O ESTRANHO - Conto Clássico de Terror - Ambrose Bierce


O ESTRANHO
Ambrose Bierce
(1842 —1914)
Tradução de Renato Suttana


O homem saiu da sombra para o pequeno círculo de luz de nossa fogueira e se sentou numa pedra.

—Vocês são os primeiros a explorar esta região —disse.

Ninguém retorquiu a essa declaração. A prova do que dizia era ele mesmo, que não pertencia ao nosso grupo e devia estar por perto quando acampamos. Mais: devia ter companheiros nos arredores, pois aquele não era lugar para se viver ou viajar sozinho. Por mais de uma semana só tínhamos visto, além de nós mesmos e de nossos animais, pequenos seres como lagartos e sapos de chifres. Num deserto do Arizona não se coexiste por muito tempo apenas com essas criaturas: precisa-se de ter animais de carga, suprimentos, armas —“equipamento”, enfim. E tudo isso implica camaradas. Houve dúvida quanto ao tipo de homens a que pertenceriam os camaradas desse estranho que aparecera sem cerimônia, bem como, em suas palavras, qualquer coisa tão impenetrável quanto um desafio, o que fez com que nossa meia dúzia de “aventureiros” se sentasse, com as mãos nas armas, numa atitude que significaria, dada a hora e o lugar, ostensiva expectação. O estranho não prestou atenção e começou a falar de novo no mesmo tom deliberado e monótono com que pronunciara a primeira frase:

—Trinta anos atrás Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis —todos de Tucon —atravessaram as montanhas Santa Catalina em direção a oeste, avançando tanto quanto a configuração do território o permitiria. Fazíamos prospecção, e nosso intuito, se não achássemos nada, era seguir até o rio Gila, num ponto próximo de Big Bend, onde supúnhamos haver um assentamento. Tínhamos um bom equipamento, mas nenhum guia —só Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

O homem repetiu os nomes devagar e com nitidez, como se para gravá-los na memória da audiência, cujos membros agora o observavam atentamente, mas com uma ligeira apreensão quanto à possibilidade de haver companheiros ocultos na treva que nos enclausurava como uma parede negra. Na atitude desse historiador voluntário não havia sugestões de qualquer propósito inamistoso. Seus modos eram mais os de um lunático inofensivo do que os de um inimigo. Nem estávamos tão desacostumados ao campo para ignorarmos que a vida solitária de muito camponês tem uma tendência a desenvolver excentricidades de conduta e de caráter que nem sempre se distinguem da aberração mental. Um homem é como uma árvore: na floresta dos seus semelhantes, ele crescerá tão reto quanto sua natureza genérica e individual o permitir. Sozinho, em lugar aberto, cederá às pressões e às torções deformadoras que o envolvem. Alguns desses pensamentos me vieram enquanto eu observava o sujeito através da sombra de meu chapéu, puxado para baixo a fim de quebrar a luz do fogo. Um pobre imbecil, sem dúvida, mas o que estaria fazendo ali, no coração do deserto?

Tendo empreendido contar esta história, gostaria de poder descrever a aparência do homem, o que seria natural. Infelizmente —ou estranhamente —não me acho em condições de fazê-lo com segurança, pois mais tarde nem sequer dois de nós concordaríamos quanto ao que ele vestia e quanto à sua aparência. E, quando tento ajuntar minhas impressões, elas me escapam. Qualquer um pode contar histórias; a narração é uma das forças elementares da raça. Mas o talento para a descrição é um dom.

Como ninguém quebrasse o silêncio, o visitante prosseguiu:

—Esta região não era o que é agora. Não havia sequer um rancho entre o Gila e o Golfo. Havia alguma caça aqui e ali nas montanhas, e perto dos raros olhos d’água havia grama suficiente para impedir que os animais morressem de fome. Se tivéssemos a boa sorte de não encontrar índios, podíamos ir passando. Mas, dentro de uma semana, o objetivo da expedição mudou da descoberta de riquezas para a preservação da vida. Tínhamos ido longe demais para podermos retornar, pois o que estivesse à frente não seria pior do que o que ficara para trás. Então continuamos, viajando à noite, para evitar os índios e o calor intolerável, e nos escondendo durante o dia, tanto quanto pudéssemos. Às vezes, depois de esgotar nossas reservas de carne selvagem e de esvaziar nossos cantis, passávamos dias sem comida e sem água. Então um olho d’água ou um poço raso no fundo de um arroio restauravam de tal maneira nossas forças e nossa sanidade que nos sentíamos em condições de matar os animais silvestres, que também os procuravam. Às vezes era um urso, outras um antílope, um coiote, um puma —o que Deus provesse: tudo era alimento.

“Certa manhã, quando batíamos uma linha de montanhas, procurando por alguma passagem, fomos atacados por um bando de apaches que seguiram nossa trilha até uma ravina, não muito longe daqui. Sabendo que seu número era de dez para um contra nós, abandonaram suas costumeiras precauções de covardia e caíram sobre nós a galope, atirando e gritando. Lutar estava fora de questão: picamos nossos fracos animais através da ravina, até onde houvesse piso para os cascos; apeamos e subimos até o chaparral de um dos sopés, abandonando todos os nossos pertences ao inimigo. Mas conservamos nossos rifles, cada um de nós —Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

—O mesmo povo de sempre —disse o humorista de nosso grupo. Era um homem do Leste, pouco familiarizado com as observâncias mais decentes do convívio social. Um gesto de desaprovação de nosso líder o fez silenciar; e o estranho prosseguiu com sua história:

—Os selvagens desmontaram também, e alguns deles subiram pela ravina, avançando para além do ponto onde a tínhamos deixado, cortando qualquer retirada por aquela direção e forçando-nos para o flanco. Infelizmente o chaparral se estendia só por uma curta distância sopé acima, e quando chegamos à parte aberta no alto recebemos o fogo de doze rifles. Mas os apaches atiram mal quando estão com pressa, e Deus providenciou para que nenhum de nós fosse atingido. Umas vinte jardas para o alto, no sopé, além da linha da vegetação, havia despenhadeiros verticais, em meio aos quais se via, bem à frente, uma estreita abertura. Corremos para ela, desembocando numa caverna pouco mais larga do que um cômodo comum de residência. Aqui, por algum tempo, estivemos a salvo: um único homem com um rifle de repetição poderia defender a entrada contra todos os apaches do lugar. Mas contra a fome e a sede não tínhamos defesa. Coragem ainda tínhamos, mas a esperança era só uma reminiscência.

“Nem um só desses índios nós vimos mais tarde; mas pela fumaça e pelo fulgor de suas fogueiras na ravina sabíamos que dia e noite eles nos vigiavam, com os rifles prontos, na extremidade do mato. Sabíamos que se tentássemos alguma coisa nenhum de nós viveria para dar três passos além da abertura. Durante três dias, revezando a guarda, nos aguentamos, até que o sofrimento se tornou insuportável. Então —era a manhã do quarto dia —Ramon Gallegos disse:

“—Señores, não sei muito sobre o Deus bom ou sobre o que agrada a Ele. Vivi sem religião e não tenho conhecimento daquela de vocês. Perdão, señores, se os escandalizo, mas para mim chegou a hora de bater o jogo dos apaches.

“Ajoelhou-se no chão de pedra da caverna e encostou a pistola contra a fronte. ‘Madre de Dios’ — disse —‘vem agora a alma de Ramon Gallegos’.

“E então nos deixou —William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

“Eu era o líder: cabia a mim falar.

“—Ele era um bravo —eu disse –; sabia quando morrer e como morrer. É tolice enlouquecer por causa da sede e tombar diante das balas dos apaches, ou ser esfolado vivo; é de mau gosto. Juntemo-nos a Ramon Gallegos.

“—Tudo bem — disse William Shaw.

“—Tudo bem — disse George W. Kent.

“Estiquei os membros de Ramon Gallegos e coloquei um lenço sobre seu rosto. Então William Shaw disse:

—Eu gostaria de ter esse aspecto, nem que por um instante.

“E George W. Kent disse que também queria o mesmo.

“—Há de ser assim —eu disse. —Os diabos vermelhos esperarão uma semana. William Shaw e George W. Kent, saquem as armas e se ajoelhem.

“Fizeram-no, e eu fiquei diante deles.

“—Deus todo-poderoso, nosso Pai —eu disse.

“—Deus todo-poderoso, nosso Pai —disse William Shaw.

“—Deus todo-poderoso, nosso Pai —disse George W. Kent.

“—Perdoai nossos pecados —eu disse.

“—Perdoai nossos pecados —disseram eles.

“—E recebei nossas almas.

“—E recebei nossas almas.

“—Amém!

“—Amém!

“Deitei-os ao lado de Ramon Gallegos e cobri seus rostos.”

Houve uma rápida comoção do lado oposto do acampamento: um membro de nosso grupo se pôs de pé, a pistola em punho.

—E você —gritou ele –, você ousou escapar? Ainda ousa estar vivo? Seu cachorro covarde, farei com que se junte a eles. Enforquem-me se...

Mas com um salto de pantera o capitão o deteve, segurando-lhe o pulso.

—Contenha-se, Sam Yountsey, contenha-se!

Estávamos todos de pé agora, a não ser o estranho, que permanecia imóvel e aparentemente desatento. Alguém agarrou o outro braço de Yountsey.

—Capitão —eu disse, —há qualquer coisa errada aqui. Esse sujeito ou é um lunático ou é um simples mentiroso: um mero mentiroso ordinário a quem Yountsey não tem razão de querer matar. Se esse homem pertencia ao grupo, então haveria cinco membros, um dos quais (provavelmente ele mesmo) ele não nomeou.

—Sim —disse o capitão, soltando o insurgente, o qual se sentou –, há alguma coisa... incomum. Há alguns anos quatro corpos de homens brancos, escalpelados e lamentavelmente mutilados, foram achados junto à boca daquela caverna. Estão enterrados lá, eu vi os túmulos; poderemos conferir amanhã.

O estranho se levantou, colocando-se de pé à luz do fogo que expirava —fogo que, no sufoco de nossa atenção, esquecemos de manter.

—Havia quatro —ele disse —Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

Com essa reiterada lista de chamada dos mortos ele penetrou nas trevas, e não o vimos mais. Nesse momento, um membro do nosso grupo, que tinha estado de vigia, caminhou para nós, algo excitado e de rifle em punho.

—Capitão —disse –, durante a última meia hora três homens estiveram ali, no platô. —Apontou na direção que o estranho tomara. —Pude vê-los bem, pois havia luar; mas, como não tinham armas, e eu os cobria com a minha, pensei que estavam de passagem. Mas não se moveram, com os diabos! Deram-me nos nervos!

—Volte para o seu posto e fique lá até que os veja de novo —disse o capitão. —O resto vá se deitar de novo, ou jogo todos na fogueira.

A sentinela se retirou, obediente, resmungando, e não voltou mais. Enquanto ajeitávamos nossos cobertores, o estouvado Yountsey disse:

—Peço mil desculpas, capitão, mas quem diabos você pensa que eles são?

—Ramon Gallegos, William Shaw e George W. Kent.

—Mas e quanto a Berry Davis? Eu devia ter atirado nele.

—Sem necessidade. Você não o teria deixado mais morto. Vá dormir.



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