa nessa performance me manteve paralisado por
alguns instantes, mas logo em seguida disparei para a janela e tentei matar
aquele bicho nocivo. Como sempre, nenhum resultado. Ele simplesmente voou
através do cômodo em direção a uma lâmpada e começou a bater no mesmo ritmo
contra o quebra-luz de cartão. Senti um vago desespero e tratei de fechar todas
as portas, bem como a janela em cuja tela havia o buraco imperceptível.
Pareceu-me bastante necessário matar essa criatura persistente, cujo assédio em
breve teria perturbado minha cabeça. Então, contando inconscientemente, comecei
a notar que cada série de batidas continha exatos cinco toques.
Cinco
– o mesmo número que a coisa tinha traçado a tinta no teto pela manhã! Podia-se
conceber alguma conexão? A idéia era maníaca, pois fazia supor um intelecto
humano e um conhecimento de escrita por parte da mosca híbrida. Um intelecto
humano – não se estaria com isso recuando às mais primitivas lendas dos negros
ugandenses? E ainda havia aquela esperteza infernal em ludibriar-me, que
contrastava com a estupidez normal da espécie. Quando pus de parte meu jornal
dobrado e me sentei, tomado de crescente horror, o inseto esvoaçou zumbindo e
desapareceu através de um buraco do teto, por onde o cano do aquecimento subia
para o quarto de cima.
A
partida não me acalmou, pois minha mente havia disparado numa cadeia de
reflexões frenéticas e terríveis. Se essa mosca tivesse uma inteligência
humana, de onde viera tal inteligência? Haveria alguma verdade na concepção
nativa de que essas criaturas adquiriam a personalidade de suas vítimas após a
morte destas últimas? Em caso afirmativo, qual personalidade essa mosca
incorporara? Imaginei que fosse uma das que tinham escapado a Moore na época em
que fora picado. Seria este o enviado da morte que picara Moore? Se o era, o
que queria comigo? O que queria comigo, afinal de contas? Suando frio,
lembrei-me das ações da mosca que tinha picado Batta quando Batta morreu. Teria
sido sua personalidade substituída por aquela de sua vítima morta? Então havia
também aquele relato sensacional da mosca que despertou Dyson quando Moore
morreu. Quanto à mosca que me assediava, poderia ocorrer que uma personalidade
humana vingativa a estivesse guiando? Como esvoaçava em torno do livro de
Moore! Recusei-me a pensar mais além disso. Subitamente comecei a ter certeza
de que a criatura estava de fato infectada e do modo mais virulento. Com
deliberação maligna, bastante evidente em cada ato seu, teria certamente se
carregado de propósito com os bacilos mais mortais de toda a África. Minha
mente, completamente abalada, estava agora levando em conta as qualidades
humanas da criatura.
Telefonei
de imediato para o gerente e pedi que um homem viesse fechar a abertura do cano
do radiador e outras possíveis fendas do meu quarto. Falei de estar sendo
atormentado por moscas, ao que ele me pareceu inteiramente solícito. Quando o
homem veio, mostrei-lhe as marcas de tinta no teto, que ele reconheceu sem
dificuldade. Então são reais! A semelhança com um ponto de interrogação e um
número cinco o intrigaram e o fascinaram. Por fim, ele bloqueou todos os
buracos que conseguiu encontrar e remendou o mosquiteiro da janela. Evidentemente
me julgou um tanto excêntrico, até porque nenhum inseto apareceu enquanto ele
esteve aqui. Mas estou longe de me incomodar com isso. Até agora a mosca não
apareceu por esta noite. Só Deus sabe o que ela é, o que ela quer, e o que será
de mim!
19
de janeiro – Estou completamente engolfado no horror. A coisa me tocou.
Qualquer coisa de monstruosa e demoníaca está em andamento à minha volta, e eu
não sou senão uma vítima indefesa. Pela manhã, quando voltei do desjejum,
aquele demônio alado do inferno se precipitou para dentro do quarto, voando
sobre minha cabeça, e começou a martelar contra a proteção da janela, tal como
o fizera ontem. Desta vez, porém cada série de batidas continha apenas quatro
pancadas. Corri à janela e tentei capturá-la, mas ela me escapou, como de
costume, e voou para o tratado de Moore, sobre o qual esvoaçou com escárnio.
Seu aparelhamento vocal é limitado, mas notei que seus zumbidos se produziam em
grupos de quatro.
Mas
desta vez eu estava louco, com certeza, pois gritei: “Moore, Moore, pelo amor
de Deus, o que você quer?” Quando o fiz, a criatura parou subitamente de
circular, voou em minha direção e fez um profundo, gracioso mergulho no ar,
semelhante a um aceno sugestivo. Pelo menos, pareceu-me ter visto isso,
conquanto eu já não confie mais em meus sentidos.
E
então o pior aconteceu. Eu deixara minha porta aberta, na esperança de que o
monstro saísse, se eu não o pegasse, mas por volta das 11h30 a fechei,
concluindo que ele se fora. Então me acomodei para ler. Logo ao meio-dia senti
um prurido em minha nuca, mas quando levei a mão não havia nada. Num instante
senti cócegas outra vez e, antes que pudesse me mover, aquele fruto inominável
do inferno apareceu em meu campo de visão, executou outro daqueles mergulhos
zombeteiros e graciosos no ar, e fugiu através do buraco da fechadura, que eu
nunca imaginei fosse largo o bastante para a sua passagem.
De
que a coisa tinha me tocado eu não podia duvidar. Tocara-me sem me injuriar. E,
então, lembrei-me com um súbito arrepio gelado de que Moore tinha sido picado
na parte de trás do pescoço, ao meio-dia. Nenhuma invasão desde então, mas já
tratei de vedar com papel todos os buracos das fechaduras e manterei um maço de
papel enrolado pronto para uso a qualquer momento em que saia ou que entre.
20
de janeiro – Não posso ainda crer inteiramente no sobrenatural, entretanto não
sinto menos que estou perdido. A questão é demais para mim. Pouco antes do
meio-dia de hoje aquele demônio apareceu do lado de fora da janela e repetiu
sua operação de bater, mas desta vez em séries de três. Quando fui à janela,
ele desapareceu. Ainda tenho resolução bastante para tomar uma última medida
defensiva. Removendo ambos os mosquiteiros, lambuzei-os com meu preparado de
visgo, o mesmo que usei no tinteiro, por dentro e por fora, e os recoloquei no
lugar. Se aquela criatura tentar bater de novo, há de ser pela última vez!
O
resto do dia em paz. Posso resistir a esta experiência sem me tornar um
maníaco?
21
de janeiro – A bordo do trem para Bloemfontein.
Estou
destroçado. A coisa me vence. Possui uma inteligência diabólica contra a qual
todos os meus recursos são inoperantes. Apareceu do lado de fora da janela
nesta manhã, mas não tocou na tela visguenta. Antes, passou rente, sem a tocar,
e se pôs a zumbir em círculos – dois por vez, seguidos de uma parada no ar.
Depois de várias dessas operações, sumiu de vista por sobre os telhados da
cidade. Meus nervos estão a ponto de se partir, pois essas sugestões de números
são passíveis de uma horrenda interpretação. Na segunda-feira, a coisa se
demorou na imagem do cinco; na terça foi o quatro; na quarta foi o três; e
agora, hoje, é o dois. Cinco, quatro, três, dois – que mais pode ser senão uma
monstruosa e inconcebível contagem de dias? E com que propósito apenas os
poderes malignos do universo poderão dizer! Passei toda a tarde embalando e
arrumando meus pertences, e agora tomei o expresso noturno para Bloemfontein. A
fuga pode ser inútil, mas o que mais se pode fazer?
22
de janeiro – Hospedado no Orange Hotel, em Bloemfontein, um lugar confortável e
excelente, mas o horror me seguiu. Fechei todas as portas e as janelas, entupi
todos os buracos de fechaduras, investiguei cada pequena frincha, e corri todas
as venezianas; mas, pouco antes do meio-dia, ouvi um estalido curto contra um
dos mosquiteiros. Esperei – e, depois de uma longa pausa, outro estalido
ocorreu. Uma segunda pausa, e mais um estalido. Erguendo a veneziana, avistei a
maldita mosca, conforme esperara. Ela descreveu um círculo aberto e lento no
ar, e então desapareceu de vista. Senti-me exaurido como um farrapo e tive de
me apoiar no sofá. Um! Esse era claramente o conteúdo da verdadeira mensagem do
monstro. Uma batida, um círculo. Significaria para mim mais um único dia, antes
de algum destino impensável? Eu deveria escapar de novo ou me entrincheirar
aqui, fechando hermeticamente todo o quarto?
Depois
de uma hora de repouso, senti-me capaz de agir e mandei que me trouxessem um
grande provimento de comida enlatada e embalada, e também roupas de mesa e de
banho. Amanhã não abrirei, em qualquer circunstância, nenhuma fenda de janela
ou de porta. Quando trouxe as toalhas e os lençóis, o negro olhou-me com
estranheza, mas não me importa parecer excêntrico agora ou sequer insano. Tenho
sido perseguido por forças muito piores que os ridículos dos homens. Ao receber
as encomendas, vasculhei cada milímetro quadrado das paredes e vedei mesmo cada
abertura microscópica que pude encontrar. Por fim, senti-me em condições de
dormir um pouco.
(A
caligrafia aqui se torna irregular, nervosa e muito difícil de decifrar.)
23
de janeiro – Já é quase meio-dia, e sinto que alguma coisa horrível está para
acontecer. Não dormi tanto quanto esperava, mesmo não tendo dormido nada no
trem na noite anterior. Levantei-me cedo, com dificuldades de me concentrar no
que quer que fosse, seja a leitura ou a escrita. Essa contagem lenta e
deliberada dos dias é demais para mim. Não sei qual delas enlouqueceu, se a
natureza ou se minha cabeça. Até por volta das onze nada fiz senão andar pelo
quarto.
Então
ouvi um rumor por entre os fardos de alimentos trazidos ontem, e aquela mosca
demoníaca se arrastou para fora diante de meus olhos. Agarrei qualquer coisa
plana e tentei atingir a coisa, a despeito de meu pânico, mas com o mesmo
resultado de sempre. Enquanto eu avançava, aquele horror de asas azuis se
retirou, como de costume, para a mesa onde eu empilhara meus livros, e dardejou
por um minuto sobre os Dípteros da África Central e Meridional. Então, como eu
insistisse, voou em direção ao relógio da cornija e pousou sobre o número 12.
Antes que eu pensasse em qualquer movimento, começou a girar sobre o mostrador
com lentidão deliberada, seguindo na direção dos ponteiros. Passou sob o
ponteiro dos minutos, abaixou-se, ergueu-se, passou sob o ponteiro das horas, e
finalmente parou bem em cima do 12. Enquanto permaneceu aí, agitou as asas com
um forte zumbido.
Será
algum portento desconhecido? Estou ficando tão supersticioso quanto os negros.
São agora pouco mais de onze horas. Às doze horas será o fim? Restou-me um
último recurso, que me veio à mente em meio ao mais extremo desespero.
Lembrando-me de que minha valise de medicamentos contém ambas as substâncias
necessárias para produzir gás clorídrico, tomei a decisão de encher o quarto
com esse vapor letal, asfixiando a mosca, enquanto me protejo com um lenço
embebido em amônia, que amarrarei sobre o rosto. Por sorte, tenho uma boa
reserva de amônia. Essa máscara improvisada provavelmente neutralizará as
emanações do ácido clorídrico até que o inseto esteja morto ou, pelo menos,
indefeso o bastante para ser esmagado. Mas preciso ser rápido. Como posso ter
certeza de que o bicho não disparará contra mim antes que eu termine os
preparativos? Eu nem deveria me interromper para escrever este diário.
Mais
tarde – Ambas as substâncias – ácido clorídrico e dióxido de manganês – sobre a
mesa, prontas para misturar. Amarrei o lenço sobre o nariz e a boca e tenho uma
garrafa de amônia para mantê-lo encharcado até que o gás clorídrico se dissipe.
Fechei ambas as janelas. Mas não me agradam as ações do demônio híbrido.
Permanece no relógio, mas se arrasta lentamente do número 12 em direção ao
ponteiro dos minutos, que não pára.
Será
esta minha última anotação no diário? Seria inútil tentar negar minhas
suspeitas. Frequentemente um grão de verdade bruxuleia por trás das lendas mais
fantásticas e selvagens. Trata-se da personalidade de Henry Moore, que tenta me
pegar por meio desse demônio de asas azuis? É esta a mosca que o picou e que,
em consequência, lhe absorveu a personalidade quando ele morreu? Se o for, e se
ela me picar, minha própria personalidade substituirá a de Moore, entrando
naquele corpo zunidor quando eu mesmo morrer picado em seguida? Talvez,
contudo, eu não morra necessariamente se ela me pegar. Sempre existe uma chance
com a triparsamida. E eu não me arrependo de nada. Moore tinha de morrer,
quaisquer que fossem as consequências.
(Pouco mais tarde)
A
mosca parou sobre o mostrador do relógio próximo à marca dos 45 minutos. São
agora 11h30. Estou saturando o lenço com amônia que apliquei sobre o rosto e
mantenho a garrafa à mão para novas aplicações. Esta será a última anotação
antes que eu misture o ácido e o manganês para liberar o gás clorídrico. Eu não
deveria estar perdendo tempo, mas me aflige a necessidade de colocar tudo no
papel. Mas, quanto a este relato, eu já terei perdido minha razão há muito
tempo. A mosca parece estar se tornando impaciente, e o ponteiro de minutos se
aproxima dela. Agora, ao gás clorídrico...
(Fim do diário)
No
domingo, dia 24 de janeiro de 1932, após repetidas pancadas na porta do
excêntrico ocupante do quarto 203 do Orange Hotel, que não obtiveram resposta,
o camareiro negro entrou, usando a chave de reserva, e logo disparou aos gritos
pela escada abaixo, a fim de informar o funcionário sobre o que tinha
encontrado. O funcionário, após notificar a polícia, chamou o gerente, e este
último acompanhou o guarda De Witt, o juiz Bogaert e o doutor Van Keulen até o
quarto fatídico.
O
ocupante jazia morto sobre o soalho, de face para cima, envolta num lenço que
cheirava a amônia. Sobre essa proteção, suas feições exibiam uma expressão de
medo extremado, que se transmitiu aos observadores. No dorso do pescoço o
doutor Van Keulen descobriu a mordida de algum inseto virulento (vermelha
escura, com uma auréola roxa ao redor), que sugeria a tsé-tsé ou qualquer coisa
menos inócua. Um exame indicou que a morte deveria ter sido causada mais por
parada cardíaca, resultante de pânico, do que pela mordida, conquanto uma
autópsia posterior mostrou que o germe da tripanossomíase fora introduzido no
organismo.
Sobre
a mesa havia diversos objetos: um velho caderno de notas encapado em couro,
contendo o diário, conforme descrito, uma caneta, um bloco de anotações, um
tinteiro aberto, uma valise de medicamentos com as iniciais T. S. gravadas em
ouro, frascos de amônia e de ácido clorídrico, e um copo contendo mais ou menos
um quarto de dióxido de manganês escuro. A garrafa de amônia exigiu uma segunda
olhada, pois que parecia haver nela alguma coisa a mais além do fluido.
Examinando de perto, o investigador Bogaert percebeu que o estranho ocupante
era uma mosca.
Parecia
tratar-se de algum híbrido com vagas filiações da tsé-tsé, mas as asas,
exibindo um pálido azul, a despeito da ação forte da amônia, eram completamente
intrigantes. Alguma coisa nela trouxe ao doutor Van Keulen a vaga recordação de
uma notícia lida em jornal, recordação que o diário logo confirmaria. Suas
partes inferiores pareciam ter sido manchadas com tinta, tão intensamente que
nem a amônia as empalidecera. Provavelmente teria caído no tinteiro alguma vez,
embora as asas parecessem intactas. Mas como teria penetrado através do gargalo
estreito da garrafa de amônia? Era como se a criatura tivesse entrado
deliberadamente para cometer suicídio!
Mas
o mais estranho foi o que o guarda De Witt descobriu no forro do teto, enquanto
seus olhos vagueavam pelo cômodo com curiosidade. Ao seu grito, os outros três
seguiram seu olhar, até mesmo o doutor Van Keulen, que permanecera por um
instante a tamborilar os dedos na capa de couro do livro, com uma expressão que
misturava horror, fascínio e incredulidade. O que havia no teto era uma série
de trêmulos e erradios traços feitos a tinta, tais como se produzidos pelo
arrastar-se de algum inseto encharcado. Imediatamente todos pensaram nas
manchas da mosca que estava na garrafa de amônia.
Mas
esses não eram traços ordinários. Mesmo num primeiro relance se percebia neles
alguma coisa de assombrosamente familiar, e uma inspeção mais atenta fez os
quatro observadores engasgarem de espanto. O juiz Bogaert instintivamente
procurou no quarto por algum instrumento ou empilhamento de mobília que
indicassem terem sido aquelas manchas hesitantes produzidas por um agente humano.
Nada encontrando, retornou seu olhar espantado e aterrorizado para o alto.
Fora
de qualquer dúvida, aquelas manchas de tinta formavam letras específicas do
alfabeto, letras coerentemente arranjadas na forma de palavras em inglês. O
médico foi o primeiro a distingui-las com clareza, e os outros perderam o
fôlego ouvindo-o recitar a mensagem de teor insano que fora, de modo tão
incrível, rabiscada num lugar onde nenhuma mão humana alcançaria:
“VEJAM MEU DIÁRIO – ELA ME PEGOU
PRIMEIRO – MORRI – ENTÃO PERCEBI QUE ESTAVA NELA – OS NEGROS ESTÃO CERTOS –
ESTRANHAS FORÇAS NA NATUREZA – AGORA AFOGAREI O QUE SOBROU”
Logo
em seguida, em meio ao silêncio de perplexidade que sobreveio, o doutor Van
Keulen começou a ler em voz alta o diário de capa surrada.
FIM
“A Morte Alada” está disponível em PDF e-PUB e MOBI
Leia gratuita e confortavelmente este
conto em seu Ipod, Kindle ou celular baixando o arquivo em
Uau! Lovecraft de fato fora um gênio...
ResponderExcluirSim, sem dúvida!!!!!!!
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