O HÓSPEDE - Conto Clássico de Horror - Lúcio de Mendonça
O HÓSPEDE
Lúcio
de Mendonça
(1854
– 1909)
Ele
aí está, que o diga o Oliveira, aquele rapagão de bigode louro e olhar azul,
que viajou como caixeiro de cobranças, "cometa", e hoje é repórter.
Por sinal que foi a última viagem de cobrança que fez, e de tão horrorizado
mudou de vida e profissão. Foi ele mesmo quem me referiu o caso. Aqui o dou
pelo custo, sem nada meu.
Ao
cair de uma tarde chuvosa de março, chegava o cobrador, extenuado e faminto, a
uma vendola à beira da estrada, da longa estrada fastidiosa, pelos campos, que
vai de Alfenas ao Machado, no sul de Minas.
Junto
à venda havia a casa de morada, pequena, tosca e suja, dum velho casal
português, que ali se fixara e vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada
nas suas terrinhas, e os furtos trazidos à noite pelos escravos da vizinhança.
Pousada, não era costume dar-se ali; Alfenas ficava a uma légua, e os donos da
casa diziam despachadamente que aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira,
o caso era especial: trazia já as suas oito léguas bem puxadas e uma fome de
carrapato, e depois, com tanta carga d'água, não havia meio de continuar
viagem. Pediu pousada e ceia, pagando eu — acrescentou.
—
Ceia, arranja-se-lhe — disse o Zé Manuel, o taverneiro velho; lá a cama é que
está mais difícil, que não recebemos hóspedes para dormir.
E
com o olhar consultava a mulher, a mulheraça, anafada e pachorrenta, aboborada
para dentro do balcão.
—
Não, por isso não seja — opinou ela. — Dá-se-lhe o quarto do Jequim...
—
Bem lembrado — concordou o vendeiro. — Temos ali assim um quarto agora
desocupado, que é o de nosso rapaz, que anda por fora; lá para o Carmo do Rio
Claro; tem cama e colchão, que é o preciso para dormir... Se lhe serve...
—
Serve, serve — aceitou logo o Oliveira. — E deem-me alguma coisa que se coma;
estou morto de fome!
Enquanto
se punha a janta, desarretou a besta, guardou os arreios no quarto que lhe
destinaram, contíguo à saleta da frente e com janela para a estrada; levou o
animal ao pasto, um pastinho fechado, muito perto; e voltou para cuidar de si.
Antes,
porém, de sentar-se à mesa, onde já fumegava o feijão com couves e a
canjiquinha, pediu que lhe trouxessem uma peneira.
—
Uma peneira! Ora essa!
—
É cá para uma precisão!
Trouxeram-lha,
e ele então sacou do bolso das calças um maço de dinheiro em papel, uma bolada
de notas úmidas da chuva que apanhara, e estendeu pelo crivo da taquara as
cédulas grandes, de duzentos, de cem, de cinquenta mil réis, uma boa meia dúzia
de contos. Passou a peneira para a ponta da mesa a que não chegava a toalha, e
entrou a servir-se da ceia no prato de louça azul, com a colher de ferro.
Ao
levar à boca uma colherada, surpreendeu à porta da saleta o olhar aceso com que
lhe comiam o estendal das notas, a velha portuguesa, que o servia, e o marido,
que entrava com uma garrafa de vinho.
Tão
cobiçoso era o olhar de ambos, que coou na alma do rapaz um frio de medo e um
clarão de pressentimento. Logo, ali mesmo, resolveu acautelar-se, arrependido
da imprudência de ter mostrado tanto dinheiro.
Acabando
de cear, declarou que muito cedo, ao romper do dia, seguia para Alfenas, e por
isso deixava paga a hospedagem; deram-lhe a boa-noite e recolheu, com uma vela
de sebo, ao quarto do Joaquim.
Mal
se viu só, tratou de ajuntar as notas que espalhara na peneira, tornou a
enfiá-las no bolso, e apenas a casa sossegou em silêncio, ali por volta da
meia-noite, saltou pela janela com os arreios e a mala à cabeça, foi ao
pastinho fechado, selou a besta e tocou para a cidade, ao belo clarão da lua
que despontava.
Nem
bem se perdera ao longe o estrupido da besta que levava o cobrador, quando novo
tropel de animal soou no terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do
lombilho abaixo e em três tempos desarreou o cavalo em que veio e com um chupão
nos beiços apinhados tocou-o para o campo.
—
Diacho! minha janela aberta! — murmurou consigo. —
Melhor! Entro sem precisar bater e acordar os velhos a esta hora.
E,
agarrando-se com o braço direito ao peitoril da janela, saltou para dentro,
levando na outra o lombilho, o baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a
janela, que o frio não era graça.
À
alta madrugada, quando começava a amiudar o canto dos galos, dois vultos,
cautelosos, sorrateiros, surdiram do interior da saleta da frente; um deles, o
mais alto impeliu de manso a porta, apenas cerrada, e penetrou no quarto.
Da
cama, ao fundo, ouvia-se a respiração compassada e forte de um bom sono
ferrado. Aproximou-se o vulto, guiado pelo resfolegar do que dormia e pela
tênue claridade que vinha da saleta, onde o outro vulto, agachado e trêmulo,
sustentava e velava com a mão encarquilhada um candeeiro de azeite.
Súbito,
no silêncio da habitação, soaram, soturnas, repetidas, machadadas rápidas, uma,
duas, três, muitas, regulares a princípio, depois desatinadas.
—
Anda! traze a luz! — estertorou uma voz estrangulada.
Entrou
no quarto o outro vulto, a velha gorda, com a candeia acesa.
Apenas
a luz bateu na cama, numa horrível massa de roupas e carnes ensanguentadas,
dois gritos sufocados misturaram o seu horror:
—
O Jequim!!!
—
O filho!! O meu rapaz!!
Fora,
na estrada deserta, voejavam os bacuraus, como almas penadas.
Achei o texto legsl
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