O POÇO E O PÊNDULO - Conto Clássico de Horror - Edgar Allan Poe
O POÇO E O
PÊNDULO
Edgar
Allan Pöe
(1809
– 1849)
Eu
estava alquebrado pelas torturas materiais e morais suportadas durante o
longuíssimo interrogatório e o ainda mais longo processo. Por isso, quando
afinal me soltaram da polé a que estivera pendurado pelos polegares, deixei-me
cair sobre o banco de pedra e tive a impressão de que todos os sentidos me
abandonavam.
A
sentença — a terrível sentença de morte — foi a última frase que ouvi distintamente.
Depois, o som da voz dos inquisidores diluiu-se para mim em um zumbido confuso,
que produzia em meus ouvidos o efeito de uma rotação, porquanto a única ideia
que trazia a meu cérebro era a de estar ouvindo a roda de um moinho.
Mas
isso pouco durou, porque ao fim de alguns instantes nada mais ouvi.
O
último sentido que conservei até o fim foi o da visão, mas com horrendas
deformações! Via os lábios dos frades-juízes, mas via-os brancos, mais brancos
do que o papel sobre o qual estou escrevendo. E finos... finos como esse mesmo
papel, afinados pela expressão de dureza, de crueldade implacável e de infinito
desprezo pela dor humana. Eu via os decretos do Destino escoar em por esses
lábios: via esses lábios contorcidos pela palavra "morte", e pelas
sílabas de meu nome.
E
estremeci porque o som não acompanhava o movimento desses lábios. Vi, também,
em alguns instantes de delírio, a mole e quase imperceptível ondulação das
cortinas negras que revestiam as paredes da sala.
Então,
como a vibração de uma nota musical rica e sonora, insinuou-se em meu espírito
a ideia do repouso delicioso que nos espera no túmulo Essa ideia me veio tão
doce e furtivamente que precisei de algum tempo para ter dela uma apreciação
completa. Mas, no momento em que ela começava a me embalar o espírito, as
figuras dos juízes desvaneceram-se, as trevas me cercaram e todas as minhas
sensações desapareceram como se houvessem mergulhado subitamente no Hades. E,
então, o silêncio, a calma e a escuridão resumiram todo o universo para mim.
Eu
desmaiara, mas, nem assim, perdera completamente os sentidos. E o pouco que
conservava em vão tentarei definir.
Em
meus esforços desesperados e teimosos para reavivar a memória, em minha ardente
aplicação para reunir as migalhas desse estado de aniquilamento em que minha
alma naufragara, lembro-me, apenas, em sombras de recordações sem nitidez alguma,
de que grandes e frios vultos me ergueram e transportaram, silenciosamente,
para baixo — para baixo, mais para baixo ainda e sempre para mais baixo, até
que horrível vertigem apagou toda luz de meu pensamento, à só ideia da
perpetuidade dessa descida. Depois — muito mais tarde, por certo —, tive uma
primeira sensação, a de bolor e umidade; além disso, tudo era demência — a
demência de uma memória que se debatia entre horrores.
Bruscamente,
recobrei a consciência do movimento e do ruído, o movimento tumultuoso de meu
coração e, em meus ouvidos, o ruído de suas pancadas. Depois, a simples
consciência da existência — mas sem
pensamento. E esse estado durou horas.
Enfim, repentinamente, o pensamento...
um terror arrepiante e uma enérgica tentativa para compreender minha situação.
Depois, um violento desejo de recair na completa insensibilidade e um despertar
impetuoso de minha consciência. Esforço-me para me mover e consigo-o. Então,
recordo-me do processo, dos juízes, das cortinas sombrias, da sentença, do
mal-estar, do desfalecimento...
Até
então, eu não abrira os olhos. Tinha a impressão de estar deitado de costas, e
sem laços que me prendessem. Estendi a mão e ela caiu, pesadamente, sobre
qualquer cousa úmida e dura. Deixei-a ficar assim, esforçando-me por imaginar
onde poderia estar e o que de mim fora feito.
Estava
ansioso por fazer uso de meus olhos, mas não o ousava. Temia meu primeiro olhar
sobre os objetos, que podiam estar em torno de mim: não que receasse ver coisas
terríveis, mas é que estava obcecado pela ideia de que não havia nada a ver.
Finalmente,
com o coração estrangulado por uma selvagem angústia, abri rapidamente os
olhos. Confirmava-se o que eu conjecturara de pior. As trevas da noite eterna
cercavam-me. Foi-me necessário grande esforço para respirar. Sentia a
intensidade das trevas pesarem sobre mim, sufocando-me. A atmosfera estava
insuportavelmente pesada.
Fiquei
estendido, sem ousar outro movimento e apelei para todas as forças de meu
raciocínio. Rememorei os modos de agir da Inquisição e, desse ponto de partida,
tratei de deduzir qual podia ser minha situação presente. Deveria ter decorrido
muito tempo desde que a sentença fora pronunciada. Todavia, não me veio ao
espírito, um só instante, que eu pudesse estar efetivamente morto. Uma tal
suposição, malgrado tudo o que pretendem as obras de imaginação, é
absolutamente inconciliável com a existência real. Mas onde estava eu e em que
situação?
Sabia
que os condenados à morte pela Inquisição pereciam, habitualmente, nas
fogueiras e que uma dessas cerimônias teria lugar na própria noite de meu
julgamento. Teria eu sido, novamente, recolhido ao meu calabouço, para nele
esperar o sacrifício, que só seria celebrado ao fim de alguns meses? Compreendi,
imediatamente, que isso era inverossímil. As vítimas disponíveis tinham sido
requisitadas imediatamente.
Além
do mais, meu antigo calabouço, como das as celas dos condenados, em Toledo,
tinham selo de pedra e a luz não era totalmente exilada dele.
Bruscamente,
um pensamento atroz atacou meu espírito, fazendo refluir o sangue, em ondas
quentes, a meu coração e por algum tempo mergulhei mais uma vez na
insensibilidade.
Logo
que recuperei os sentidos, pus-me de pé num salto, enquanto um tremor
convulsivo sacudia todo o meu corpo. Estendi precipitadamente os braços acima e
abaixo de mim, em todas as direções. Nada encontrei. Entretanto, não ousei dar
um passo, temendo esbarrar nas paredes de um túmulo. O suor escorria de todos
os meus poros e juntava-se em minha fronte em enormes gotas geladas.
Mas
acabei por não mais suportar essa agonia de dúvida. Dei um passo à frente, com
grande precaução, braços estendidos e olhos desmesuradamente abertos,
procurando captar o menor raio de luz. Dei vários passos, porém tudo era
trevas.... Respirei mais livremente, porque me pareceu evidente que, pelo
menos, a sorte mais horrenda entre todas não me fora reservada.
Então, enquanto continuava em minha marcha
circunspecta, vieram-me em tumulto, à memória, os mil beatos vagos que tinham
curso sobre as atrocidades da Inquisição em Toledo. A respeito de seus
calabouços, circulavam estranhas narrações — que eu sempre considerara — de
fábulas tão estranhas... e tão horríveis, que eram contadas em voz baixa.
Estaria eu destinado a morrer de fome no mundo das trevas subterrâneas? Ou qual
outra sorte, talvez mais terrível ainda, me esperava? Que o termo fosse a morte
e que essa morte fosse de uma atrocidade fora do comum, eu o imaginava, posto
que tivera tempo bastante para estudar o caráter de meus juízes. O modo e hora
dessa morte eram minha única preocupação, todo o meu tormento.
Finalmente,
minhas mãos estendidas se chocaram com um obstáculo resistente.
Era
uma parede, que parecia feita com grandes pedras. Seguia-a de perto, com as
desconfiadas precauções, que me eram sugeridas pela recapitulação das estranhas
narrativas. Esse processo, no entanto, não me permitia de forma alguma avaliar
as dimensões de meu calabouço, porque eu podia dar uma volta completa e chegar
de novo ao ponto de partida, sem o perceber, tanta uniformidade apresentava a
muralha.
Procurei
a faca, que se encontrava em meu bolso, no momento em que me introduziram na
sala dos inquisidores. Não a possuía mais: tinham substituído toda a minha
roupa por um burel de sarja grosseira. Meu primeiro pensamento fora o de
enterrar a lâmina em alguma fissura da parede para marcar meu ponto de partida.
Acabei resolvendo rasgar uma tira de meu burel e depositei-a no sentido de seu
comprimento, perpendicularmente à muralha.
Tateando
para procurar meu caminho ao longo da muralha, eu devia, inevitavelmente, ao
terminar a volta, encontrar essa tira de fazenda. Era, pelo menos, o que eu
pensava; mas não contara com a vastidão de minha cela e com a extrema fraqueza
de meu corpo. O solo era úmido e escorregadio. Caminhei por algum tempo, titubeando,
depois tropecei e caí.
Minha
fadiga excessiva fez com que eu ficasse prostrado e não tardei a adormecer
nessa posição.
Ao
despertar, estendendo o braço, encontrei do meu lado um pão relativamente macio
e um cântaro cheio de água. Com o corpo demasiadamente dolorido para poder
refletir sobre esse fato, bebi e comi avidamente. Pouco depois, recomecei a
caminhar e, não sem grande esforço, cheguei, finalmente, à tira de sarja. No
mento de minha queda, eu já havia contado cinquenta e dois passos e, depois que
recomecei a marcha lenta e difícil, contei ainda quarenta e oito, até encontrar
o ponto de partida. Isso fazia um total de cem passos. À razão de dois passos
para um metro, concluí que o calabouço tinha uma circunferência de cinquenta
metros. No entanto, como eu encontrava muitos ângulos, não podia fazer uma
ideia exata da sua configuração.
Deixei
de me interessar por essas investigações. Mas uma curiosidade confusa
incitava-me a prossegui-las. Abandonando a muralha, resolvi fazer a travessia
da superfície circunscrita. A princípio, caminhei com prudência extrema, porque
o solo, embora parecesse feito de matéria consistente, era recoberto por um
pérfido lençol de água. Ganhei, entretanto, alguma coragem, conseguindo
caminhar com algum desembaraço, esforçando-me por avançar em linha reta. Dei,
desse modo, dez ou doze passos para a frente, quando o incômodo burel,
entravando meus pés, provocou minha queda. Caí rudemente, batendo com o queixo
no chão.
Na
confusão que se formou em meu espírito, não notei logo um detalhe interessante.
Porém, alguns segundos depois, tive minha atenção voltada para ele. Foi, o
seguinte: meu queixo repousava sobre o solo de minha prisão, mas os meus lábios
e a parte superior de meu rosto não tinham contato com coisa alguma. Ao mesmo
tempo, minha fronte parecia banhada exalações nauseabundas, e um cheiro
característico de cogumelos podres quase me sufocou. Estendi os braços e
estremeci ao verificar que era sobre o rebordo de um poço circular que eu tinha
caído! Naturalmente, eu não podia, no momento, determinar as dimensões desse
poço. Mas, tateando suas bordas, pude destacar uma pedra de regular dimensões e
deixei-a cair.
Durante
alguns segundos, prestei ouvidos ao ruído de seus choques reiterados contra as
paredes do poço, e ela acabou por mergulhar na água com um ruído sinistro,
seguido de ecos ressonantes. Quase ao mesmo tempo, ouvi, acima de minha cabeça,
um ruído de porta, que abriam rapidamente para tornarem a fechá-la, no mesmo instante,
enquanto um frágil raio de luz perfurava as trevas para morrer logo em seguida.
Compreendi,
então, qual era aquela a sorte, que me fora preparada, e felicitei-me pelo
acidente que me salvara.
Se
tivesse dado mais um passo antes de cair, minha queda teria sido mortal.
Entretanto, a morte da qual eu me livrara apresentava esse caráter que me
levara a taxar de imaginárias as narrações que faziam da Inquisição.
Tremendo
fortemente, voltei a me encostar à parede, decidido a morrer preso e ela e não
mais afrontar o terrível poço. Em outra disposição de espírito, eu teria
acabado de uma vez com tais tormentos, atirando-me ao abismo. Mas, naquele
momento, eu era o último dos covardes. Não podia esquecer, também, o que me
fora dado ler a respeito desse poço, a saber: que a extinção repentina da vida
era uma eventualidade que os Inquisidores não podiam admitir em suas horríveis
concepções. A agitação de meu espírito manteve-me alerta por longas horas,
depois adormeci novamente. Despertando encontrei junto de mim, como da primeira
vez, um pão e um novo cântaro cheio de água. Minha sede era ardente e traguei
logo toda a água. Esta devia conter narcótico violento, pois, apenas a engoli,
fui tomado de invencível necessidade de dormir. Um sono profundo pesou sobre
mim, semelhante ao sono da morte. Qual foi sua duração? Não posso dizer. Mas,
ao despertar, verifiquei que os objetos que me cercavam eram agora visíveis. Um
brilho estranho, sulfuroso, cuja origem foi-me impossível determinar no primeiro
momento, permitia-me limitar a extensão e aspecto de minha prisão. Enganara-me
e muito a respeito de suas dimensões O circuito total das paredes não podia
exceder vinte e cinco jardas. Isso lançou-me em grande confusão — confusão bem
vã, porque entre as terríveis conjecturas de que me via cercado, nenhum outro
detalhe poder ter menor importância do que este. Mas meu espírito fica
profundamente impressionado por esse fato e tentei descobrir o que me levara a
errar tanto! Finalmente a verdade surgiu. Em meu primeiro esforço de exploração
do recinto, eu fizera cinquenta e dois passos, até minha primeira queda. Eu
devia estar, então, a um ou dois passos da tira de sarja e, na verdade, já dera
uma volta completa ao longo da muralha. Mas foi então, que, vencido pela
fadiga, adormeci e, ao despertar, voltei, sem dúvida, sobre meus passos, o que
me fez contar duplamente a extensão do circuito real. A desordem de meu cérebro
impedira-me de observar que a parede ficava à esquerda, ao iniciar a marcha e,
à direita, quando a terminei.
Errara,
igualmente, quanto à forma do recinto. Era quase quadrado e suas paredes
pareciam ser de ferro ou qualquer outro metal, em vastas placas, ostentando
pinturas que representavam símbolos medonhos, figuras demoníacas. E notei que
essas monstruosidades ofereciam contornos bastante nítidos, mas que as cores
pareciam antigas e apagadas pela umidade ou pelo tempo. No meio do solo, o poço
escancarava sua horrível boca! Tudo isso eu vi de modo impreciso e não sem
esforços, porque, enquanto dormira, eu fora amarrado, de costas, sobre um
estrado muito baixo. Braços e pernas estavam atados por meio de uma longa
correia. Esta se enrolava em torno de meus membros e de meu busto, deixando
livres apenas minha cabeça e meu braço esquerdo. Mesmo assim, eu tinha de fazer
penosos esforços para alcançar os alimentos colocados em um prato de barro, no
chão, junto do estrado. Olhei para cima e considerei o teto de minha prisão.
Ficava dez a quinze metros acima de minha cabeça e dele pendia um pêndulo formidável,
como os dos antigos relógios. O aspecto desse instrumento oferecia, entretanto,
uma particularidade, que fez com que eu o examinasse com mais atenção: pareceu-me
estar em movimento.
Pouco
depois, essa aparência se transformou em certeza. Sua oscilação era curta e
naturalmente lenta; observei-o durante alguns segundos com certa apreensão,
mas, principalmente, com surpresa.
Afinal,
cansado de seguir seu movimento monótono, observei os outros objetos da cela.
Um
frágil ruído despertou minha atenção e, olhando para baixo, vi vários e grandes
ratos correndo de um para outro lado. Enquanto eu assim os observava, eles se
aproximavam em fileiras cerradas, precipitadamente, olhinhos ávidos, atraídos
pelo cheiro de carne.
Foram-me
precisos, para afugentá-los, muitos esforços e atenta vigilância.
Havia
passado uma meia hora ou uma hora no máximo (porque eu tinha do tempo noção
muito imperfeita), quando dirigi novamente meus olhos para o alto.
O
que vi, então, fez saltar meu coração. A oscilação do pêndulo aumentara cerca
de uma jarda. Naturalmente, sua velocidade aumentara também.
Porém,
o que mais me perturbou foi verificar que ele “descera sensivelmente”! Notei
então — é inútil dizer com que terror — que sua extremidade inferior era
constituída por uma espécie de meia lua de aço luzente, com cerca de trinta
centímetros de comprimento, de uma a outra ponta. Essas pontas estavam voltadas
para cima e o rebordo inferior aparecia cuidadosamente afiado como uma navalha;
e, como uma navalha, parecia maciço e pesado, engrossando acima do fio até a
parte superior, que era larga e sólida. Estava suspenso por uma sólida corrente
e assobiava em seu rápido movimento oscilatório.
Não
duvidei por mais tempo do destino que me fora preparado pelo engenho cruel dos
monges. Os agentes da Inquisição, certamente, sabiam que eu descobrira a
existência do poço. E já que eu não me precipitara nele, tinham me preparado
uma morte diferente.
De
que servirá descrever as longas, longuíssimas horas de angústia mais que
mortal, passadas com os olhos desmesuradamente abertos, contando as oscilações
da lâmina de aço? Polegada a polegada, linha a linha, sua descida só era
sensível a intervalos que a mim pareciam séculos. Mas sua aproximação era
contínua. Mais baixo! Sempre mais baixo! Horas se passaram, muitas horas
talvez, antes que ele me ameaçasse de muito perto a ponto de me secar o suor
com sua ventilação. Implorei aos céus, importunei-os com minhas preces, rogando
que a lâmina descesse mais depressa.
Depois,
tive um novo período de completa insensibilidade. Foi breve, porque, ao
recuperar os sentidos, não notei progresso apreciável na descida do pêndulo.
Mas talvez tenha sido longa, porque havia, sem dúvida, algum demônio que
espionava meus desfalecimentos e, para que eu não perdesse um só instante o
espetáculo da sinistra oscilação, esse mesmo demônio talvez tenha detido o
movimento do pêndulo durante meu desmaio. Recuperando os sentidos, minha
primeira sensação foi de fraqueza intensa, causada por uma longa inanição.
No
meio daquela agonia atual, a humana natureza reclamava alimento. Com grande
trabalho, esforcei-me por estender o braço esquerdo tão longe quanto me
permitiam as voltas da correia e apoderei-me das poucas migalhas abandonadas
pelos ratos. Quando levava um pedaço à boca, uma ideia brilhou em meu cérebro,
uma ideia louca talvez, mas alegre e cheia de esperança.
Mas
era uma ideia imperfeita... Em vão tentei completá-la... A longa duração de meu
sofrimento quase aniquilara os recursos ordinários de minha inteligência. Eu
estava como que idiotizado.
A
oscilação do pêndulo efetuava-se em um plano perpendicular ao comprimento de
meu corpo. Verifiquei que a meia lua afiada estava disposta de modo a
atravessar a região do coração. Roçaria pela sarja de meu burel, depois
voltaria ao mesmo lugar e, outra vez e outra mais...
Nos
primeiros minutos, não poderia contar senão meu burel. Depois... Não ousei
refletir mais... Não quis pensar no contato da lâmina atravessando minha roupa
e depois...
Tive,
então, um acesso de delírio. Alternativamente ria e urrava, segundo a ideia
predominante na desordem de meu cérebro.
Mais
baixo, regularmente, inexoravelmente mais baixo! Ele oscilava agora a menos de
três polegadas de meu peito.
Mais
baixo... mais baixo ainda! Eu arquejava e me debatia a cada oscilação.
Convulsivamente, a cada passagem do pêndulo eu me encolhia todo.
E
eis que, no meio desse desespero, a ideia inteira se me oferecia fraca, apenas
constituída, entretanto... já completa! Sem tardar, com a nervosa energia do
desespero, comecei a tentar sua realização.
Havia
já mais de uma hora, as imediações da plataforma sobre a qual eu estava
estendido formigavam de ratos. Turbulentos, atrevidos, vorazes, fixavam sobre
mim seus olhinhos rubros, como se esperassem apelas minha imobilização para
fazer de meu corpo sua presa. A que alimento estarão habituados neste poço! —
pensei.
Malgrado todos os meus esforços para os
impedir, eles haviam devorado o conteúdo do prato, fora algumas migalhas. Para
mantê-los à distância, eu balançara maquinalmente minha mão, em um movimento de
vaivém, acima do prato. Mas a inconsciente uniformidade desse movimento acabara
por torná-lo ineficaz. Com o que me restava ainda de carne gordurosa, untei
todos os laços que me prendiam, até onde minha mão pôde alcançar. Depois, ergui
a mão acima do solo e fiquei quieto, contendo a respiração.
Primeiramente,
os ferozes animais ficaram assustados com a cessação do movimento... e fugiram!
Mas foi só por alguns instantes. Eu não contara em vão com sua voracidade.
Vendo que eu não me mexia mais, um ou dois entre os mais audaciosos escalaram a
plataforma e farejaram a correia. Foi como um sinal para o assalto geral.
Reforços surgiram do poço. Treparam sobre mim, às centenas...
O
movimento regular do pêndulo não os atrapalhava. Desviavam-se dele e atacavam
em massa cerrada a correia engordurada. Empurravam-se, saltavam sobre mim, em
número cada vez maior. Pisaram meu rosto, seus lábios frios procuravam os meus.
Eu estava quase esmagado sob essa multidão.
Um
minuto ainda e verifiquei que meu suplício ia terminar. Senti nitidamente o
afrouxar da correia. Sabia que em mais de dez pontos estava estraçalhada. E com
firmeza sobre-humana mantive-me imóvel.
Minhas
previsões não me haviam enganado; eu nada sofrera. Senti que estava livre. A
correia caía ao longo de meu corpo...
Mas
já o pêndulo roçava por meu peito. Cotara a sarja de meu burel: atravessara o
tecido de linho, que o forrava... Duas vezes mais tornou a passar e uma
sensação atroz percorreu todos os meus nervos. Mas o momento de me libertar
chegara.
A
um gesto brusco de minha mão, meus libertadores se dispersaram em tumulto. Com
movimento seguro e prudente, esgueirei-me de lado, lentamente.
Mal
deixei a minha horrível cama de madeira e pisei sobre as lajes, o movimento
diabólico do instrumento se deteve e eu o vi atraído por alguma força invisível
teto a dentro.
Quase
no mesmo instante houve lá fora uma confusão de ruídos e vozes fortes de
homens.
Uma
porta se abriu e um braço estendido me amparou no momento em que eu tombava,
desfalecido de emoção.
Era o braço do general
Lassalle. As tropas francesas tinham entrado em Toledo. Agora era a Inquisição
que estava em poder de seus inimigos.
Tradução de autor desconhecido do século XIX. Texto
publicado originalmente em Eu Sei Tudo,
Rio de Janeiro, edição de novembro de 1929. Fizeram-se breves adaptações
textuais.
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