OS CAÇADORES DE RATOS - Conto Clássico de Horror - Horacio Quiroga



OS CAÇADORES DE RATOS
Horacio Quiroga
(1879 – 1937)
Tradução de Paulo Soriano


Numa tarde de inverno, as cobras cascavéis, que dormiam estendidas sobre a greda, enrodilharam-se bruscamente quando ouviram o insólito ruído. Como a visão não lhes é particularmente apurada, as víboras mantiveram-se imóveis, enquanto aguçavam os ouvidos.

— É o ruído que faziam aqueles... — murmurou a fêmea.

— Sim, são vozes de homens. São homens — afirmou o macho.

E, passando uma por cima da outra, recuaram vinte metros.  Dali, ficaram espreitando. Um homem alto e louro e uma mulher loura e corpulenta haviam-se aproximado. Falavam entre si, perscrutando os arredores. Depois, o homem mediu o solo com largos passos, enquanto a mulher cravava estaca nos extremos de cada reta. Depois conversaram, apontando ambos para diversos lugares e, por fim, se afastaram.

— Vão viver aqui — disseram as cobras.  — Teremos que ir embora.

Realmente, no dia seguinte, os colonos voltaram com um filho de três anos e uma carroça em que havia camas, caixões, ferramentas soltas e galinhas amarradas às ripas laterais. Instalaram a barraca e, durante semanas, trabalharam o dia todo. A mulher parava para cozinhar e o filho — um ursinho branco, gordo e louro — ensaiava de um lado para o outro o seu infantil andar de pato.

Tal foi o esforço daquelas pessoas que, ao cabo de um mês, já tinham poço, galinheiro e choupana prontos, embora a esta ainda faltassem as portas. Depois, o homem ausentou-se por um dia inteiro, voltando no seguinte com oito bois, e a fazendola começou.

As víboras, entretanto, não se decidiam a abandonar a sua paragem natal. Chegavam sempre às margens do pasto carpido e dali contemplavam a faina do casal. Num entardecer em que a família inteira saíra à roça, as víboras, animadas pelo silêncio, aventuraram-se a cruzar o perigoso páramo e entraram no casebre. Percorreram a choça com cauta curiosidade, esfregando a pele áspera contra as paredes.

Mas ali havia ratos. E, desde então, as serpentes afeiçoaram-se à casa. Chegavam todas as tardes até o limite do pátio e esperavam, atentas, que a choça ficasse deserta. Raras vezes tinham esta sorte.  Além disto, deviam precaver-se das galinhas com pintinhos, cujos berros, se as vissem, delatariam a sua presença.

Deste modo, num crepúsculo em que a longa espera as havia distraído, foram descobertas por uma galinha-d’angola que, depois de manter por instantes o bico em riste, fugiu com as asas abertas, berrando.  As suas companheiras compreenderam, sem ver, o perigo, e a imitaram.

O homem, que voltava do poço com um balde, estacou ao ouvir o alarme. Olhou um momento, e, deixando o balde no chão, se dirigiu ao lugar suspeito. Ao sentir a sua aproximação, as víboras tentaram fugir, mas apenas uma teve o tempo necessário à escapada, e o colono encontrou somente o macho.  O homem olhou rapidamente em torno de si, procurando uma arma, e gritou — os olhos fixos naquele grande rolo escuro:

– Hilda!  Traga-me uma enxada! Depressa!  É uma cascavel!

A mulher correu e entregou, ansiosa, a ferramenta ao marido.

Depois, atiraram longe, para além do galinheiro, o corpo morto, que a fêmea o achou, casualmente, no dia seguinte. Ela cruzou e recruzou cem vezes por cima dele e, por fim, se afastou, indo instalar-se, como sempre, na margem do pasto, esperando pacientemente que a casa ficasse sozinha.

A tarde calcinava a paisagem em silêncio. A serpente havia fechado os olhos amodorrada, quando, de repente, se retraiu vivamente: acabava de ser descoberta de novo pelas galinhas-d’angola que, desta feita, ficaram girando ao seu redor, aos berros e com as asas abertas. A serpente manteve-se quieta, assuntando. Sentiu, de súbito, o ruído de passos — a Morte. Viu que não tinha tempo de fugir e se preparou, com toda a sua energia vital, para defender-se.

Na casa, todos dormiam, menos o menino. Ao ouvir os gritos das galinhas-d’angola, ele apareceu à porta, e o sol abrasivo o fez cerrar os olhos. Titubeou um instante, hesitante, mas, por fim, avançou, com o seu andar de pato, para ver as suas amigas guinés. Na metade do caminho, deteve-se, de novo indeciso, evitando o sol com o braço. Mas as guinés continuavam em seu alarme girante, e o ursinho louro avançou.

De pronto, lançou um grito e caiu sentado.  A víbora, novamente pronta a defender a sua vida, deslizou por dois metros e preparou o bote. Viu a mãe, em anáguas, correr para o filho, levantá-lo, e gritar aterrorizada:

 — Otto, Otto! A serpente o picou!

Viu chegar o homem pálido, e o viu levar em seus braços a criança entontecida. Ouviu a carreira da mulher ao poço, as suas vozes. E, logo depois, após uma pausa, seu grito aterrador:

— Meu filhinho...!


Imagem: Henri Russeau (1844 – 1910)


 


Comentários

  1. Quiroga, outro gênio! E a pintura que ilustra o conto, pintura sombria de Rousseau! Porreta total sombretônica!!!

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