INFERNO EM UJIRA - Conto de Horror - Rodrigo Cesar Picon de Carvalho


INFERNO EM UJIRA
Rodrigo Cesar Picon de Carvalho


– Nunca entraremos nessa boate eu disse. Alissa, minha bela namorada, soltou um riso. Guilherme, meu amigo, concordou com a cabeça. Tânia, a namorada de Guilherme, estava tão atenta à tela de seu celular que nada respondeu.

         De fato, a fila para entrada na boate Ujira[1] estava gigantesca, girando o quarteirão. Era a boate mais conhecida e famosa da cidade e praticamente toda a população jovem da cidade vai a uma das diversas festas semanais que a boate promove. E neste 27 de outubro não seria diferente. Quatro cursos da universidade federal da cidade, incluindo Jornalismo – curso de Alissa – e Engenharia Mecânica – curso de Guilherme – promoviam a grande festa “Se mamãe deixar”, cujo anúncio dizia ser a maior do ano. E pela quantidade de gente na fila, ela não deveria estar toda errada...

         Não queria ir à boate, mesmo que o show principal da noite fosse de rock´n´roll – da banda Chronus –, na qual curto demasiadamente; entretanto, o irmão de Guilherme, Mathias, era o vocalista da banda, e este praticamente implorou para eu e Alissa irmos juntos. Mas eu sinto desconfortável toda vez que visualizo o folder da festa – são pessoas dançando ao fundo, pegando fogo, e com a banda de rock tocando na frente – também em chamas. À direita das pessoas, está escrito: “Nem o fogo diminuirá o ânimo”. Eu sei que o fogo é uma alusão aos famosos shows pirotécnicos da banda Chronus, que são famosos regionalmente, mas ainda acho o anúncio de extremo mau gosto.

         – Vamos, Bernardo – gritou Alissa, na entrada da boate, enquanto eu me encontrava próximo ao local, olhando avidamente o folder da festa. Acordei dos meus devaneios e caminhei em direção à Alissa, enquanto ainda dava uma última olhada na estranha face carbonizada de Mathias, no folder.

         – O que estava fazendo? – perguntou a mim Alissa, enquanto adentrávamos na Ujira.

         A entrada da Ujira era um estreito corredor com pouca luminosidade, que dava ao interior da boate. Guilherme e Tânia se encontravam à frente. Alissa se encontrava ao meu lado, de mãos dadas comigo, e parecia um pouco preocupada.

         – Nada – eu respondi. – Tava olhando o folder...

         – Esse folder é esquisito, não é? – sobressaltei-me. Alissa também achou estranho o folder. Pelo menos, não era o único. – Causa uma sensação ruim no peito.

         – Nem me fala.

         Adentramos no interior da Ujira. O local era demasiadamente escuro. Havia um balcão à nossa esquerda, com alguns bancos de madeira, frontais a um espelho. Ao lado destes, a escada, que dava acesso ao segundo andar. À nossa frente, havia um desnível, que dava à pista de dança. À direita desta, a parede do bar da boate – sendo que as pessoas só tinham acesso ao local pela pista.

         – Onde vamos ficar? – perguntei. Percebi haver um contingente maior de pessoas no local onde se encontravam do que na pista de dança.

         -–Vamos descer um pouco, que vou ao banheiro – disse Guilherme. Caminhamos até o interior da pista de dança. Chegamos ao desnível e descemos – não sem precisarmos segurar nossas namoradas, que tinham dificuldade de andar nas descidas por causa do salto alto. Adentramos na pista de dança, onde visualizamos o palco, frontalmente a nós; as portas dos banheiros, à esquerda; mais um balcão, à frente do banheiro; o bar à nossa direita e algumas mesas, entre o bar e o palco. Os locais de assento já se encontravam praticamente totalmente preenchidos.

         Entramos no vão de entrada dos banheiros, na qual havia duas portas, uma de cada lado. Ao meio, uma pia, com duas torneiras e um imenso espelho.    

         – Com licença – disse Guilherme, adentrando em direção à porta da esquerda, na qual indicava ser banheiro masculino.

         – Posso ir também? – perguntei, de brincadeira.

         – Pode vir. Eu seguro pra você – disse Guilherme, rindo, enquanto fechava a porta.

         – E.– protestou Alissa. – Só eu posso segurar pra você. – brincou, em tom e expressão facial sacanas.

         – Ei. Eu estou aqui – protestou, dessa vez, Tânia, que se encontrava arrumando as longas madeixas morenas de frente ao espelho, enquanto Alissa passava os braços em volta do meu pescoço. Deu-me um rápido beijo na boca e perguntou:

         – Eu estou mentindo, por um acaso? – E rimos.

         –– Não – disse Tânia, também rindo. – Mas não sou obrigada a ouvir esse tipo de coisa. – E, novamente, rimos.



         Já se passava das 2 da manhã. Meia hora após adentramos na Ujira, o DJ Nandão entrou no palco e colocou todos para dançar com seus clássicos de funk e música sertaneja. Até eu e Alissa arriscamos dançar algumas músicas de sertanejo. Entretanto, o DJ já havia parado de tocar e, naquele instante, adentrava no palco a Chronus. Era uma banda cujos componentes eram todos jovens, na faixa dos seus 26 anos – incluindo Mathias. Eram seis no total – um vocalista, Mathias; dois guitarristas, um baixista, um tecladista e um baterista. Ocupavam praticamente todo o palco, deixando apenas a parte frontal do mesmo desocupada – por causa dos shows pirotécnicos. A pista de dança estava lotada. Estávamos no fundo, pois muitas pessoas passaram para frente e, quando tentamos nos aproximar, não conseguimos. Naquela altura, mesmo eu, com meus 1,80m de altura, tinha dificuldade para enxergar o palco – agora imagina a Tânia e a Alissa, que não passam dos 1,65? Ademais, grande parte das pessoas ali presentes era homem, o que aumentava ainda mais a probabilidade de haver mosh no local – e isso seria perigoso para a gente, principalmente para as garotas.

         – Vamos lá pra cima? Parece estar mais vazio que aqui. – disse Guilherme, após fitar a parte superior da boate.

         – Vamos sim – respondi.

         Saímos do local e caminhamos – não sem muitas dificuldades – em direção às escadas. Após alguns dificultosos segundos, chegamos à escada, onde a subimos. Era estreita – só cabia uma pessoa por vez – e de degraus curtos – o meu pé, por exemplo, não cabia inteiro no degrau. Não havia luminosidade praticamente nenhuma – a única luz que adentrava no local era a do andar de cima. Tânia e Alissa ainda tinham mais dificuldade de locomoção por causa do salto alto.

         Chegamos ao andar de cima, na qual ocupava praticamente todo o piso inferior, com a exceção da pista de dança. Sobre o palco, havia um par de banheiros e um pequeno bar, que vendia exclusivamente bebidas. À direita, algumas mesas, completamente vazias. No restante, haviam algumas pessoas debruçadas na grade de proteção. E ali ficamos, frontalmente ao palco, apenas curtindo os rifs introdutórios da música “Enter Sandman”, do Metallica. Ficamos ali apreciando a introdução do show da Chronus já mexendo o corpo e prontos para pular e agitar naquela noite – incluindo as garotas, principalmente Alissa, fã incondicional de heavy metal, que, àquela altura, já jogava suas madeixas loiras no meu rosto – como sempre!

         Repentinamente, algo chamou minha atenção. Já fui frequentador assíduo da Chronus, mas deixei de visitar a boate nos últimos cinco meses – desde que mudei para a capital, a fim de fazer o meu mestrado. Havia uma grossa espuma que revestia todo o teto da Ujira – e, naquele instante, percebi haver o mesmo nas paredes.

         – Ué, Guilherme, tem espuma antissom aqui agora? – perguntei a Guilherme, frequentador mais assíduo da Ujira que eu.

         – Não é legal, Bernardo? Agora a vizinhança não vai mais reclamar do som alto... – disse o rapaz, chegando a boca próximo ao meu ouvido para poder escutá-lo no meio do som da “Enter Sandman”
         – Mas o som não vai sair pela porta?

         – Eles fecham a porta no meio do show – respondeu o rapaz. Naquele instante, não sei por que, me senti claustrofóbico. O teto da Ujira já não é muito alto em relação ao chão do seu segundo andar – sendo que a espuma ainda diminuiu essa distância – e agora ainda descubro que a porta da Ujira está fechada.

– E isso não é perigoso, não? – perguntei

–– Relaxa – disse Guilherme.

                        Mas eu não estava relaxado. Tão logo “Enter Sandman” terminou e começou “The Heretic Anthem”, do Slipknot, o show pirotécnico teve início. O fogo saiu da frente do palco, para cima e para frente – mas não acertou ninguém, pois havia uma mureta de proteção. As chamas subiram a ponto de chegar acima do segundo andar, fazendo quem se encontrava perto afastar-se.

     – Nossa, essas chamas vão muito altas – eu disse, preocupado. E, de fato, estava preocupado, pois quase acertou o teto as chamas.

           – Relaxa, cara. Eles são profissionais. É Slipknot. Deixe de neura e curte o som.

           Realmente, Slipknot é uma das minhas bandas favoritas. A cada verso, sentia a compulsão de bater a cabeça e curtir o som. Todavia, ver aquele fogo chegando perto do teto a todo o instante fazia o meu sangue gelar e o coração pular nervoso no peito.

           O show da Chronus continuou com o show pirotécnico – o que já era de se esperar – em praticamente todas suas músicas. Tentei relaxar, mas não teve jeito – o fogo estava demasiadamente próximo ao teto em praticamente todo o tempo – e tal fato estava logo à minha frente. Tentei mudar de posição, argumentando que iria comprar um refrigerante e parar em outro ponto, mas não teve jeito – qualquer ponto do segundo andar da Ujira eu tinha visão privilegiada do fogo chegando próximo ao teto. Era necessário ir ao primeiro andar para não ter mais essa visão diabólica.

E eis que tal oportunidade apareceu quando a Alissa e a Tânia falaram que iriam ao banheiro, no final do cover de uma música da banda Amatory.

– Tá – eu disse – Vamos lá.

– Você também vai ao banheiro? – perguntou Alissa.

– Não, mas...

– Pode ficar curtindo o show. Não vou te dar perdido não...

 E as escadas?

– A Tânia me ajuda.

Tânia meneou positivamente a cabeça. Rendi; não tinha como argumentar. As garotas saíram do segundo andar em direção às escadas.

– Cara. – Guilherme passou o braço direito por sobre meu pescoço. – Acalme-se. Curta o show. Eles já tocaram umas quatro músicas do Slipknot e até a Tânia bateu a cabeça e você não. Acalme-se. Vai dar tudo certo.

            – Sei lá, cara. Estar aqui em cima, vendo o fogo chegar perto do teto me causa uma sensação estranha.

– É por causa do folder, não é? Ele realmente te deixou atormentado. – disse Guilherme. Sobressaltei. Veio, em minha mente, uma lembrança do folder na minha mente. Aquelas pessoas pegando fogo. Será que foi isso que deixou dessa forma? Se for, pode ficar sossegado. Você só foi mais um que caiu no truque deles... – o rapaz riu, enquanto voltava sua atenção novamente em direção ao palco.

Aquelas palavras do Guilherme acalmaram-se. De fato, eu estava atormentado apenas por causa daquele maldito folder. “Você só foi mais um que caiu no truque deles...”, e realmente caí como um patinho. “Que merda”, reclamei comigo mesmo.

Respirei fundo e passei a aproveitar o show. A Chronus, naquele instante, estava terminando de cantar uma segunda música da banda Amatory quando o Mathias pediu a atenção de todos:

– Olá, meu nome é Mathias e sou o vocalista da banda Chronus. Nossa banda é conhecida pela região pelos seus shows pirotécnicos, mas desde que eu e os demais montamos a banda, há quatro anos, sempre cantamos covers de bandas famosas, como Metallica, Amatory e Slipknot. Dessa vez, entretanto, faremos algo diferente: cantaremos uma música própria nossa. Depois de quatro anos de estrada finalmente tocaremos nossa própria música. – Mathias levantou as duas mãos para o alto, ambas fazendo o símbolo do rock´n´roll. Além dele, outros ergueram a mão direita fazendo o mesmo símbolo. Gritos ecoaram pelo local. – Nossa música chama Blood Rain (Chuva de Sangue) e espero que gostem.

– Só espero que não seja mais uma daquelas bandas que só fazem músicas devagar.... – reclamei, com Guilherme

– Que nada. Essa é pauleira. – disse Guilherme.

– Menos mal – brinquei. – Tão logo o guitarrista de cabelo comprido e encaracolado estilo Slash começou a tocar sua guitarra preto e branca, as pessoas já começaram a vibrar. Neste instante, comprovei que as palavras de Guilherme não eram tão mentirosas. Comecei a vibrar e a aproveitar o som. Guilherme olhou para cima e me viu, finalmente, tranquilo.

– Eu não te disse? Essa música é pauleira – ele disse. Eu ri, apenas.

Mathias começou a cantar – uma música extremamente rápida e com voz gutural. Eu e Guilherme começamos a pular, abraçados e a aproveitar a música. Um mosh gigantesco começou a surgir no primeiro andar – visto do andar de cima parecia um redemoinho. Estávamos aproveitando a música quando, repentinamente, para surpresa geral, houve um estouro na frente do palco – algo simplesmente deu errado no show pirotécnico, que o fez estourar. Uma labareda evadiu do local, para cima; outra, para os lados, outra para frente – e outra, e mais outra.

Foi tudo muito rápido. De um segundo para o outro, o show pirotécnico deu lugar a um verdadeiro Inferno. Uma das labaredas acabou acertando a espuma antissom do teto e, como esta é inflamável, acabou por rapidamente pegar fogo e liberar uma enegrecida fumaça.

         – Corre, corre, corre – gritei a Guilherme. Este parecia estupefato diante os acontecimentos, mas agora não era hora de ficar travado. Estávamos com a cabeça a pouco mais de metro meio da espuma e seríamos alvos fáceis do fogo.

         Todos os que estavam no andar de cima começaram a correr desesperadamente em direção ao andar de baixo. Devido aos gritos oriundos da pista de dança, acreditei, naquele instante, que todos os ocupantes da Ujira estavam fugindo da boate.

         – Foi mal, cara. Eu devia ter te escutado – disse Guilherme.

         – Isso não é ho... – repentinamente, um gosto amargo surgiu na minha boca. Senti a garganta queimando, como se algo pontiagudo estivesse descendo violentamente por ela. Em seguida, um barulho ocorre do meu lado. Era um estrondo, de algo caiu ao chão. Acreditei se tratar de uma mesa ou cadeira, mas, quando visualizei o que se tratava, sobressaltei – era uma pessoa que, simplesmente, desmaiou. E o pior – junto dela havia outras três.

         – Vamos, vamos, vamos... – gritei a Guilherme, puxando-o pelo braço. Desesperei-me; aquelas pessoas desmaiaram devido à inalação da fumaça – a mesma causadora da minha queimação na garganta. Levei a outra mão ao nariz e à boca, tampando-os com as costas da minha mão.

         Chegamos às escadas. Outras pessoas queriam descer simultaneamente a nós. Algumas estavam com tanta pressa que nem se importariam de passar (literalmente) por cima de outras pessoas. E uma dessas se encontrava atrás de mim, no mesmo momento em que estou descendo, junto de Guilherme, uma escada escura e com degraus finos. Soltei Guilherme e coloquei a mão direita na parede, com o intuito de me dar equilíbrio, e continuar a descer a toda velocidade as escadas, tentando manter os meus pés firmes. Percebi Guilherme fazendo o mesmo logo atrás de mim.

         – Precisamos achar as garotas, Bernardo – gritou Guilherme, logo atrás de mim.

         – E se elas já saíram? – perguntei. E torcia para que isso fosse verdade, mas duvido que elas iriam embora da Ujira largando-nos para frente.

         De repente, para minha surpresa, eis que o homem relativamente gordo e baixo que se encontrava na minha frente tropeça, caindo e rolando escada abaixo, caindo no chão ao lado do balcão. Assustei-me, mas, quando senti Guilherme me empurrando por estar o filho-da-mãe atrás dele lhe empurrando, continuei a descer as escadas. Cheguei ao andar inferior, ultrapassei o homem caído, dei dois passos para frente e me virei em direção à pista de dança: naquele instante, parecia que vi o Inferno.

         Havia um mar de gente ocupando desde a pista de dança até a apertada saída da boate – que, àquela altura, já se encontrava aberta. O chão estava tomado de outras pessoas, caídas como o homem às minhas costas – e sendo pisada por um número imensurável de pessoas a cada segundo.

Estavam todos desesperados, apressados em sair do interior da boate. Empurravam com violência os outros que atrapalhavam sua caminhada – e um erro fatal dos que eram empurrados os faziam juntar-se aos demais corpos que ocupavam o chão.

A fumaça já ocupava praticamente todo o ar do local. Eu sentia minhas vistas arderem. Mesmo estando nariz e boca tampados, ainda sentia a fumaça adentrar por minha garganta.

– Vamos! – gritei, para Guilherme, que acabara de chegar ao andar inferior.

Tão logo proferi tais palavras a Guilherme, adentrei no interior do mar de gente. Abri os braços e os deixei à minha frente, em sinal de “X”, com os cotovelos dobrados, cada um de um lado do corpo, protegendo-me de possíveis abalroamentos contra quem estivesse correndo ao meu lado. Percebi Guilherme seguindo-me, logo atrás de mim. Caminhei dois ou três passos e senti a escada que dá acesso à pista de dança embaixo dos meus pés. Entretanto, devido não estar esperando pela mesma quase fui ao chão, por ter apoiado metade do meu pé para fora do degrau. Firmei o pé o mais rápido que pude, enquanto rezava para ninguém esbarrar em mim. Desci os degraus, adentrando no interior da pista de dança e corri em direção ao banheiro. Virei para trás. Percebi que a parte anterior da boate era quem estava lotada àquela altura – estavam com dificuldades de sair por causa do estreito corredor de entrada. Ao mesmo tempo, sobressaltei-me. Guilherme não mais se encontrava atrás de mim!

Olhei de um lado para o outro, procurando por Guilherme. Não o encontrava. “Onde ele estará”, me perguntei. Repentinamente, um pingo cai no meu rosto, na altura da bochecha esquerda. Rapidamente eclode no local uma sensação de queimação, que começa a comer rapidamente todo o meu rosto. Levei a mão esquerda à bochecha e tentei retirar o material. Esbarrou em minha mão e percebi a sua pele rasgar.

“Merda”, eu disse, enquanto eu sentia um machucado brotar na minha bochecha. Algo dela vertia – era sangue. Eu tinha certeza. Mas não podia me procurar com aquilo agora. Era necessário, primeiramente, sair da Ujira. E, para isso, eu precisava encontrar Alissa.

Corri em direção ao banheiro feminino. Abri a porta e sobressaltei-me – havia oito mulheres jovens jogadas no chão. O cheiro da queima era insuportável ali dentro. Levei a blusa ao nariz e boca, tampando-lhes. Caminhei em direção aos corpos. Nenhuma delas era Alissa. Procurei nos boxes do banheiro, vaso por vaso – em um deles, lá estava ela. Jogada no chão, com as pernas encolhidas, deitada. Aparentemente tentara se esconder no chão gélido do último box do banheiro da Ujira e desmaiara. Sorri, estranhamente, por tê-la encontrado, e aliviado por ter vindo procurá-la. Mas... onde estaria Tânia? Não a vi no interior do banheiro. Teria saído e largado Alissa para trás? Porém, aquilo não importava naquele instante. Coloquei Tânia nas costas, ainda desmaiada e comecei a correr. Sentia-a gelada. Desejei-a, naquele instante, do fundo do meu coração, que ela não morresse – naquele instante, pela primeira vez, percebi que a morte estava nos rondando. Sempre tive aquela sensação de que, ao final, todos sairiam bem e felizes e que aquilo só seria um susto – somente morreriam alguns aqui, outros ali, mas não a gente.

Adentrei no interior da pista de dança. Procurei novamente por Guilherme. Meu coração pulava aceleradamente no peito, à procura de meu amigo. Onde ele está meu Deus? Olhava para aquele mar de gente que ainda tentava sair do interior da Ujira e não conseguia enxergá-lo. O desespero era tremendo.

Comecei a correr em direção à saída da Ujira. Saí da pista de dança, subi as escadas e adentrei no mar de gente. Havia bem menos pessoas de pé tentando sair da Uijra – entretanto, a grande parte dessas pessoas que não estavam de pé, como outrora, não estava do lado de fora, e sim no chão, desmaiadas, provavelmente por causa do calor e da fumaça.   Senti um aperto no peito. Rezei profundamente para Guilherme não estar ali no meio dos desmaiados. Rezei profundamente pela alma de todos que ali pereciam. Que fim, meu Deus.

Atravessei aquele mar de gente o mais rápido que podia. Queria saber logo da Ujira. Por mais que eu tentasse o nariz e a boca, sentia que a fumaça tóxica estava adentrando por minhas estranhas. Meus pulmões estralavam durante o expirar e minhas costas doíam em qualquer movimento do meu peito. Precisava sair do interior da Ujira o quanto antes. Em um determinado momento, eis que surge algo abaixo dos meus pés. Era grande e rígido e fez um crack quando pisei. Olhei para baixo. Sobressaltei-me. Era um braço esquerdo esticado, na qual eu pisei no seu cotovelo. O seu lado estava ao lado, com a cabeça enterrada no chão. No mesmo instante em que vi o braço esticado abaixo da sola do meu sapato, retirei o meu pé. Coloquei-o à frente. Ultrapassei o braço e continuar a fugir. Passei a olhar o chão também, onde eu vi uma grande quantidade de pessoas tomando-o, pisoteadas – algumas pessoas em situação tão crítica que possuía afundamento no crânio. Virei o olhar para o lado e continuei a fugir, tentando não pisar em nenhuma pessoa.

         Estava próximo à entrada do corredor introdutório da Ujira quando percebi um grande número de pessoas caindo, uma seguida da outra, no chão, desmaiadas. Meu Deus, como me assustei. Percebi o ar rapidamente ficar enegrecido. Em seguida, ouvi um estralar logo acima da minha cabeça. Olhei para cima. O incêndio havia tomado o piso do segundo andar, que era feito de madeira. A fumaça aproximou-se com mais rapidez e força do chão – o que fez aquele sem-número de pessoas desmaiarem rapidamente, e o piso ameaçava derrubar.

         Naquele instante, não quis mais fazer cerimônia. Era preciso sobreviver. Desculpe-me os caídos. Desculpem-me os outros. Corri em direção ao corredor de entrada da boate e passei empurrando os próximos nas paredes. Um deles, à minha esquerda, segurou o meu braço esquerdo, tentando me segurar. Merda! Empurrei-lhe com o ombro esquerdo em direção à parede. Senti a sua mandíbula estralar com o impacto e vi dois de seus dentes pularem para fora de sua boca. Este caiu no chão, todavia, não soltou o meu braço. Virei contra ele. Fitei o seu corpo. Fiquei surpreso. Era o sujeito que empurrou Guilherme na escada e quase nos fez cair dela. Fui tomado por um sentimento de raiva naquele instante. Chutei-lhe com força a sua cabeça contra a parede, fazendo-o desmaiar e verter generosa quantidade de sangue por seu nariz e boca. Finalmente, o meu braço foi solto. Continuei a caminhada.

         Não sei por que, mas, naquele momento, senti um pequeno desejo de vingança pairando no ar. Deixei, inclusive, um sorriso escapar pelo canto da minha boca. Ainda bem que Alissa estava desacordada. Alissa... olhei rapidamente para cima. Ainda estava desmaiada. Meu peito apertou com tanta força que parecia que algo espremia o meu coração. Orei novamente para que Alissa estivesse tudo bem.

         Naquele instante, junto daquelas pessoas que corriam para fora da Ujira, escutei um barulho de sirene ao fundo dos gritos. Parecia estar longe e fraca. Ela rapidamente ganhou força, até tornar os gritos inaudíveis.

         Visualizei uma luz vermelha, viva, à minha frente, junto de outras luzes. Era a saída da Ujira. Finalmente! Acelerei os passos. E parece que os demais enxergaram a saída da Ujira no mesmo instante, pois também aceleraram os próprios passos no mesmo instante.

         Repentinamente, todos abriram espaço no meio do corredor. Cheguei para o lado esquerdo, por mera reação. Passaram do meu lado quatro bombeiros, dois segurando uma gigantesca mangueira e dois com um machado. Continuaram sua caminhada pelo interior da boate. Sabia que foram para salvar vidas. E eu rezei para que conseguissem do maior número possível.

         Saí da boate. Como era bom respirar ar puro, ver as luzes dos postes e da lua. Havia um número gigantesco de pessoas do lado de fora da Ujira. Estavam estacionados cinco carros – duas ambulâncias, dois carros de bombeiro e uma funerária – no local, mas dava-se para escutar sirene vinda aparentemente de todos os lugares. Pessoas vestidas de jaleco branco atendiam feridos, seja por queimadura, seja por inalação de fumaça... e como tinha feridos. Das centenas de pessoas que se encontravam do lado de fora da boate, mais da metade havia algum ferimento causado pelo incêndio – ou estava desmaiado na rua.

         Como não podia perder tempo, corri em direção a uma das ambulâncias. Precisava salvar Alissa. Três enfermeiros vieram em minha direção. Rapidamente desci Alissa e lhes entreguei. Um dos enfermeiros segurou Alissa no colo e rapidamente correu em direção ao interior da ambulância. Repentinamente, assustei-me. Senti dois firmes braços entrelaçando o meu peito. Como assim? –  protestei, inutilmente. Retiraram-me do chão e carregaram até o interior da ambulância. Fiquei lado a lado com Alissa, que já estava sendo entubada – principalmente para respirar. Percebi que a situação dela não era nada boa. Senti um aperto gigantesco no peito. Virei a cara. Não queria encarar Alissa daquela forma. Naquele instante, visualizei o meu rosto, através de um espelho existente ao meu lado. Toda a bochecha esquerda – até perto do contorno dos olhos –, a mandíbula, boca, região entre esta e o nariz e o queixo estavam em carne viva, ocasionada por queimadura na pele.

         – Meu Deus! – deixei soltar, no interior da ambulância, antes de me entubarem.


         Minha cabeça doía quando recobrei a consciência. Perguntei-me onde eu me encontrava e girava o olho de um lado para o outro, na tentativa de descobrir o meu paradeiro. Percebi rapidamente que eu estava em um hospital – paredes brancas, pessoas deitadas em maca e entubadas, no interior do mesmo quarto. Eu mesmo me encontrava com um tubo para facilitar minha respiração.

         – Finalmente recobrou a consciência – disse um homem, ao meu lado esquerdo. Não havia percebido sua presença, porque não conseguia girar a cabeça para o seu lado. E naquele instante não seria diferente.

         Percebi o homem levantar ao meu lado e caminhar, até adentrar no meu campo de visão. Era esguio, alto, calvo e usava jaleco branco.

         – Há quanto tempo estou dormindo? – iria perguntar onde me encontrava, mas era lógico que eu me encontrava no hospital. Até porque a minha última lembrança de antes de adormecer era de adentrar na ambulância junto de Alissa... Alissa... – Onde está Alissa? – perguntei ao homem de jaleco branco. De tão atordoado que estava que eu quase gritei, de tão alto saiu minha voz.

         – Acalme-se – disse o homem. – Você esteve dormindo por quase 4 horas, meu jovem. – Ele pausou. – Você disse Alissa, não foi?

         – Foi – sorri, ainda que timidamente. O homem conhecia Alissa. Provavelmente ela perguntou de mim quando acordou. Tenho certeza disso.

         – Só um minuto – disse o homem, sério. Pra que toda aquela seriedade? Instantaneamente, minha alegria momentânea esvaiu do seu corpo, como se fosse um balde de água fria. O homem afastou-se do local momentaneamente, pegou uma prancheta com diversos nomes, folheou e perguntou-me:

         – Alissa de Moraes Magalhães?

         – Isso. – Meu coração saltitava no peito. Era um misto de ansiedade, esperança e nervosismo.

– Eu sinto muito. – Como assim, sente muito? Novamente, um balde de água fria. – Ela inalou muita fumaça tóxica, e não resistiu aos ferimentos.

         Senti algo na bochecha direita, escorregando vagarosamente. Pensei, primordialmente, se tratar de um inseto, mas não era. Era uma lágrima, solitária, triste, como eu naquele instante, escorrendo por seu rosto.

– Como assim? Não, você está mentindo. Não é possível. Ela não morreu. Eu a salvei. Eu a tirei do interior do banheiro. Não tinha como ela falecer.

– Provavelmente, no instante que você tirou a garota do banheiro ela já estava falecida. Muitos faleceram muito rápido. Não pudemos fazer nada para salvá-la.

Não, não é possível. O que eu fiz de errado? Eu fui tudo certinho, o mais rápido que pude. Eu empurrei os outros, eu quase caí das escadas, eu MATEI UM HOMEM, pra nada? Não tem como. Fui eu, eu tenho certeza. Eu fiz algo de errado. Pensa, Bernardo, pensa. Eu deveria ter sido mais rápido. Foi isso. Não, ele disse que provavelmente Alissa já estava falecida quando a encontrei. É isso. Eu não deveria tê-la deixado ir ao banheiro. Era pra eu ter descido, eu ia descer, algo falava pra eu descer. Não deveria ter confiado na Tânia. Nem no Guilherme. Guilherme... Tânia...

– Você está com a lista dos mortos, não está? – perguntei ao homem.

– Sim, estou – disse o homem, vendo-me debulhar em lágrimas, mas, gentilmente, sem se intrometer em atrapalhar a minha dor. – Você estava com mais alguém na boate?

– Tinha dois amigos meus. Guilherme de Souza Aguiar e Tânia Maria Alves.

– Você é amigo do Guilherme? Ele foi um herói.

         – Por quê? – perguntei. Não havia entendido.

         – Ele saiu da Ujira com a namorada no colo. Deixou-a na ambulância. Fui eu mesmo quem o atendeu. Ela estava desmaiada, com o rosto coberto de fuligem. Ele estava com dois machucados feios no rosto, idênticos ao seu. Disse que precisaria medicá-lo também, mas ele não quis. Contou que sua namorada se perdeu da amiga dela dentro do banheiro da Ujira e ele se perdeu do amigo, que foi buscá-la. Adentrou na boate novamente para encontrar o tal casal de amigos. – Naquele instante, eu já imaginava que o homem se referia a mim e à Alissa. – Infelizmente, ele desmaiou no interior da boate e foi pisoteado por outras pessoas, acabando por falecer. – Não, de novo não. – A namorada dele sobreviveu e não corre risco de vida.

         Naquele instante, senti uma imensa dor no peito. Por ter escutado Guilherme e ter ido nessa maldita festa. Por não ter escutado os meus instintos de ter que descer ao primeiro andar quando me senti mal próximo do teto. Por ter arrastado Alissa para a Ujira, quando ela não estava animada de ficar até tarde na rua. Por não ter descido no momento que Alissa e Tânia foram ao banheiro. Eu sabia que algo daria errado... quem é o louco que faz show pirotécnico dentro de um local fechado? Por que ninguém impediu? Mathias – se é que ele está vivo – pagou o preço – matou o próximo irmão. Tantos mortos, tantas vidas perdidas, meu Deus. Sinto-me ruim por ter sobrevivido e eles não.

         E o que será daqui pra frente? Os responsáveis serão julgados, processados e possivelmente condenados pelas não sei quantas mortes dentro da Ujira. Poderia ficar trinta, quarenta, setenta anos mofando na cadeia, mas de nada isso adiantaria. Sei que eles não tiveram intenção no ocorrido e ninguém assumiria o risco de tantas mortes. Foram imprudentes, nada mais do que isso. Além do mais, colocá-los na cadeia, lá mofando, não trará Alissa, Guilherme e nenhum dos outros mortos de volta. Nada adiantaria. Só espero realmente que as pessoas agora coloquem a mão na consciência e evitem que novas tragédias como o incêndio na Ujira ocorram. É só isso o que desejo. Que mais ninguém passe o que a gente está passando; que ninguém mais passe o sofrimento da morte de alguém como nossos pais, filhos, eu, Tânia estamos sofrendo; que mais nenhuma cidade deixe ocorrer uma tragédia como esta.





[1] Leia-se Urrira.

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