OS QUE NÃO SABEM QUE ESTÃO MORTOS - Conto Clássico Sobrenatural - Amado Nervo
OS QUE NÃO SABEM QUE ESTÃO MORTOS
Amado
nervo (1870 – 1919)
Tradução
de Paulo Soriano
—
Os mortos — dissera-me várias vezes um velhinho espírita, amigo meu, e eu, de
minha parte, havia encontrado, várias vezes também, a mesma observação em
minhas leituras —, os mortos, meu senhor, não sabem que morreram.
Ignoram
tal condição até certo tempo, quando o espírito caridoso a revelem, para
liberá-los definitivamente das misérias deste mundo.
Geralmente,
acreditam que ainda padecem da enfermidade de que morreram. Queixam-se, pedem
remédios... Estão como que em uma espécie de adormecimento, de bruma, dos quais
se vai desprendendo pouco a pouco a divina crisálida da alma.
Os
menos puros, os que morreram mais apegados às coisas, vagam em torno de nós,
presas de um desconcerto e de uma desorientação extremamente angustiantes.
Sentem
dores, fome, sede, exatamente como se estivessem vivos, tal qual o amputado
sente que possui e ainda lhe dói um membro amputado.
Falam
conosco, interpõe-se em nosso caminho e se desesperam ao notar que não o vemos
e nem fazemos caso deles. Então,
creem-se vítimas de um pesadelo e se esforçam por despertar.
Mas a impressão mais poderosa — bem assim a
mais próxima — é a de que ainda os aflige aquele que os matou.
E,
com efeito, numa tarde em que, por curiosidade, assisti a certa sessão espírita,
pude comprová-lo.
Era
uma médium falante (vocês sabem bem
que há médiuns auditivos, videntes, materializadores etc.). As almas dos mortos
se serviam de sua boca para conversar com os presentes, pois ela repetia exatamente
as palavras dos defuntos.
Devo
advertir — a fim de que não lhes pareça ilógico, nem o que vou relatar aparente
estar em contradição com o que disse — que não é preciso que um morto saiba que
está morto para falar ou agir por interposição de um médium.
Nesse
torpor a que antes me referi, os espíritos recentemente desencarnados rondam os
vivos, e instintiva, maquinalmente, quando encontram um médium, aproveitam-se
dele para se comunicarem, assim como um viajante, malgrado fora de si, também
por instinto se aproveita de uma ponte para chegar ao outro lado do rio.
Começou,
pois, a sessão, sem que se apagassem as luzes, e a médium caiu em transe.
Momentos
depois, exclamava:
—
“Estou ferido! Socorram-me”, e apertava, com ambas as mãos, o flanco direito.
—
Quem é você? — perguntou quem presidia a sessão.
—
“Sou Valente Martínez e me feri aqui, na Pracinha do Carmo. Feriram-se à traição. Estou sangrando...
Levantem-me.”
E
na face da médium perpassavam ondas de dor e agonia.
Muitos
dos que estavam ali presentes experimentaram uma grande surpresa, porque, de
fato, nos jornais da última semana falava-se com riqueza de detalhes do
assassinato de Valente Martínez, cometido, aleivosamente, por um ciumento.
Assim, pois, a sessão tornava-se interessante.
—
“Levantem-me!” — prosseguia, com a inflexão lastimosa, a médium. — “Estou
sangrando. É uma falta de caridade me deixar assim, estirado numa pracinha...”
—
Você está enganado — insinuou então o que presidia à sessão. Acredita estar
ferido e abandonado na rua. Mas, na realidade, você está morto!
—
“Morto! Eu?” — exclamou a médium com lentidão dolorosa. —“Morto! Digo-lhes que
estou ferido.”
E continuava a apertar
o flanco.
—
Você está morto e muito bem morto. Morreu de uma punhalada na última
quinta-feira. No hospital de San Lucas.
A médium se
impacientava:
—“É
uma falta de caridade deixa-me aqui, estendido como um cão! Como um cão, sim,
no meio da rua!”
E se retorcia em sua
cadeira.
— Então — perguntou o presidente
da sessão —, você ainda insiste que está vivo?
— “Sim. E muito ferido!
Ajudem-me a levantar. Não sejam tão Cruéis!”
— Pois eu vou provar a
você que está mesmo morto. Você, o que é: homem ou mulher?
— “Que pergunta mais
idiota! Cloro que sou homem!”
— Tem certeza disto?
A médium fez um
movimento de contrariedade:
— Se estou certo
disto? Mas que ideia é essa?
— Bem, então toque o
seu rosto e o seu peito.
A médium levou a mão
direita às faces e uma expressão de indizível pasmo se desenhou em seu rosto:
Valente Martínez (que, segundo os retratos dos diários, era barbudo) se
apalpava imberbe...
A
mão trêmula pousou, em seguida, no lábio superior, procurando o bigode ausente.
Depois, mais trêmula ainda, desceu ao peito e, ao perceber a túrgida carne dos
seios, a médium deixou escapar um grito gutural, horrível, enquanto que suores
frios molhavam a sua fronte, lívida de tortura, em que se lia o supremo espanto
da convicção...
Seguiu-se um silêncio
muito longo, durante a qual a médium, imóvel, murmurava coisas incompreensíveis,
com lábios convulsos. Por fim, o presidente disse:
— Você está vendo agora
que está bem morto! Por caridade, eu o desenganei, para que não pense mais nas
coisas da terra e procure elevar o seu espírito a Deus.
— “Tem razão...” —
murmurou penosamente a médium.
Em seguida, depois de
uma pausa, suspirou:
— “Obrigado!”
E não disse mais
palavra até sair do transe.
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