MANUSCRITO ENCONTRADO NUMA GARRAFA - Conto Clássico de Terror - Conto Fantástico - Edgar Allan Poe
MANUSCRITO ENCONTRADO NUMA GARRAFA
Edgar
Allan Pöe
(1809
– 1849)
Qui n'a plus qu'un moment à vivre - N'a
plus rien à dissimuler.
Quinault[1],
Atys
Da
minha pátria e minha família não tenho grande coisa a dizer. Seu mal proceder e
a acumulação dos anos tornaram-me estranho a uma e a outra. Meu patrimônio
fez-me possuidor de uma educação pouco comum e um giro contemplativo da
imaginação tornou-se apto para classificar metodicamente todo esse material de
instrução amontoado diligentemente por um estudo precoce. As obras de autores
alemães, sobretudo, proporcionaram-me grande satisfação, e isso não provinha de
uma errada admiração por sua eloquente loucura, e, sim, pelo prazer que
encontrava, graças aos meus costumes de rigorosa análise, em surpreender seus
erros. Houve quem condenasse com frequência a aridez do meu gênio; acusaram-me
de possuir pouca imaginação, é o pirronismo das minhas opiniões fez com que me
tornasse famoso. Na realidade, temo que um forte apetite pela filosofia física
haja impregnado meu espirito de um dos defeitos mais comuns do século:
refiro-me ao costume de relacionar com os princípios dessa ciência até as
circunstâncias menos suscetíveis de serem com eles relacionadas. Ninguém estava
menos exposto que eu para deixar-se arrastar fora da severa jurisdição da
verdade pelos fogos-fátuos da superstição. Considerei necessário esse preâmbulo
ante o temor de que o incrível relato, que vou fazer, seja considerado o
frenesi de uma imaginação indigesta, para o qual sempre mostrei muito pouca
inclinação.
Depois
de alguns anos empregados em uma grande viagem, embarquei em 18..., na Batávia,
da rica e populosa ilha de Java, para dar um passeio pelo arquipélago das ilhas
de Sonda. Pus-me em caminho como passageiro, pois não tinha outro móvel que uma
nervosidade que me torturava como um espirito mau.
Nosso
barco era um navio de quatrocentas toneladas, forrado de cobre e construído em
Bombaim com madeira de Malabar. Ia carregado de algodão, de lã e de azeite de
manteiga cozida, nozes de coco e algumas caixas de ópio. A estiva havia
trabalhado mal na arrumação da carga e o barco ressentia-se pendendo para um
dos lados.
Pusemo-nos
à vela com pouco vento e durante alguns dias estivemos em frente à costa
oriental de Java, sem outro incidente para quebrar a monotonia da nossa rota
que o encontro com alguns dos pequenos escolhos do arquipélago a que estávamos
confinados.
Uma
tarde, quando me achava encostado junto à amurada, observei que havia no
Noroeste uma nuvem de cor indistinta e de aspecto estranho. Era de notar tanto
pela sua cor, como por ser a primeira que víamos desde a nossa saída da
Batávia. Vigiei-a atentamente até o pôr do Sol, momento em que estendeu
subitamente de Leste a Oeste, rodeando o horizonte com um claro cinturão do
vapor e apresentando-se como se fosse uma larga e baixa linha de costa.
Imediatamente atraiu minha atenção a cor roxa obscura da lua e a particular
feição do mar, que se apresentava mais transparente que de costume. Podia-se
ver claramente o fundo e, no entanto, ao deitar a sonda, encontramos quinze
braças de profundidade. Com a noite, caiu a brisa, e encontramo-nos em meio à
calmaria mais completa que se pode imaginar. A chama de uma lanterna, que luzia
na popa, e que oferecia certas tremuras ao sopro do vento, estava absolutamente
imóvel, e um cabelo seguro entre o polegar e o indicador não oscilava.
Entretanto, como o capitão não notara nenhum perigo, e como derivávamos
obliquamente para a terra, o imediato deu ordem de levantar as velas e de
largar a âncora. Não se pôs vigia de quarto e a tripulação, que se compunha
principalmente de malaios, deitou-se deliberadamente em seus lugares. Eu desci
ao meu camarote com o pressentimento absoluto de uma desgraça. Aqueles sintomas
me faziam temer um tufão. Falei de meus temores ao comandante, mas ele não
prestou atenção ao que eu lhe dizia e me deixou sem se dignar a me responder.
Isto me aborreceu de todos os modos, impedindo-me de dormir. E ao bater da meia-noite,
não podendo dominar a minha agitação subi ao convés com o intuito de refrescar
o meu rosto afogueado pela ansiedade. Quando punha o pé no último degrau da
escada, assustou-me um profundo rumor, parecido com o que produz a rotação
rápida de uma roda de moinho, e antes que eu pudesse comprovar a causa, senti
que o navio trepidava e não estava de todo controlado. Quase imediatamente um
golpe de mar jogou o barco de lado e, passando por cima de tudo, varreu o navio
de popa à proa. A extrema fúria do vento foi em grande parte a sorte do nosso
barco. Sob a pressão intensa da tempestade, o navio esteve durante algum tempo
completamente coberto pela água, tendo todos os seus mastros pequenos
submersos, e, depois de estalar todo, retornou a uma posição mais segura,
influenciada, porém, pela situação terrível que acabava de atravessar.
Seria
impossível dizer por que milagre eu havia escapado à morte. Caí aturdido pelo
choque provocado pela água e, quando voltei a mim, encontrei-me entre as
amarras e o timão. Com grande trabalho pus-me em pé e, olhando rapidamente a
meu redor, assaltou-me a ideia de que estávamos sobre arrecifes, pois era
horrível o torvelinho daquele mar enorme e espumoso em que estávamos situados.
Poucos momentos após levantar-me, ouvi a voz de um ancião sueco que embarcara
quase no momento de levantarmos ferro. Chamei-o com todas as minhas forças e
ele veio cambaleando até chegar junto de mim na popa. Logo compreendemos que
éramos os únicos sobreviventes do sinistro. Tudo que estava sobre o convés,
exceto nós, fora varrido pelas ondas revoltas. O capitão e os marinheiros
tinham perecido durante o sono. Sem auxiliares, não podíamos fazer grande coisa
pela segurança do navio, e nossas tentativas ficaram paralisadas pela certeza
de que íamos naufragar de um momento para outro. O cabo do navio havia se
partido, como se fosse um cordão, logo que começou a tormenta. O mar nos
haveria tragado instantaneamente se tal não se desse. As águas arrastavam-no
com grande força, fazendo-lhe brechas visíveis. A armação da popa sofrera
fortes danos e quase que todo o casco apresentava consequências, mas, com
grande alegria, verificamos que as bombas não estavam obturadas e que a nossa
carga não sofrera muitas transformações.
Havia
passado a maior fúria da tempestade e já não tínhamos que temer a violência do
vento; mas pensávamos, com temor, na possibilidade de que este cessasse, persuadidos
de que com aquelas avarias não poderíamos resistir à espantosa ondulação que
viria depois.
Cinco
noites e cinco dias inteiros, durante os quais vivemos de alguns pedaços de
açúcar de palma arrancados, com grande trabalho, da carga arrumada no porão da
popa, corríamos com violência incalculável, arrastados pelas rajadas de vento
que se sucediam rapidamente, ainda que sem a primeira força do tufão. Durante
os quatro primeiros dias, nossa rota sofreu ligeiras variações, Sudeste quarto
de Sul, e nos haveria levado às costas da Nova Holanda.
No
quinto dia, o frio se fez intensíssimo e o vento mudou um pouco para o Norte.
Saiu o sol com um resplendor amarelo e enfermiço, elevando-se apenas uns graus
sobre o Equador, sem projetar qualquer luz por pequena e sem brilho que fosse.
Nenhuma nuvem havia e, no entanto, o vento refrescava e de vez em quando
soprava com fúria. Às 12 horas pouco mais ou menos, chamou-nos a atenção
novamente, o aspecto do sol. Não emitia luz propriamente falando, senão uma
espécie de fogo escuro e triste sem reflexo, como se todos os raios estivessem
polarizados. No momento de mergulhar no mar cada vez mais grosso seu fogo
central, desapareceu de súbito, como se houvesse sido apagado bruscamente por
um poder inexplicável. Não era mais que uma roda pálida e prateada quando se
refugiou atrás do oceano insondável.
Esperamos,
em vão, a chegada do sexto dia. Esse dia não chegou ainda para mim e para o
sueco nunca chegará. Desde aquele momento, fomos envoltos por umas trevas tão
espessas que não conseguíamos ver um objeto a vinte passos do navio. Envolveu-nos
uma noite eterna, que não suavizava nem a luminosidade fosfórica do mar que
tínhamos costume de ver nos trópicos. Observamos também que ainda a tempestade
continuava a se fazer sentir, sem que houvesse, no entanto, ressaca, tendo a
marola, que nos acompanhava há tanto, desaparecido. Ao nosso redor, não havia
mais que a espessa obscuridade, assemelhada a um deserto de ébano liquido. Um
temor supersticioso se filtrava por graus nas nossas almas. Tínhamos abandonado
completamente o cuidado do barco como coisa mais do que inútil, e, atando-nos o
melhor possível ao pau da mesa, passávamos com amargura nossos olhares sobre a
intensidade do oceano. Não conseguíamos calcular o tempo, sendo absolutamente
incerta a nossa situação. Devíamos ter-nos aproximado mais do Sul que nenhum
dos navegantes anteriores e era grande o nosso espanto por não termos
encontrado os habituais obstáculos de gelo tão comum a essas paragens. Cada
minuto ameaçava ser o último e toda onda grande parecia terminar o nosso
suplício. Meu companheiro falava da leveza da carga que carregávamos e me
recordava as excelentes qualidades do nosso navio. Mas eu não podia impedir-me
de sentir a absoluta renúncia do desespero e melancolicamente me preparava para
a morte que, segundo minha opinião, podia demorar no máximo uma hora, posto que
a cada avanço do barco, mais lúgubres me pareciam as ondas escuras daquele mar
terrível.
Às
vezes, numa altura superior à dos albatrozes, faltava-nos a respiração;
noutras, éramos dominados pela vertigem de descer com terrível velocidade num
inferno liquido onde o ar estava lúgubre e onde nenhum som podia turbar os
sonhos do kraken[2].
Estávamos
no fundo de um destes abismos quando um grito súbito de meu companheiro ressoou
sinistramente na noite.
—Veja!
Veja! — gritou-me ao ouvido. —Deus poderoso! Veja! Veja!
Enquanto
falava, vi eu uma luz roxa de brilho sombrio que pairava pendente sobre o
abismo imenso em que estávamos presos, projetando um reflexo vacilante sobre o
nosso barco. Ao levantar a vista, contemplei um espetáculo que me gelou o
sangue: a uma altura aterradora, precisamente em cima de nós e sobre a mesma
crista de precipício, achava-se um navio gigantesco, de quase quatro mil
toneladas. Ainda que elevado por uma onda que tinha cem vezes a sua altura,
parecia de dimensões muito maiores que qualquer navio da Companhia das índias.
Seu casco enorme era de um negro profundo, que não concordava com a
ornamentação de nenhum navio. Uma fileira simples de canhões aparecia em seus
flancos abertos e lançavam de suas superfícies polidas reflexos de inumeráveis
faróis de combate que se balançavam no cordame. Mas o que nos inspirou maior horror
e assombro foi o fato de navegar com todas as velas abertas, a despeito daquele
mar sobrenatural e daquela tempestade desenfreada. A princípio, não nos foi
dado ver mais que a sua popa, porque se elevava lentamente do horrendo
precipício que acabara de deixar. Durante um momento — momento de intenso
terror —, fez uma parada sobre aquele cimo de vertigem como que embebedado por
sua própria elevação. Logo tremeu, inclinou-se e por fim desceu furiosamente.
Naquele instante não sei que sangue frio dominou-me o espirito. Lançando-me
para trás o quanto me foi possível, esperei a catástrofe que vinha nos
aniquilar. Nosso navio, por outra parte, não lutava mais com o mar e se
afundava de popa. O choque daquela massa precipitada golpeou o nosso casco na
parte que ficava sob à água e teve como resultado inexplicável jogar-me ao
tombadilho do navio estrangeiro.
Quando
eu caía, o navio se aprumou e virou de bordo, e, à confusão que se seguiu, devo
o fato de não ter sido notado pela tripulação. Não me custou muito trabalho
abrir caminho, sem ser visto, até a escotilha principal que, estava meio aberta,
e logo encontrei um bom esconderijo. Por que fiz isto? Não poderei dizer. O que
me induziu a ocultar-me foi, talvez, um vago sentimento de terror que se
apoderou de mim ante o aspecto dos passageiros do estranho navio. Não me
decidia a confiar em uma raça que, de um relance, me havia oferecido um aspecto
de indefinível estranheza. Por isso julguei a propósito esconder-me num lugar
próprio do porão.
Mal
tinha terminado de esconder-me, quando um homem passou bem por cima de meu
esconderijo, com passos débeis e inseguros. Trepei na escada para espiar e,
apesar de não ter visto o seu rosto, consegui divisar-lhe o aspecto geral.
Tinha todos os característicos da debilidade e da caducidade. Os joelhos
vacilavam sob o peso dos anos e todo o seu ser tremia. Ia falando consigo
mesmo, murmurando, em voz baixa e rouca, palavras de um idioma que não pude compreender,
e dirigiu-se para um canto onde estavam apinhados instrumentos de estranhos
formatos e cartas marinhas destroçadas. Seus movimentos eram uma esquisita
mescla de displicência de uma segunda infância e da dignidade solene de um
deus. Depois, subiu ao tombadilho e perdi-o de vista.
*
Um
sentimento, para o qual não encontro palavras, apoderou-se de minha alma; uma
sensação que não admite análise; que não tem tradução no léxico do passado nem
do presente. Para um espírito constituído como o meu, esta última consideração
é um suplício. Sinto que jamais conseguirei estar de acordo com as ideias que
então me dominaram o espírito. Existia algo dentro de mim que tinha nascido
havia pouco.
*
Faz
já algum tempo que pisei, pela primeira vez, a ponte deste terrível navio, e
creio que os raios do meu destino estão ligados todos àquele lugar que ocupo
desde então. Gente incompreensível a que me rodeia! Envoltos numa meditação
cuja natureza não posso adivinhar, passam ao meu lado sem sequer notar-me. Não
preciso me ocultar, pois, esta gente "não quer ver". Continuarei este
diário, mesmo que não tenha meios para levá-lo ao mundo. Mesmo que não acredite
que tal surta o resultado — isto é, que cheguem a ler o que escrevo —, nos meus
últimos momentos encerrarei o manuscrito em uma garrafa, atirando-a no mar.
*
Ocorreu
um incidente que me obriga de novo, a refletir. Semelhantes coisas são a consequência
de uma casualidade indisciplinada? Passei ao tombadilho e me estendi, sem
chamar a atenção de ninguém, sobre um montão de velas postas de lado como
imprestáveis. Pensava no meu destino diferente quando, tocando num objeto que
estava a meu lado, notei que nele estava escrita a palavra "descobrimento".
Tenho
estudado bem a estrutura do navio. É feita de materiais que me são
desconhecidos. Não tenho conseguido mais nada que se pudesse ligar com o nome
que me chamou a atenção. O barco está bem armado e, no entanto, não acredito
que seja um navio de guerra. Cada vez fico mais admirado ante as suas dimensões
enormes, sua grande quantidade de velas, sua proa severamente simples e sua
popa de estilo antiquado. Tenho de vez em quando a sensação de que tudo o que
me cerca pertence a velhas lendas estrangeiras e a séculos que se perderam no
passado.
*
A
armadura do barco tem sido alvejada pela minha curiosidade. Tudo me parece desconexo,
como se o madeiramento não fosse adequado à construção naval. Refiro-me à sua
extrema porosidade, aparte a podridão ocasionada pela velhice. Tive a ideia de
que a madeira era de cedro espanhol, mas, a não ser que o cedro de Espanha ceda
e se dilate por processos artificiais, não se justifica. a minha impressão.
Relendo
a frase precedente vem-me à memória o curioso dizer de um velho lobo do mar
holandês: "Isto é possível — dizia quando dele se duvidava —, como também
é possível que haja um mar onde navios engordem com o corpo vivo de seus
marinheiros".
*
Faz
aproximadamente uma hora que me senti com atrevimento para deslizar num grupo
de tripulantes. Não pareceram notar-me sequer, e mesmo, quando me pus no meio
deles, pareceram não ter consciência alguma de minha presença. Igual ao
primeiro que vi, apresentavam todos sintomas de velhice. Seus joelhos tremiam
de debilidade; seus ombros arqueados pela decrepitude; suas peles enrugadas
estremeciam ao vento; suas vozes eram roucas; de seus olhos brotavam as
lágrimas brilhantes da velhice, e os cabelos brancos flutuavam na tempestade. Ao
redor deles, a cada lado, jaziam instrumentos matemáticos de estrutura antiga e
completamente desusados.
Falei
há pouco de uma pequena vela que tinham estendido. Desde aquele momento, o
navio, perseguido pelo vento, não cessou a sua terrível carreira em linha reta
para o Sul, navegando com toda a vela disponível. A rapidez era algo que jamais
poderá ser descrito, pois o barco parecia vez em quando submergir, tal era a
força que o impulsionava. Acabo de deixar o tombadilho por não encontrar nele
lugar onde possa estar com relativa segurança e, no entanto, a tripulação
parece não ter notado o perigo iminente de naufrágio ou despedaçamento. Para
mim, é o maior dos milagres o fato de esta enorme massa não ter sido ainda
tragada pelas ondas enfurecidas. Estamos condenados, sem dúvida, a navegar
eternamente naquele inferno liquido, não sabendo a que atribuir não termos
ainda sido esfacelados. Suponho que o navio deve estar preso a uma corrente
estranha, que jamais o largará, ou a um redemoinho submarino.
Acabo
de ver de frente o capitão em sua própria cabine e, como já esperava, não
prestou nenhuma atenção à minha pessoa. Ainda que não tenha nada em sua
fisionomia que revele o homem superior ou inferior, experimenta-se ante seu
aspecto uma mescla de respeito e terror irresistível. É mais ou menos de minha
estatura, quer dizer, cinco pés e oito polegadas. É bem proporcionado, mas sua
constituição não anuncia nada de particular quanto a vigor ou fraqueza. É a
singularidade de sua expressão o que mais torna o seu tipo inconfundível. Sua
fronte, mesmo que pouco enrugada, leva o selo de milhares de anos. Seus cabelos
brancos são como arquivos do passado, e seus olhos mais brancos ainda são
visões do porvir. O assoalho de sua cabine estava cheio de aparelhos
científicos muito usados e de antigos mapas de estilo completamente esquecido.
Tinha a cabeça apoiada nas mãos e, com olhar ardente e inquieto, devorava um
papel que me pareceu uma ordem, pois levava uma firma régia. Falava consigo
mesmo e eu tinha a impressão que a sua voz chegava de uma milha de distância. O
navio, com tudo o que contem, está impregnado do espirito de antigas idades. Os
homens da tripulação deslizam como sombras de séculos enterrados; em seus olhos,
vive um pensamento ardente e inquieto, e quando passam por mim, e vejo as suas
mãos velhíssimas, experimento uma sensação inexplicável que nunca tinha
sentido. Eu, que sou um apaixonado pelas antiguidades, sinto-me invadido por
tal desconforto que considero a minha alma como um montão informe de ruínas.
*
O
navio está inteiramente sepultado nas trevas de uma noite eterna e num caos de
água que já não tem espuma. Mas à distância de uma légua a cada lado,
conseguimos perceber claramente, e por intervalos, prodigiosas muralhas de gelo
que sobem para o céu desolado e parecem muralhas do universo.
*
Como
tinha pensado, evidentemente o navio está em uma corrente, se se pode chamar
assim a uma maré que vai mugindo através das brancuras do gelo e deixa ouvir
sob o lado sul um trovão mais precipitado que o de uma catarata que cai verticalmente.
*
Conceber
o horror de minhas suposições é, creio, coisa absolutamente impossível. No
entanto, a curiosidade de penetrar os mistérios destas espantosas regiões
domina meu desespero e chega para me reconciliar com o mais repugnante aspecto
da morte. É evidente que nos precipitamos para um descobrimento desconhecido,
algo de secreto intimamente ligado à morte.
Talvez
esta corrente nos conduza ao Polo Sul. Há de se confessar que esta suposição,
por estranha que seja, tenha a seu favor inúmeras possibilidades.
*
A
tripulação passeia pelo tombadilho com passos trêmulos e inquietos, mas há em
todas as fisionomias uma expressão que melhor parece o ardor da esperança que a
apatia do desespero. Levamos sempre o vento em popa e, como temos grande
quantidade de velas, o navio se eleva, às vezes, extraordinariamente sobre o
mar. Oh, horror dos horrores! De repente o gelo se abre à esquerda e à direita,
girando vertiginosamente em círculos concêntricos ao redor das bordas de um
gigantesco anfiteatro, cujos muros se perdem nas trevas. Mas resta-me muito
pouco tempo para pensar no meu destino! Os círculos se estreitam rapidamente,
nós somos envolvidos pelo redemoinho, e através do mugido e das detonações do
oceano, o navio treme, o navio arfa e finalmente afunda.
Tradução
de autor desconhecido do séc. XX.
Fonte:
“Vamos Ler!”, edição de 21 de maio de 1942.
[1] Philippe
Quinault (1636 – 1688), dramaturgo francês. “A quem resta apenas um instante de
vida – Nada mais há a dissimular”. (N. do E.)
[2] Monstro
marinho da mitologia nórdica.
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