A LENDA DE ULRICH, O MATADOR - Conto Clássico de Terror - Paul Genève


A LENDA DE ULRICH, O MATADOR

Por Paul Genève


O viajante, que desce o curso do Reno, avista logo além de Mainz, na encosta de uma colina rochosa que vem morrer junto do rio, os blocos enormes, a ruína épica de um castelo desmantelado, evocando visões medievais. Nossa imaginação revê em torno daqueles destroços imponentes a silhueta dos altivos e terríveis bugraves, cuja lenda corre ainda de boca em boca naquela região. Se interrogarmos um daqueles barqueiros, ele nos contará a história amedrontadora do fidalgo que, por ter matado, foi condenado a viver.


*

Era a época em que os homens eram mais altos e mais fortes que hoje, em que vestiam sem fadiga as formidáveis armaduras cujo tamanho e peso hoje nos assombram.


Ora, de todos os homens de seu tempo, Ulrich, o conde de Frankenthal, era o mais alto e robusto. Ninguém manejava a espada com maior desenvoltura, e a de que se servia ultrapassava de um palmo qualquer outra, e sua lâmina tinha a largura das palmas de suas duas mãos coladas uma ao lado da outra. Seus domínios eram imensos, seu castelo invulnerável, sua corte magnífica.


Wilbald, o Urso, seu pai, caíra em combate com um barão vizinho e deixara-o aos dezenove anos senhor absoluto da província. O jovem conde governava-a como tirano, odiado e temido.


Quando completou vinte e um anos, celebrou esta data com um esplêndido torneio, ao qual vieram de todos os cantos da Europa numerosos cavaleiros em busca de glória. Nunca o terrível conde de Frankenthal combatera melhor. Durante o mês que duraram as festas, atirou do cavalo nada menos que cinquenta dos mais afamados campeões, sem ser derrotado uma só vez. Sua só presença apavorava os mais bravos. Assim, todas essas festas foram para ele um longo triunfo, e o seu coração orgulhoso dilatava-se desmedidamente.


Mas, subitamente, na tarde do último dia, quando se ia encerrar o torneio e proclamar Ulrich vencedor, surgiu no campo fechado um cavaleiro desconhecido, que se aproximou do conde e tocou-o levemente no peito com o cabo da lança. Ulrich, assim provocado, ficou por uns instantes silencioso, estupefato, ao ver que esse cavaleiro era de sua estatura e parecia ser de sua força.


Depois fez selar seu melhor cavalo de batalha, pôs à cabeça o enorme elmo de prata, sobre o qual uma águia negra abria as asas e, de lança em punho, penetrou na arena. O desconhecido esperava-o.


As trombetas soaram. Um arauto fez um sinal. E, diante da multidão, que, ansiosa, detinha o fôlego, os dois gigantes precipitaram-se num turbilhão de poeira, levados pelo galope de seus corcéis. O encontro foi formidável. Ouviu-se o choque das lanças sobre as couraças e toda a assistência, até então silenciosa, soltou um grande grito, porque o conde Ulrich rolara pesadamente do cavalo, num fracasso de armas.


Trêmulo de furor e de vergonha, o fidalgo ergueu-se rapidamente e desembainhou sua enorme espada. O desconhecido saltou da sela e desembainhou também a sua. O combate foi curto. Após alguns passos fulgurantes, o desconhecido recuou bruscamente, ergueu o gládio com as duas mãos e abateu-o sobre Ulrich. Este viu o golpe e parou-o. Mas a sua espada foi partida e, vencido pela primeira vez, o conde caiu com o elmo achatado e a face em sangue.


Com passo tranquilo, o cavaleiro desconhecido montou novamente e, de espada em punho, afastou-se, sem que pessoa alguma ousasse detê-lo ou dirigir-lhe a palavra.




*


Ulrich ergueu-se penosamente sobre os joelhos e, afastando os escudeiros que acudiam solícitos, uivou este juramento sacrílego:

—Que a desgraça caia sobre ti! Que eu possa te ver jazendo ao solo, ao alcance de minha espada. Juro por meu brasão que hei de erguer, no lugar onde caíres, uma igreja que erguerá ao céu uma torre mais alta que qualquer outra no mundo!


Tendo assim dito, deixou que lhe fossem feitos os curativos e retirou-se, lívido, cambaleante...


Pouco depois, um homem de armas chegou, gritando que o desconhecido sofrera um acidente e estava gravemente ferido. Levado pelo galope de seu cavalo através da floresta, batera num tronco atravessado e jazia agora na relva, inanimado.


—Viva Deus! — exclamou o conde. — Se dizes a verdade, eu te darei mil gulden[1]. Leva-me até lá.


Chagando diante do ferido, a alegria furiosa do conde Ulrich expandiu-se. Insultou furiosamente o desconhecido. E, tomando a espada de um dos escudeiros, fez-lhe saltar o capacete.


—Belo cavaleiro — exclamou ele —, meus cães estão com fome. Vou-lhes dar para a ceia a tua cabeça.


O moribundo ergueu-se sobre um cotovelo e, com os olhos fulgurantes, disse:


—És um covarde, conde Ulrich. Eu me vingarei!


Mas o conde brandiu a espada e a cabeça do infeliz, cortada de um só golpe, rolou na relva.






Ulrich, segurando-a pelos cabelos, atirou-a à matilha. Os cães precipitaram-se para ela. Mas, desde que a farejaram, rosnaram surdamente e afastaram-se com a cauda baixa, uivando.


—Nem mesmo os cães a querem —zombeteou o conde. —Guardem o corpo, que pretendo fazer com ele alguma coisa.


E voltou ao castelo, apoiando-se aos dois homens de armas, que vergavam sob o seu peso.


Uma grande tempestade estrugiu na mesma noite e a grande nuvem negra que andou no céu tinha a forma de uma cabeça cortada.


Diante desse aviso celeste, todos os fidalgos presentes tiveram um arrepio, recordando as palavras do desconhecido: “Conde Ulrich, eu me vingarei”.




*


O fidalgo cumpriu sua palavra. Uma igreja ergueu-se diante de sua fortaleza com uma torre tão prodigiosamente alta que às vezes as nuvens se prendiam à sua cruz de bronze.


Antes de começar o edifício, tinham cavado uma fossa profunda, no qual o corpo sem cabeça do infeliz cavaleiro fora depositado. O conde, com suas próprias mãos, colocara o primeiro bloco de pedra dos alicerces sobre esta base: um cadáver. Depois, toda a construção se erguera com solidez de desafiar os séculos, toda de granito, assegurada por espessos grampões de ferro.


Cinquenta anos durou o trabalho. No dia em que quatro homens audaciosos e hábeis acabaram de fixar a cruz no alto do imenso campanário, o conde Ulrich, já velho, mas ainda robusto e temido, ergueu os braços, exclamando:


—Quero viver tanto quanto viverá esta igreja!


Nesta mesma noite, estando deitado, ouviu uma voz misteriosa, que lhe dizia:


“Conde Ulrich, teu pedido será satisfeito. Viverás tanto quanto a tua igreja e nada terás a temer por tua vida até o dia que encontrares um homem capaz de derrubá-la, sozinho, em um só instante”.


No dia seguinte, o fidalgo reuniu a sua corte e, orgulhosamente, relatou a predição. E todos, bradando “milagre!”, ajoelharam-se diante dele, porque temiam a sua cólera. Porém, os mais moços diziam no fundo de seu coração: “Ele teve um sonho”. E os mais velhos, conhecendo a jactância de Ulrich, pensavam: “Ele mentiu”.


*


Ulrich chegara aos cento e onze anos. Já não podia caminhar senão apoiado a um bastão e um menino de dez anos seria capaz de atirá-lo ao solo. Havia já cerca de meio século que uma moléstia misteriosa, curvando a sua estatura gigantesca, não lhe deixava forças sequer para erguer a espada do chão. Os que então manejavam armas não o tinham visto jamais cavalgar um corcel ou brandir uma lança.


Seus filhos e os filhos dos seus filhos tinham morrido todos. Para os demais parentes, era apenas um velho doente e fraco, de quem suportavam com impaciência uma velhice impotente.


Seus vizinhos orgulhavam-se ao ver que não tinham que recear os seus furores. E já não continham os risos de mofa quando o viam passar.


Humilhado e abatido, começou a desejar a morte. Morrer; não sofrer mais, não sobreviver a sua força e o seu prestígio. Era agora a única ambição que o destino lhe permitia. Aos males sem remédio, somente a morte é a grande consoladora. E a morte, que ceifava às cegas em torno dele os velhos e os moços, poupava sempre o velho conde.


Então Ulrich compreendeu o que jamais suspeitara. A predição que outrora lhe fizera tamanho orgulho não era uma recompensa: era uma vingança e um castigo. Assim como outros são condenados à morte, ele estava condenado à vida.


*


Intacta como no primeiro dia, a igreja erguia ao céu a cruz de bronze de seu campanário e o conde tremia ao pensar que nunca encontraria ninguém capaz de o libertar da vida abatendo aquele monumento de solidez espantosa. Que homem seria bastante forte para deitar abaixo em um só golpe aquela massa de granito ligado a ferro?


Mandou chamar o Cavaleiro Negro, o mais bravo de seus varões, o que jamais encontrara vencedor, e disse-lhe:


—Amigo, reclamo o auxílio de tua lança. Põe abaixo esta igreja e far-te-ei herdeiro de meu condado.


Mandou chamar Wegnauser, o caçador:


—Tu, que deténs um javali na carreira e sufocas um urso entre teus braços possantes, não és capaz de derrubar um monte de pedras?


Mandou que viesse Baumgartner, o lenhador.


—Não és tu o rei da floresta, o que abate com machado irresistível os carvalhos plantados por Deus e resistentes por centenas de anos?


A todos prometia riquezas imensas, todo o ouro que fossem capazes de carregar. Mas nenhum se atreveu a tentar a aventura.


—Eu sei combater homens, mas minha lança quebrar-se-ia de encontro a estas pedras — respondeu o Cavaleiro Negro.


—Todos os machados perderiam o fio sem abalar sequer uma destas muralhas — disse o lenhador.


E o caçador terrível deixou cair os braços com o ar de desânimo.


Começou a espalhar-se a notícia de que o conde Ulrich enlouquecera, pois pedia coisa impossível.


Passaram-se mais cinquenta anos, durante os quais, a cada dia, o velho fidalgo insultava ou suplicava a morte. Às vezes, empunhava a adaga, resolvendo enterrá-la ao peito, mas uma força sobrenatural — a convicção de que sua vida estaria irremissivelmente ligada à existência da igreja — detinha-lhe o braço.


Muitos anos ainda se passaram.


Certa noite, já no meio do século XIV, um homem magro e moreno, todo vestido de negro, chegou ao castelo e, apresentando-se ao conde Ulrich, disse:


—Eu sou aquele que esperas. Posso deitar abaixo a igreja que construíste.


—O velho ergueu ansiosamente a cabeça. Mas, depois de fitar o estranho, disse:


—Não zombes de minha desgraça. Eu sei que isto é impossível.


—Conde Ulrich, eu posso abater a igreja em um só momento. Um monge de Mainz inventou um pó maravilhoso, que permitirá esse prodígio.


O velho ergueu-se e, curvado, vacilante, conduziu o homem de preto até o subterrâneo de seu castelo. Ali havia montões de moedas Carlos Magno, os gulden, os dinheiros do rei Otto II, augustos de ouro do imperador Frederico III, os bactéates de ouro e prata, cunhados com o selo do arcebispo de Vichmann, de Henrique o Leão, dos margreves de Brandemburgo e de Frederico o Barba Roxa... Com um gesto, o fidalgo mostrou aquele tesouro e disse:


—É tudo teu... tudo, se derrubares a igreja.


Sem responder, o homem abriu um saco que trazia ao braço e encheu-o de ouro. Depois, partiu prometendo voltar em breve. Reapareceu três dias depois, colocou em uma das torres da fortaleza um saco do pó maravilhoso e partiu de novo com um saco de outo. Só se deteve quando não restava uma só moeda no subterrâneo. Então, ficou um dia inteiro, sozinho, fechado na igreja e, ao sair, declarou:


—Conde Ulrich, se não me engano, completa-se hoje seu 250º aniversário. Vamos celebrá-lo dignamente.


E partiu, deixando o velho fidalgo imóvel e ansioso diante do templo imenso.


De súbito, o silêncio tranquilo da noite foi cortado por um ruído formidável. Os camponeses, subitamente despertados, em pânico, e acudindo às portas, viram a parede principal da igreja aberta de cima a baixo por uma fenda incompreensível, diante da qual, não mais curvado, senão ereto em toda a sua gigantesca estatura, o Conde Ulrich esperava.




Uma segunda explosão abalou a atmosfera. Uma estátua do portal, projetada como por uma catapulta, caiu sobre um teto de palha e incendiou-o. Blocos de pedra saltavam para todos os lados, pondo em fuga os camponeses. As explosões continuavam precipitadas e cada uma eliminava um trecho do enorme edifício. Afinal, restava apenas o solo, no qual se destacava, concentrado e imóvel, o conde Ulrich.

Mas os alicerces saltaram também e, então, os que, de longe, observavam o sinistro, viram uma cena espantosa e terrível.


Da nuvem de pó e fumaça erguida pela última explosão, ergueu-se um vulto apavorante: um homem sem cabeça.


O conde Ulrich moveu-se, recuou, mas o fantasma aproximava-se mais depressa. Suas mãos estenderam-se e tocaram a fronte do matador. Ele caiu, hirto, finalmente livre do castigo aterrador.


*


Esta é a lenda que ainda se conta, no serão dos camponeses, ao longo do Reno, entre Mainz e Carlsruhe.

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Tradução e ilustrações de autores desconhecidos. Conto publicado originalmente na revista "Eu Sei Tudo", edição de junho de 1919. Fizeram-se pequenas adaptações textuais.




[1] Termo histórico alemão e holandês para moeda de ouro.

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