UM SONHO PROFÉTICO - Narrativa Verídica - Anônimo do século XIX
UM
SONHO PROFÉTICO
Anônimo
do século XIX
Os
problemas do ocultismo, do hipnotismo e magnetismo têm, cada vez mais, o dom de
apaixonar a imaginação não só dos homens do povo, como dos que se dedicam à ciência.
Um exemplo disso está no último livro do conhecido astrônomo Flammarion, livro
que se intitula O desconhecido e os
problemas psíquicos. Se o título pôde parecer um pouquinho rebarbativo, o
livro é da mais extrema singeleza. Flammarion chega, entretanto, nele às
seguintes conclusões:
1ª. A alma
existe como ser real, independente do corpo;
2ª. Ela é dotada de faculdades ainda desconhecidas
para a ciência;
3ª. Ela pode agir e perceber a distância, sem o
intermédio dos sentidos;
4ª. O futuro
está preparado de antemão e determinado pelas causas que o devem fazer surgir. Às
vezes a alma o consegue descortinar.
Como
se pode ver, não é pouco o que julga ter encontrado o ilustre astrônomo! Glória
eterna adviria a quem pudesse afinal cortar o debate tantas vezes milenar sobre
a existência da alma.
Os
que lerem o livro de Flammarion, se o fizerem com um pouco de senso crítico,
acharão, todavia, que nada do que ele assevera com tanta ênfase e segurança se
pude considerar definitivamente provado. Mas o que faz esse volume
interessantíssimo é a colheita de fatos estranhos, a que o autor se pôde entregar.
Por
diversos jornais e revistas da França, pediu ele aos seus leitores que lhe comunicassem
tudo o que lhes tivesse ocorrido e parecesse implicar, já uma ação a distância
de vivos, moribundos e mortos, já fenômenos
de sonhos divinatórios. Recebeu, por isso, milhares de cartas, quase todas
referindo sucessos estranhíssimos. Deixou de margem as que julgou não
apresentarem garantias de veracidade. Ainda assim, as que publica são numerosas
e curiosas.
Há,
entre tudo o que é citado no volume, uma história que vale a pena ser contada.
Não se trata de qualquer episódio anônimo. A narração foi assinada pelo Sr.
Bérard, antigo magistrado, que hoje ocupa um lugar na Câmara dos Deputados da
França. Demais, o narrador se refere a fatos de que restam registrados documentos oficiais.
Se foi uma coincidência, um caso de telepatia ou de adivinhação do futuro é o
que se pode discutir; mas a narração é comovedora.
A
cena data de l0 anos. Nesse tempo, o Sr. Bérard servia como juiz de instrução e
estava precisamente tratando de um crime espantoso que tivera lugar havia pouco
tempo. Para se distrair, gostava de ir passear na floresta, perto da cidadezinha
onde trabalhava. Mais de uma vez aconteceu-lhe, em tais passeios, internar-se
tanto pela mata, que era obrigado a pernoitar em hospedarias rústicas.
Foi
o que lhe sucedeu certa noite em que, já sem esperança de
poder voltar a tempo, encontrou-se diante de uma pousada de lenhadores e
carreiros, cuja tabuleta apregoava ser O
ENCONTRO DOS AMIGOS. O magistrado entrou.
Não
havia ninguém, senão o hospedeiro e a mulher. Ele era um hércules: catadura
feroz, rosto amarelo. Ela, pequenina, mirrada, carão moreno, vestida de trapos,
olhar desconfiado e traiçoeiro. Pensar que aquele pouso estava a muitas léguas
de qualquer aldeia ou cidade não era ideia própria para dar muita satisfação e
confiança a ninguém...
Assim, acabada a refeição, quando o
juiz subiu para um quartinho miserável, que ficava por cima das cocheiras, ia
disposto a tomar todas as cautelas. Habituado, aliás, por foiça da sua
profissão, a lidar com crimes, levava às vezes a prudência até o medo. Examinou
bem o quarto. Havia a cama —que cama! —uma mesa e duas cadeiras vagamente
capengas. Além da porta por onde entrara, e que fechara por dentro, outra
existia, dissimulada na parede do fundo e sem chave. Descerrou-a e olhou. Dava
para uma escada, que ia pelo escuro adiante. Encostou-a com precaução e arrumou
por trás a mesa e uma das cadeiras, de modo que fosse impossível forçar a
entrada sem barulho. Feito isto, dormiu.
Alta
hora da noite, pareceu-lhe ouvir que tentavam penetrar no quarto:
— Quem está aí?
Ninguém
respondeu. Teria sido engano? Fosse como fosse, despertado assim, perdeu o sono.
Só mais tarde, quase ao amanhecer, adormeceu de novo. Adormeceu e teve um
pesadelo. Via em sonho que, na cama em que ele estava, havia alguém: não podia
distinguir se era ele ou ela a outra pessoa. Em certo momento, a porta suspeita
abriu-se. O hospedeiro e a mulher apareceram. Ela ficou à entrada; trazia a
lanterna e velava a luz com a mão; ele empunhava uma faca. Chegado junto do
leito, o homem cravou a lâmina no coração do hóspede. Assim que o viram morto,
trataram de levá-lo. A mulher tomou-o pela cabeça; o marido, que ia à frente,
pelos pés. Desceram a escada. A lanterna —detalhe curioso — carregava-a o
marido nos dentes, pendurada pela argola.
Estava
neste ponto o pesadelo, quando o juiz acordou, banhado de suor frio. Era manhã.
Tratou de saldar sua conta e saiu.
Passaram
meses, passaram anos: três anos. Um dia o Sr. Bérard leu, em um jornal, a notícia
de haver desaparecido misteriosamente o advogado Victor Arnaud. Pouco depois, a
mesma folha noticiava que, após diversas buscas, sabia-se apenas que Arnaud
estivera passeando na floresta e fora visto na hospedaria O ENCONTRO DOS AMIGOS. Imediatamente, o magistrado lembrou-se do seu
sonho. A notícia indicava o dia em que o hospedeiro e a mulher compareceriam
perante a justiça. Embora não tivesse nada com a averiguação do crime, decidiu-se
a assistir ao interrogatório.
De
fato, na ocasião aprazada, foi. Pediu ao colega, juiz de instrução, para ficar
no gabinete, a seu lado. Nada, entretanto, lhe revelou sobre as suas intenções
e suspeitas. Entrou a mulher. Perguntada, respondeu que, efetivamente, na noite
indicada, passara por sua casa de negócio alguém, cujos traços, coincidiam com
os do advogado. Mas os dois únicos quartos em que ele se podia alojar, dois
quartos da frente, estavam ocupados. Por isso, ele não ficara. Quando a
hospedeira disse isto, o juiz Bérard, intervindo bruscamente, interpelou-a:
—E
o quarto de trás, que fica por cima da cocheira?
A
mulher, que até então não prestara atenção àquele simples assistente, sentado
junto ao magistrado, encarou-o, perturbada, sem voz, hesitando. Sua comoção foi
tão visível que o interpelante se animou e com toda audácia, foi dizendo, em um
tom de absoluta certeza:
—Foi
aí mesmo que Victor Arnaud dormiu. Alta noite você e seu marido subiram pela
escada da estrebaria. Ele trazia a faca, você a lanterna. Enquanto seu marido
assassinava o viajante, você manteve-se junto à porta, tapando a luz da
lanterna com a mão. Feito o crime, carregaram o corpo: você segurou-o pela
cabeça. Seu marido ia à frente, sustentando-o pelos pés e levando a lanterna,
presa entre os dentes, pela argola.
O
juiz de instrução estava embasbacado: só agora compreendia o empenho do colega
em assistir à inquirição de testemunhas, mas não podia imaginar como ele
conhecia tão bem os fatos. A mulher, lívida de espanto, tremia, tiritava de
terror. Quando Bérard, que afinal não fazia mais que repetir o seu sonho de
três anos antes, disse com serenidade as palavras “... seu marido ia à frente,
sustentando-o pelos pés e levando a lanterna, presa entre os dentes, pela
argola”, a criminosa não pôde conter-se, e perguntou, aterrada:
—
Mas então o Sr. viu? O Sr. viu tudo?
Era
a confissão...
Mais
completa se tornou ela depois que, saída a hospedeira, entrou o homem. O juiz
de instrução disse-lhe tudo. Repetiu nos mesmos termos a narrativa. Furioso,
pensando que a mulher o havia traído, ele só teve uma praga: cerrou os dentes,
e, colérico, rugiu:
—
Ah, cachorra! Ela me pagará.
Buscas
feitas na casa fizeram achar não só o cadáver de Victor Arnaud, como o de outro
hóspede, que havia sido assassinado muito antes, antes mesmo da visita do
ex-magistrado.
Como
explicar tal sonho? É difícil negar a sua realidade: seus resultados constam de
documentos oficiais. Por causa dele, um réu foi condenado à morte! Os nomes próprios
dos que figuram em tudo isso estão dados com inteira clareza. Não se trata de
uma fábula, um conto de sensação. O Sr. Goron, antigo chefe de polícia de Paris,
confirma-o.
Resta
saber se foi ou uma simples coincidência, ou a visão telepática do que
acontecera ao primeiro assassinato, ou, ainda, a adivinhação profética do que
ia acontecer, três anos depois, a Victor Arnaud.
Fonte: “Revista da
Semana”, edição de 20 de maio de 1900.
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