NO MAR - Conto Clássico de Horror - Guy de Maupassant
NO
MAR
Por
Guy de Maupassant
(1850-1893)
Há
pouco tempo, liam-se nos jornais as seguintes linhas:
“Boulogne-sur-Mer,
22 de janeiro ― Escrevem-nos:
Uma
desgraça horrível acaba de consternar a nossa população marítima, tão
perseguida pelo infortúnio há dois anos. O barco de pesca comandado pelo mestre
Javel, ao entrar no porto, foi arremessado para Oeste, indo despedaçar-se nos
rochedos do quebra-mar do molhe.
Apesar
dos esforços do salva-vidas e dos cabos arremessados por meio do canhão de
amarra, pereceram quatro homens e o grumete.
O
mau tempo continua. Receiam-se novos acidentes.”
Quem
é este Mestre Jarvel? Será o irmão do amputado?
Será
o pobre homem arrebatado pelas ondas e morto, provavelmente, sob os destroços
de seu barco despedaçado, aquele que, suponho, assistiu, faz agora dezoito anos,
a outro drama, terrível e simples como sempre são estes dramas formidáveis do
mar?
O
mais velho dos irmãos Javel era, neste tempo, dono de uma traineira.
A
traineira é o barco de pesca por excelência. Sólida a ponto de arrostar com
qualquer tempo, com o casco arredondado, constantemente balouçado pelas ondas
como uma rolha de cortiça, sempre à flor da água, sempre açoitado pelos ventos
ásperos e salinos da Mancha, revolve o mar, infatigável, com a vela a todo
pano, arrastando ao lado uma grande rede que varre o fundo do oceano, desprende
e agarra todos os peixes adormecidos nas rochas, os peixes chatos colados à
areia, os caranguejos pesados de patas reviradas, as lagostas de barbas finas e
agudas.
Quando
a brisa refresca e as ondas são pequenas, começa-se a pescar. A rede está
pregada a uma haste de madeira guarnecida de ferro, a qual desce por meio de
dois cabos que escorregam sob dois rolos colocados nas duas extremidades da
embarcação. Esta, impelida pelo vento e pela corrente, puxa consigo aquele aparelho
que devasta o fundo do mar.
Javel
leva a bordo o irmão mais novo, quatro homens e um grumete. Saíra de Bolonha
com um belo tempo claro para lançar a rede.
Ora,
não tardou que se erguesse uma grande ventania, sobrevindo uma borrasca que
obrigou a traineira a fugir. Alcançou as costas da Inglaterra. Mas o mar
furioso açoitava os rochedos, atirava-se à terra, tornava impossível a entrada
dos portos. O barquinho fez-se ao largo e voltou para as costas da França. A
tempestade tornava os molhes inabordáveis, envolvendo em espuma, em barulho e
em perigo todas as proximidades dos refúgios.
A
traineira tornou a partir, correndo por cima das ondas, balouçada, agitada,
escorrendo água, vergastada pelos rolos de espuma, mas valente, apesar de tudo,
acostumada àquele que às vezes a conservava cinco ou seis dias errante entre os
dois países vizinhos, sem conseguir aportar em nenhum.
Finalmente,
a tempestade abrandou quando estavam em alto mar e, não obstante as ondas serem
ainda mais fortes, o mestre mandou deitar a rede.
O
grande aparelho de pesca foi, portanto, lançado por cima da borda e dois homens
na proa e dois na popa começaram a deixar cair por cima dos rolos as amarras
que os seguravam. De repente, tocou no fundo. Mas, a uma onda maior, fazendo
inclinar o barco, o mais novo dos Javel, que estava na proa e comandava a
descida da rede, vacilou e o braço ficou-lhe preso entre a corda, que o abalo
fizera alargar um instante, e o rolo de madeira por onde ela escorregava. Fez
um esforço desesperado, tentando levantar a amarra com a outra mão. A rede,
porém, já arrastava e o cabo retesado não cedeu.
O
homem, crispado de dor, gritou.
Todos
acudiram. O irmão largou a cana do leme. Atiraram-se à corda, diligenciando
soltar o membro que ela triturava. Foi debalde.
―
Devemos cortá-la ―disse um marujo.
E
tirou do bolso uma grande faca que, em dois golpes, podia salvar a vida do
Javel caçula.
Mas
cortar era perder a rede, que valia muito dinheiro: mil e quinhentos francos. E
a corda pertencia ao irmão mais velho, que se empenhava em salvar a sua
propriedade.
―
Não cortes, não cortes, espera! ― gritou ele com o coração torturado. ―Espera!
E
correu para o leme, pondo a barra toda abaixo.
O
barco mal obedeceu, paralisado por aquela rede que lhe imobilizava o impulso, e
arrastado, além disso, pela força do vento e da corrente.
O
Javel mais novo deixara-se cair de joelhos, com os dentes cerrados, o olhar
desvairado. Nada dizia. O irmão voltou, temendo sempre a faca de algum
marinheiro.
―
Espera, não cortes. Vamos lançar âncora.
Lançou-se
a âncora, largando-se a corrente toda. Em seguida, o mestre Javel virou-se para
o cabrestante a fim de alargar as amarras.
Estas,
ao final, cederam, e saltou-se o braço inerte, dentro da manga de lã
ensanguentada.
O
Javel caçula parecia idiota. Despiram-lhe a camisa e viram uma coisa horrível,
uma massa de carne de onde o sangue esguichava em ondas como se fosse lançado
por uma bomba. Ele, então, olhou para o braço e murmurou:
―
Pronto.
A
hemorragia formava um lago na tolda do barco. Um marujo gritou:
―
Vai esvair-se. É preciso atar a veia.
Pegaram
um cordel, um grosso cordel escuro e untado em alcatrão e, enlaçando o membro,
por cima da ferida, apertaram com toda força. Os jatos de sangue diminuíram
pouco a pouco. Acabaram por cessar completamente.
O
Javel caçula ergueu-se. O braço pendia-lhe ao longo do corpo. Ele segurou-o com
a outra mão, levantou-o, virou-o, sacudiu-o. Tudo estava partido. Os ossos,
esmigalhados. Apenas os músculos seguravam aquele pedaço de seu corpo. Ele
contemplava-o com o olhar triste, refletindo. Depois, sentou-se em cima de uma
vela dobrada, e os camaradas aconselharam-no a que molhasse constantemente a
ferida para evitar o mal negro[1].
Puseram
um balde ao seu lado e ele, de minuto em minuto, enchia um copo e banhava a
ferida hedionda, deixando correr sobre ela um fio d’água clara.
―Ficarias
melhor lá embaixo ― disse-lhe o irmão.
Ele
desceu, mas, passada uma hora, retornou. Não se sentia bem sozinho. Além disso,
preferia o ar livre. Tornou a sentar-se na vela e continuou a lavar o braço.
A
pesca era proveitosa. Ao lado dele jaziam grandes peixes de ventre branco,
agitados por convulsões mortais. Javel contemplava-os sem deixar de regar as
carnes esmigalhadas.
Quando
iam chegar a Bolonha, levantou-se outro tufão.
E o barquinho recomeçou a sua carreira louca, saltando e voltando-se
para todos os lados, sacudindo o pobre ferido.
Anoiteceu.
O tempo esteve bravio até o amanhecer. Ao nascer do sol, avistou-se novamente a
Inglaterra. Mas, como o mar estava mais suave, partiram para a França,
bordejando.
À
tarde, o Javel mais novo chamou os camaradas e mostrou-lhes sinais negros, uma
feia aparência de podridão na parte do membro que pendia.
Os
marujos olhavam, dando cada um a sua opinião. Viraram o membro. Cheiraram-no.
Disse
o irmão:
―
O melhor, agora, é jogar isto ao mar.
Mas
o mais novo zangou-se:
―
Ah, isso é que não! Não quero! É o meu braço e, a meu ver, ele me pertence!
Pegou
o braço e o segurou entre as pernas.
―
Nem por isso deixará de apodrecer ―respondeu o mais velho.
Então
o ferido teve uma ideia. Para conservar o peixe, quando o traziam muito tempo
no mar, empilhavam-no em barricas de sal.
―
Não é possível metê-lo na salmoura? ―perguntou ele.
―
Sim, é possível ―declaram os outros.
Despejaram
uma das barricas, já cheia com a pesca dos dias antecedentes; e puseram o braço
mesmo no fundo. Deitaram-lhe sal por cima e tornaram a colocar os peixes, um
por um.
Um
dos marujos soltou o seguinte gracejo:
―
O diacho é se a gente o vende no mercado.
Todos
riram, exceto os irmãos.
O
vento continuava. Bordejou-se ainda à vista de Bolonha até o dia seguinte. O
ferido continuava a deitar água na ferida, sem cessar.
―
É provável que seja o negro ―dizia um.
―
É preciso deitar água salgada ―declarava outro.
Foram
buscar água salgada e entornaram-na por cima da chaga. O ferido ficou lívido, rangeu os dentes,
torceu-se um pouco, mas não gritou.
Depois,
quando o ardor abrandou mais, disse ao irmão:
―
Dá cá a faca.
O
irmão estendeu a faca.
―
Segura-me o braço no ar, bem esticado, e não largues.
Fizeram-lhe
o que pedia.
Ele,
então, começou a cortar. Cortava devagar, com reflexão, separando os últimos
tendões com aquela lâmina aguda como a de uma navalha afiada. Pouco depois,
restava-lhe apenas um coto. Saltou um suspiro profundo e declarou:
―
Foi preciso. Eu estava numa situação terrível.
Parecia
aliviado e respirava com força. Começou outra vez a regar o pedaço de membro
que lhe restava.
A
noite foi péssima e não puderam chegar à terra.
Quando
rompeu o dia, o jovem Javel pegou o braço amputado e o examinou atentamente. A
putrefação fazia-se evidente. Os camaradas foram também examiná-lo e o passavam
de mão em mão. Apalpavam-no. De vez em quando, o jovem Javel levantava-se e
passeava pelo barco de um lado para o outro.
O
irmão, que segurava a barra do leme, seguia-o com a vista, abanando a cabeça.
Acabaram
por entra no porto.
O
médico examinou a ferida e declarou-a em bom caminho. Fez um curativo completo
e ordenou ao ferido que descansasse. Javel, porém, não quis deitar-se sem pegar
novamente o braço e voltou ao porto a fim de descobrir a barrica, que marcara
com uma cruz.
Despejaram-na
diante dele e entregaram-lhe o membro, bem conservado na salmoura, enrugado,
refrescado. Javel o embrulhou numa toalha que levara para esse fim e voltou
para casa.
A
mulher e os filhos examinaram demoradamente aquele pedaço do pai, apalpando os
dedos, tirando as pedrinhas de sal metidas nas unhas. Depois mandaram chamar o
marceneiro, que tomou as medidas de um caixãozinho.
No
dia seguinte, a tripulação completa da traineira acompanhou o enterro do braço
decepado. Os dois irmãos, um ao lado do outro, guiavam o cortejo. O sacristão
da paróquia levava o cadáver debaixo do braço.
O
Javel mais novo deixou de navegar. Obteve um em humilde emprego no porto e
quando, mais tarde, falava naquele acidente a alguém, dizia-lhe
confidencialmente, em voz baixa:
―
Se o meu irmão tivesse deixado cortar a rede, eu ainda teria o meu braço, com
toda certeza. Mas ele só enxergava os seus pertences.
Texto publicado
originalmente na revista “A Leitura – Magazine Literário”, vol. XI, Lisboa,
1895. Tradução de autor desconhecido. Pesquisa, recuperação, atualização
ortográfica e adaptação textual: Paulo Soriano.
Ilustração de Victor Hugo.
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[1] Ou seja,
carbúnculo: afecção gangrenosa, que provoca lesões purulentas, produzida pela
inoculação de princípios pútridos de origem bacteriana.
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