O LOBO - Conto Clássico de Terror - Horace van Offel
O
LOBO
Horace
van Offel
(1876
– 1944)
Um
dia recebi uma carta de Chabannes, pedindo-me que fosse vê-lo e que levasse meu
aparelho fotográfico. Chabannes vivia em uma casa isolada na orla da floresta
de Marly, para os lados de Saint Germain e, embora eu o visse raras vezes,
estimava-o muito. Era um esquisitão, com a mania de viver naquele deserto, e
não vinha a Paris senão para comprar livros e material para caçador. Os que o
não conheciam intimamente, como eu, consideravam-no um desequilibrado. Mas eu
sabia que seu gênio misantropo se formara nos longos anos que ele passara nos
sertões da América do Norte caçando o jaguar e a onça...
Eram
quase três horas da tarde quando cheguei Saint Germain e, como o tempo estava
esplêndido, segui a pé, cantarolando pelo caminho.
Havia
uma paz imponente na floresta, um silêncio majestoso, cortado apenas, de vez em
quando, pelo grito soturno de alguma ave. Mas, quando entrei na zona de
carvalhos, senti o peso dessa majestade com uma sensação física angustiante.
Que
pequeno eu era, no meio daqueles gigantes, que torciam no ar galhos nodosos,
como braços musculosos contraídos numa cólera furiosa! Mas, um pouco adiante,
formou-se um cenário maravilhoso. A folhagem tornou-se leve como uma rede
decorativa e faceira. Era ali que Chabannes vivia em um antigo pavilhão de
caça, que só alcancei já ao anoitecer. O pavilhão estava fechado e silencioso,
dando uma impressão de abandono. Chamei por meu amigo e tive de repetir esse
grito para que ele aparecesse à porta.
Mal
o reconheci, tão velho e abatido me pareceu ali. Havia mesmo um não sei quê de
sinistro em sua fisionomia. Demais, eu sempre o conhecera correto, de uma
elegância um pouco rude, mas que revelava um constante cuidado consigo mesmo.
Agora, via-o vestido como um vagabundo.
Sem
uma palavra, Chabannes fez-me entrar e fiquei estupefato ao ver como estava o
interior de sua morada. Os moveis caíam aos pedaços. Nas janelas, as teias de
aranhas substituíam as costuras e, nas paredes, os espelhos cobertos de pó
refletiam apenas imagens confusas e sombrias. Na sala de jantar, interessei-me
por uma tela pendurada diante do bufê. Mas estava tão estragada pela umidade
que em pouco perdi o interesse de decifrá-la. Mas Chabannes notara minha
atenção e explicou:
—É
um retrato de meu bisavô Louis-Adéodat de Chabannes, que foi monteiro-mor do
rei e famoso perseguidor de lobos. Teve
aventuras que... Mas, primeiramente, vamos jantar.
A
mesa não tinha toalha e os talheres estavam maltratados.
—Vive
aqui sem criados? — perguntei, interdito.
—
Fugiram todos — respondeu ele com um risinho de escárnio. — A floresta enche-se
de pavor... Verdade seja que ela está se tornando maligna. As arvores... Mas,
você não come?...
De
fato, eu não me atrevera a levar o garfo à boca. Achava em meu amigo maneiras
tão estranhas que começava a perguntar a mim mesmo se "os outros" não
teriam razão, julgando Chabannes louco.
Já
era completamente noite e nós comíamos uma miserável refeição de conservas e
pão dormido à luz de uma vela. Essa chama minúscula e vacilante iluminava o
rosto estreito de Chabannes e projetava nossas sombras enormes, reproduzindo
nossos gestos com exagero desordenado. A de Chabannes dominava a minha e seus
cabelos produziam duas sombras em ponta, como duas orelhas móveis e pontudas.
Entrementes,
ele dizia-me:
—
Não quer comer estes cogumelos? Tem medo de que sejam venenosos? Eu como-os
todos sem escolher. De resto, o veneno é um recurso natural e um meio de defesa
de que a floresta se serve muito justamente. A floresta é inteligente e
esperta. Observa o homem e zomba dele. Há de acabar por invadir todo o mundo.
Mas venenos, no sentido em que
entendemos essa palavra, não existem. Algumas plantas sugerem que são
venenosas. Nós acreditamos e morremos de medo. Você não conhece as histórias
dos faquires da índia?
—Que
histórias?
—Esta,
por exemplo: um faquir reúne os fiéis em torno de si e chama o tigre. O tigre
sai do juncal, vem, aproxima-se dele, e deixa-o acariciá-lo. Um dia, um
viajante europeu lembrou-se de fotografar essa cena, que todos viam. Pois bem, no negativo apareceram o faquir e os
curiosos... mas não se via tigre algum. Como explica você isso?
—Hipnotismo
?
—Provavelmente.
O faquir sugere àquela gente que vai ver um tigre e todos veem... Agora ouça. Você
trouxe a máquina fotográfica. Aqui tenho magnésio para fotografar à noite. Vou
lhe explicar o que desejo. Receio estar convencido de que sou um lobisomem.
— Hein?
—
Sim. À noite, há uma força estranha, irresistível, que me obriga a sair o andar
até o amanhecer, correndo pela floresta... Estou convencido de que, durante essas
horas, eu me transformo em lobo... Então, quero que você me fotografe nesse
momento. Se não é verdade...
—
Mas não pode ser verdade — atalhei com indignação. — Você não pode acreditar em
semelhante disparate.
— Espere — murmurou Chabannes, apertando-me o
braço com uma força espantosa. — Não posso ouvir mais. Chegou a hora.
E,
com os cabelos eriçados, a boca cheia de espuma, os olhos exorbitantes, abriu a
porta e desapareceu aos saltos entre as árvores. Quase imediatamente, ouvi um
grito selvagem erguer-se lá fora. Senti um terror tamanho que corri a fechar a
porta e passei-lhe a tranca solidamente. Depois, fiquei refletindo e, pouco a
pouco, recobrei o sangue-frio. Não havia dúvida: o meu pobre amigo estava
louco. Mas que estranha forma tomara sua loucura... Enfim, o que tinha a fazer era esperar que a
crise passasse, depois...
Mas,
de súbito, ouvi arranhar a porta com força. Aproximei-me pé ante pé, e senti o
resfolegar do robusto de animal através das tábuas. Recomecei a tremer, mas
envergonhei-me de dessa fraqueza e, subindo ao sótão, curvei-me à janela.
Um
lobo enorme, horrendo, gigante, estava imóvel diante do pavilhão e seus olhos
chamejantes fitavam-me. Todo o meu terror dissipou-se e eu imaginei um
disfarce, uma fantasia de louco...
—É
boa — resmunguei. — O pobre Chabannes está de fato sofrendo do miolo e pensa
assustar-me com essa mascarada.
Fui
buscar o aparelho. O fulgor do magnésio surgiu de repente e o lobo fugiu.
Pela
manhã, Chabannes entrou esfarrapado, imundo, mas com o olhar cheio de
esperanças.
—Então?
Viu o lobisomem? — perguntou ele com uma expressão de zombaria.
—
Vi e fotografei.
—
Então vamos revelar — disse ele.
E
levou-me a uma câmara escura, que tinha preparado em um cubículo junto à
cozinha.
Esperou,
com impaciência, que eu terminasse a operação. E quando, afinal, lhe entreguei
a fotografia, correu a examiná-la diante da janela. A figura do lobo
destacava-se nítida, perfeita. Chabannes olhou e, atordoado, desabou.
O
médico, que fui buscar em Saint Germain, afirmou que morte fora devido aos
cogumelos comidos na véspera e eu fingi acreditá-lo, embora soubesse que, com
certeza, não era verdade.
Traduzido e adaptado
por autor desconhecido do início do séc. XX. Fonte: Eu sei Tudo, edição de janeiro de 1922.
Conto publicado
originalmente no jornal francês Elxcelsior,
edição de 25 de outubro de 1919.
Imagem: Blingee
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