TARDE DE TRABALHO ATÍPICA - Conto de Terror - Hedjan C.S.



TARDE DE TRABALHO ATÍPICA
Por Hedjan C.S.


Araújo, parado na calçada oposta, observou o prédio. Era o que costumavam chamar de conjunto habitacional. Devia haver uns 20 apartamentos em cada andar. Roupas e tapetes estendidos nas janelas ajudavam a piorar a fachada coberta de pichações e infiltrações. Resmungando baixo atravessou a rua, tendo o cuidado de esperar uma moto com três pessoas equilibradas passar a toda velocidade.

Antes de entrar, lançou um olhar para seu carro. Era verde e tinha o nome e o logotipo de sua empresa, Cosméticos Naturais Borboletas, nas portas e no capô. Mesmo assim, julgando pela vizinhança, considerou que nem isso afastaria um provável ladrão de carros.

Caminhou pelo saguão precariamente iluminado. Apesar da luz do dia, lá dentro a sujeira e as lâmpadas fluorescentes queimadas colaboravam para que a escuridão reinasse. Caminhou até o porteiro, um jovem atarracado que olhava o celular.

—Boa tarde. Gostaria de falar com o senhor Hildebrando. Apartamento 818. Meu nome é…

O porteiro não levantou os olhos do aparelho.

— Elevador no final do corredor — disse com clara má vontade.
Araújo agradeceu, apesar da vontade de arrancar o celular das mãos do homem, e seguiu na direção indicada. Hoje em dia ninguém dava valor ao seu trabalho.

Estava de mau humor. Sentia vontade de esganar alguém, literalmente. Mas não qualquer um. O alvo de sua raiva era bem definido: Góis.
Apertou o botão do elevador, que chegou ao térreo se arrastando. A porta pantográfica rangeu preocupantemente quando se abriu. Apertou o botão redondo com o número 8. Reparou que alguém havia colado chiclete no número 7. Ele não devia estar ali. Devia estar no escritório recebendo os relatórios de vendas por torpedo e agendando novas visitas.

Enquanto o elevador subia irritantemente devagar, voltou a ruminar seu ódio. Góis! O talzinho tinha menos de três meses na firma. Mesmo assim conseguia vendas espetaculares e caíra nas graças dos chefes. Só que Araújo nunca se enganou com ele. Como supervisor via além do que seus vendedores exibiam em seus rostos sorridentes. Via nos olhos do cretino a esperteza de um trapaceiro diplomado, só esperando para passar uma rasteira em algum colega ou na própria empresa. Além das outras coisas. O cabelo pintado de louro quase branco; a mania irritante de mascar chicletes mesmo durante as vendas; os flertes inadequados com a clientela feminina; as mangas da camisa social arregaçadas para mostrar a tatuagem, uma frase em latim: Audaces fortuna juvat. A sorte favorece os corajosos. Podia substituir o ‘corajosos’ por ‘oportunistas irresponsáveis’.

Duas semanas atrás ele saíra para fazer três visitas: uma no centro da cidade, uma na zona sul e outra no subúrbio. Depois disso, sumira. O mais estranho de tudo: os cheques das vendas do dia chegaram à firma pelo correio. O endereço do remetente era o de um terreno abandonado.

O elevador parou com um tranco no oitavo andar e 10 centímetros abaixo do nível da porta. Araújo pulou para fora e fez uma nota mental: descer de escadas.

Seguiu pela esquerda, obedecendo à placa que dizia “do 810 ao 820”. O corredor combinava com o prédio de maneira magnífica. Escuro, sujo e fedorento. Passou por uma porta aberta, a do 810, e viu alguns homens sem camisa jogando cartas em uma mesa baixa. Ouviu o choro de um bebê ao passar pelo 812. Um homem e uma mulher discutiam aos gritos e ao som de copos se quebrando no 815. Tocou a campainha do apartamento 818.

Esperou alguns segundos. Sentiu um barulho às suas costas e reparou que o morador do apartamento em frente, o 817, abrira uma fresta na porta e o espiava. Não conseguiu descobrir se era homem ou mulher por causa da escuridão lá dentro. Tocou novamente.

A porta do 818 se abriu, fazendo com que Araújo desse um salto.

Um homem gorducho e baixo o olhava. Usava óculos de aros redondos e tinha uma barba branca. O cérebro de Araújo pensou incoerentemente que ele daria um excelente Papai Noel.

— Boa tarde, em que posso ajudá-lo?

Araújo olhou para trás ao ouvir a porta do 817 se fechar com um baque.

— Boa tarde. Meu nome é Araújo e trabalho na Cosméticos Naturais Borboletas. Queria falar com o senhor Hildebrando. Estou procurando informações sobre um dos nossos empregados que…

Uma porta no corredor foi aberta e um homem saiu correndo do apartamento. Uma mulher de camisola saiu atrás dele, segurando uma garrafa quebrada em uma das mãos.

— Volta aqui, covarde! Volta pra eu te matar!

Alguns moradores saíram dos seus apartamentos para ver a cena. Alguns riam.

— É melhor entrarmos, meu filho. Aí fora não é seguro.

Araújo nem pestanejou. Notou que alguns moradores o encaravam e arrependeu-se de estar usando uma gravata.

O homem de barba fechou e passou duas trancas na porta. Olhou para Araújo e disse, como se pedisse desculpas:

— Vizinhança difícil. Já foi melhor… Vamos para a sala. Na minha idade ficar muito tempo de pé não é bom. A propósito, eu sou Hildebrando — apertou a mão de Araújo.

Seguiram por uma cozinha impecavelmente arrumada e chegaram a uma sala que destoava completamente do resto do prédio. As paredes brancas combinavam com a limpeza dos móveis e da sala. Araújo não pode conter uma exclamação de admiração. Hildebrando sorriu satisfeito. Indicou um sofá enquanto se sentava com um gemido reumático em uma poltrona.

— Não costumo receber muitas visitas. O prédio não ajuda. Mas tento manter a casa em ordem. O senhor quer beber algo?

— Não, obrigado. O senhor mora aqui sozinho? — Araújo ainda estava impactado pelo contraste. Parecia que tinha dormido e acordado em outro lugar.

— Desde que meu cachorro morreu. Faísca… Um bom cachorro. Mas enfim, o senhor disse algo sobre procurar alguém…

— Sim, verdade. — Araújo tirou um caderninho do bolso da camisa, só pra tentar mostrar mais profissionalismo. O ódio gravou em fogo todos os detalhes e informações daquela situação em sua mente. — Estou procurando um de nossos vendedores. O nome dele é Góis. Duas semanas atrás ele sumiu depois de sair para fazer algumas visitas. Além da casa do senhor, outras duas visitas estavam agendadas para aquele dia. Estou visitando os endereços pra saber se descubro algo. Já visitei os dois outros clientes. O senhor é o último.

— Esse dia foi na quinta-feira? Dia 15?

— Foi sim. O senhor se lembra dele?

— Lembro sim… Ele chegou aqui umas 16h… Tinha acabado de terminar a novela — riu encabulado — Vocês tinham me ligado na segunda-feira para saber se eu poderia receber a visita. Marcaram para quarta, mas eu só podia na quinta… Tinha médico marcado. Acho que foi por isso que o Silas não veio… Geralmente ele é o vendedor que me visita.

— Sim, geralmente o contato é feito dois dias antes. Nossas concorrentes costumam ligar no dia da visita, o que nós consideramos falta de respeito…

— Concordo. As pessoas estão perdendo as boas maneiras. Diga-me… Esqueci seu nome.

— É Araújo.

— Esse vendedor que veio aqui… Ele já estava com vocês há muito tempo? Pergunto isso porque hoje em dia existem muitas pessoas que vivem de aplicar golpes… Vocês acham que ele fugiu com o dinheiro das vendas ou que algo grave aconteceu?

— Bom… Ele era um bom vendedor apesar de estar a pouco tempo conosco… E realmente ele conseguiu fechar todas as vendas daquele dia. Meu chefe acha que algo aconteceu. E também a garota que ele namorava. Ela aparece na firma todo dia querendo saber se ele apareceu. Já acionaram a polícia, percorreram os hospitais e o I.M.L. e nada. Nem eu sei o que pensar…

Hildebrando pareceu notar a hesitação de Araújo. Olhou-o com simpatia.

— Eu realmente comprei várias coisas do seu vendedor. Gosto do xampu para barba e do Bálsamo para pernas cansadas. Sou cliente de vocês desde sempre… Por isso me senti mal agora… Estou usando um produto que não foi pago. Estou certo?

— Não vim aqui para cobrar o senhor, Sr. Hildebrando. É só porque eu preciso dar uma resposta pro meu chefe. Não sei exatamente que resposta, mas ele quer um relatório sobre minhas visitas, os horários em que eu estive aqui e o que descobri… Sinceramente, acho tudo perder tempo... Mas sou o supervisor dos vendedores e uma ordem é uma ordem. Além disso, recebemos os cheques pelo correio… O endereço do envio era falso, mas os produtos estão pagos.

— Trabalhar com vendas sempre me pareceu fascinante… E desgastante. Já tive muitos empregos, mas nunca fui vendedor. Me aposentei quando trabalhava na ferrovia. Mas comecei em um curtume… Trabalhei em uma farmácia… Depois fui alfaiate… Li em algum lugar que é uma profissão fadada ao desaparecimento — deu uma risada. — Estou divagando… Coisas da idade. Venha comigo até o meu escritório. Vou preparar um cheque. Mas não pelos produtos que já foram pagos, mas pelo fato do senhor ter vindo a esse pardieiro pelo bem do seu trabalho. Duvido que receba adicional de periculosidade.

— Senhor Hildebrando, isso não tem cabimento… Não posso aceitar dinheiro do senhor sem motivo… — mas Hildebrando já se levantara.

Araújo o acompanhou protestando. O velho apenas ria, divertido.

O escritório era outro deleite para os olhos. O papel de parede imitando madeira de jatobá dava um ar acolhedor. Vários livros com lombadas estrangeiras povoavam as prateleiras. Hildebrando sentou-se em uma grande mesa de madeira de lei e tirou um talão de cheques da gaveta.

Araújo admirava os itens no escritório. Foi quando notou uma porta parcialmente oculta por uma tapeçaria. Hildebrando notou seu olhar:

— É a porta do outro apartamento. Com a indenização que recebi quando me aposentei como ferroviário pude comprar o apartamento aí do lado que estava vazio. Precisava de espaço… Um pedreiro daqui mesmo fez o serviço pra mim. Homens solitários precisam de hobbies…  Guardo meu material de costura e outras coisas aí do lado.

— O senhor costura roupas?

— Roupas, capas de sofá, chinelos… Também faço remendos em roupas pra ajudar alguns vizinhos mais necessitados. E gosto de criar. Está vendo aquilo? — indicou um abajur de chão quase do seu tamanho perto de uma poltrona de leitura. – Eu fiz a cúpula. Pele de carneiro.

Araújo olhava fascinado. A cor era maravilhosa. Tocou a peça, apreciando a textura.

— Perdoe-me… Esqueci meus óculos no quarto. Já volto.

Enquanto Hildebrando saía, Araújo parou em frente a um armário com portas de vidro. Lá dentro algumas miniaturas e itens feitos com o que parecia ser pele de animais dividiam espaço. Um par de luvas, uma carteira e o que parecia ser um estojo de óculos.

Hildebrando voltou para o escritório.

— Desculpe, não acho meus óculos… O estojo sumiu… Odeio quando isso acontece…

— Não são esses aqui? — perguntou Araújo, abrindo o armário e pegando o estojo. Fechou a porta distraidamente enquanto girava o objeto nas mãos, maravilhado. — Essa textura é diferente… Tem uma cor muito bonita… Pele de cabra?

— Não exatamente. — A voz soou fria dessa vez.

Araújo parou. Olhava o estojo tentando processar o que via. Finalmente notou a mão de Hildebrando estendida, esperando o estojo. Araújo o entregou para Hildebrando.

Colocando os óculos, Hildebrando preencheu o cheque. Entregou-o ao Araújo.

— Espero que isso cubra os problemas causados. Não me entenda mal, mas notei que é bem diferente dele — pegou Araújo pelo braço gentilmente e o conduziu pelo apartamento. — Percebi que o senhor é honesto… Dedicado à firma… Podia facilmente ter aceitado meu cheque sem mencionar que o valor já tinha sido restituído. Seu funcionário tentou me roubar… Eu o deixei alguns segundos no escritório e o vi revirando uma das minhas gavetas… Na certa procurando dinheiro para furtar. A juventude de hoje não tem respeito por mais nada… O senhor entende.

Pararam em frente à porta do apartamento.

— Estejam à vontade para marcar mais visitas… Pode ser o Silas, por exemplo… Mas evitem me mandar trapaceiros. Não gosto desse tipo de gente na minha casa… Sou apenas um homem velho indefeso que mora sozinho.

Abriu a porta, apertou a mão de Araújo, que caminhou como um zumbi para o elevador, esquecendo sua própria nota mental.

Já dentro do carro, deu a partida no motor e ficou com as mãos no colo, ainda segurando o cheque, encarando o para-brisa e pensando em Góis, em sua desonestidade e no que devia ter encontrado.

O estojo definitivamente não era feito de pele de cabra. Cabras não possuem tatuagens em latim.


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