A GALINHA DEGOLADA - Conto Clássico de Horror - Horacio Quiroga
A GALINHA DEGOLADA
Horacio
Quiroga
(1878
– 1937)
Tradução
de Paulo Soriano
O
horror emergente das narrativas de terror nem sempre resulta da ação de entes
ou poderes sobrenaturais. A rigor, dela prescinde. Em “A Galinha Degolada”,
conto de feições naturalistas — certamente a obra mais conhecida do escritor
uruguaio Horacio Quiroga (1879
—1837), grande mestre do conto latino-americano, cuja existência foi tão
trágica quanto a de seus inquietos
personagens —, o horror é levado à sua mais pungente manifestação: um casal
infeliz, atormentado por uma prole hedionda — quatro filhos idiotas —, vê a sua
última esperança de descendência sã naufragar, cruelmente, num mar de sangue...
O
dia todo, sentados no banco do pátio, ficavam os quatro filhos idiotas do casal
Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos estúpidos, e volviam
a cabeça com a boca aberta.
O
pátio era de terra, cercado a oeste por um muro de tijolos. O banco ficava
paralelo ao muro, a cinco metros, e ali os quatro se mantinham imóveis, com os
olhos fixos nos tijolos. O Sol se ocultava por trás do muro e, ao declinar, os
idiotas faziam a festa. A luz ofuscante a princípio chamava-lhes a atenção e,
pouco a pouco, os seus olhos se animavam. Riam, ao final, estrepitosamente,
congestionados pela mesma hilaridade ansiosa, contemplando o Sol com bestial
alegria, como se ele fosse comida.
Outras
vezes, perfilados no banco, zumbiam horas inteiras, imitando o bonde elétrico.
Os ruídos fortes sacudiam-nos em sua inércia, e, então, eles corriam, mordendo
a língua e mungindo, ao redor do pátio. Mas quase sempre estavam apagados na
sombria letargia do idiotismo, e passavam o dia todo sentados no banco, com as
pernas suspensas e quietas, empapando as calças com a saliva pegajosa.
O
maior tinha doze anos e o menor, oito. Em todo o seu aspecto sujo e desvalido,
notava-se a absoluta falta do mínimo que fosse cuidado maternal.
Todavia,
esses quatro idiotas haviam sido, um dia, o encanto dos pais. Aos três meses de
casados, Mazzini e Berta orientaram seu íntimo amor de marido e mulher, e de
mulher e marido, num projeto especialmente vital: um filho. Que melhor auspício
para dois apaixonados que essa honrada consagração de seu carinho, libertado do
vil egoísmo de um mútuo amor sem nenhum objetivo, e, o que é pior para o amor
mesmo, sem esperanças susceptíveis de renovação?
Era
o que sentiam Mazzini e Berta. E quando o filho chegou, após quatorze meses de
casados, acreditaram que a sua felicidade estava cumprida. A criança cresceu
bela e radiante até um ano e meio. Mas, no vigésimo segundo mês, numa certa
noite, convulsões terríveis abalaram o menino e, na manhã seguinte, ele já não
mais reconhecia os pais. O médico o examinou com essa atenção profissional de
quem está visivelmente buscando as causas do mal do filho nas enfermidades dos
pais.
Depois
de alguns dias, os membros paralisados recobraram o movimento. Mas a
inteligência, a alma e até mesmo o instinto haviam-no abandonado de todo.
Ficara completamente idiota, babão, pendente, morto para sempre sobre os
joelhos da mãe.
―
Filho, meu filho querido! ― ela soluçava sobre aquela espantosa ruína de seu
primogênito.
O
pai, desolado, acompanhou o médico à saída de casa.
―
Ao senhor posso dizer: creio que é um caso perdido. Poderá melhorar, educar-se
em tudo que a idiotia permita. Mas nada além disso.
―
Sim, sim! ― assentia Mazzini. ― Mas, diga-me: o senhor crê que o caso é
hereditário? Que…
―
Quanto à herança paterna, já lhe disse o que achava quando vi seu filho. Quanto
à da mãe, tem ela um pulmão que não respira direito. Não vejo nada mais, mas
noto uma respiração um tanto ríspida. Faça com que ela seja examinada
detidamente.
Com
a alma destroçada pelo remorso, Mazzini redobrou o amor ao filho, o pequeno
idiota que pagava pelos excessos do avô. Ainda teve que consolar, amparar sem
trégua Berta, ferida nas profundezas de seu ser por aquele fracasso de sua
maternidade juvenil.
Como
é natural, o casal pôs todo o seu amor na esperança de outro filho. Ele nasceu,
e a saúde e limpidez do seu sorriso reacenderam o futuro extinto. Mas, aos
dezoito meses de idade, as mesmas convulsões do primogênito se repetiram, e, no
dia seguinte, o segundo filho despertou idiota.
Desta
feita, os pais caíram em profundo desespero. Ora, seu sangue e seu amor estavam
amaldiçoados! Seu amor, sobretudo! Ele contava com vinte e oito anos; ela, com
vinte e dois. Mas toda essa apaixonada ternura não lograra criar um átomo de
vida normal. E já não mais pediam beleza e inteligência, como sucedera no caso
do primogênito, mas apenas um filho como todos os filhos!
Do
novo desastre brotaram novas labaredas do amor dolorido, uma louca vontade de
redimir de uma vez por todas a santidade de sua ternura. Vierem gêmeos e, ponto
por ponto, repetiu-se o processo dos mais velhos.
Mas,
acima de sua imensa amargura, restava a Mazzini e a Berta uma grande compaixão
por seus quatro filhos. Tiveram que arrancar, do limbo da mais funda
animalidade deles, não suas almas, mas próprio o instinto abolido. Eles não
sabiam deglutir, mudar de lugar, nem mesmo sentar-se. Aprenderam, finalmente, a
caminhar, mas em tudo esbarravam, por não darem conta dos obstáculos. Quando
eram banhados, mugiam até a face injetar-se de sangue. Animavam-se tão somente
quando comiam, viam cores brilhantes ou ouviam trovões. Então riam, deitando
fora a língua e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. Tinham, em
compensação, certa faculdade imitativa; mas não se pôde obter nada além disso.
Com
os gêmeos parecia concluída a aterradora descendência. Mas, passados três anos,
desejaram ardentemente ter outro filho, confiando em que o longo tempo
transcorrido houvesse aplacado a fatalidade.
Mas
não eram satisfeitas as suas esperanças. E, nesse ardente desejo, que se
exasperava em razão de sua infrutuosidade, azedaram-se. Até esse momento, cada
qual havia tomado sobre si a parte que lhe correspondia na miséria de seus
filhos; mas a desesperança de redenção ante as quatro bestas, que haviam
nascido deles, deu vazão a essa imperiosa necessidade de culpar os outros, que
é patrimônio específico de corações inferiores.
Iniciaram
com a mudança de pronome: seus
filhos. E como, sob o insulto, havia a insídia, a atmosfera se carregava.
―
Acho ― disse-lhe certa noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava as mãos ―
que você poderia manter os garotos mais limpos.
Berta
continuou a ler, como se não tivesse ouvido.
―
É a primeira vez ― replicou um pouco depois ― que o vejo preocupado com estado
de seus filhos.
Mazzini
voltou ligeiramente a face para ela, com um sorriso forçado.
―
De nossos filhos, parece-me…
―
Bem, de nossos filhos. Assim é melhor? ― ela ergueu os olhos.
Desta
feita, Mazzini expressou-se claramente:
―
Acho que você não vai dizer que a culpa é minha, vai?
―
Ah, não! ― Berta sorriu, muito pálida. ― Mas tampouco é minha, suponho! Só
faltava esta! ― murmurou.
―
Só faltava o quê?
―
Se alguém tem culpa, não sou eu, entenda bem! Era isto o que eu queria lhe
dizer!
O
marido olhou-a por um momento, com brutal desejo de insultá-la.
―
Deixe para lá! ― disse, secando finalmente as mãos.
―
Como queira! Mas se você estava querendo dizer…
―
Berta!
―
Como queira!
Este
foi o primeiro choque e sucederam-se outros. Mas, nas inevitáveis
reconciliações, suas almas se uniam com arrebatamento redobrado e loucura por
outro filho.
Nasceu,
assim, uma menina. Viveram dois anos com a angústia à flor da alma, esperando
sempre outro desastre. Nada aconteceu, todavia, e os pais puseram nela toda a
sua complacência, que a menina levava aos mais extremos limites do mimo e da
malcriação.
Se
ultimamente Berta ainda cuidava dos filhos, com o nascimento de Bertita
esqueceu-se quase que totalmente deles. Sua tão só lembrança a horrorizava,
como se eles fossem algo atroz que a obrigaram a cometer. Ocorria o mesmo, mas
em menor grau, com Mazzini.
Mas
nem por isso a paz havia acorrido às suas almas. O mínimo mal-estar da filha
desencadeava, com o terror de perdê-la, os rancores daquela sua prole pútrida.
Haviam acumulado fel por tempo demais para que as vísceras não ficassem
distendidas e, ao menor contato, o veneno era expelido. Desde a primeira
altercação envenenada, perderam o recíproco respeito. E, se há algo a que o
homem se deixa arrastar, com cruel prazer, tal consiste, quando já se deu o
primeiro impulso, em humilhar completamente uma pessoa. Antes, eles se continham
pelo mútuo fracasso; mas, agora, como o êxito havia chegado, cada qual,
atribuindo o sucesso a si mesmo, sentia maior a infâmia nas quatro aberrações
que o outro o havia forçado a gerar.
Com
tais sentimentos, não havia afetos possíveis para os filhos mais velhos. A
empregada os vestia, dava-lhes de comer e punha-os na cama com visível
brutalidade. Quase nunca lhes dava banho. Passavam dia todo sentados de frente
para o muro, privados da mais remota carícia.
Assim,
Bertita completou quatro anos e, nesta noite, como resultado das guloseimas ―
aos pais era absolutamente impossível negá-las ―, a criancinha teve alguns
calafrios e febre. E o temor de vê-la morrer, ou ficar idiota, tornou a reabrir
a eterna chaga.
Fazia
três horas que não se falavam e o motivo foi, como quase sempre, os fortes
passos de Mazzini.
―
Meu Deus! Você não pode caminhar mais levemente? Quantas vezes...
―
Bem, é que me esqueço. Acabou! Não fiz de propósito.
Ela
sorriu, desdenhosa:
―
Não acredito tanto em você!
―
Nem eu, jamais, acreditei muito em você... tuberculosa!
―
O quê? O que você disse?
―
Nada!
―
Sim, ouvi alguma coisa! Veja: não sei o que disse, mas lhe juro que prefiro
qualquer coisa a ter um pai como o que você teve!
Mazzini
empalideceu.
―
Afinal! ― murmurou com os dentes cerrados. ― Afinal, víbora, você disse o que
queria dizer!
―
Sim, víbora, sim! Mas tenho pais sadios, ouve-me? Sadios! Meu pai não morreu em
delírio. Eu poderia ter filhos como os de todo mundo! Esses são seus filhos; os
quatro, seus!
Mazzini
igualmente explodiu:
―
Víbora tuberculosa! Foi isso o que eu disse, o que queria dizer. Pergunte,
pergunte ao médico quem tem a maior culpa pela meningite de seus filhos: meu
pai ou seu pulmão esburacado, víbora!
Continuaram
cada vez com maior violência, até que um gemido de Bertita selou
instantaneamente as suas bocas. A uma da manhã, a ligeira indigestão havia
desaparecido, e, como ocorre fatalmente com todos os casais de jovens que se
amaram intensamente pelo menos uma vez, a reconciliação chegou, tanto mais
efusiva quanto infames foram os insultos.
Amanheceu
um esplêndido dia e, ao se levantar, Berta cuspiu sangue. As emoções e a noite
malpassada tinham, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a reteve, abraçada, por um
longo tempo, e ela chorou desesperadamente, mas nenhum deles se atreveu a dizer
uma única palavra.
Às
dez horas, resolveram sair depois do almoço. Como o tempo era curto,
ordenaram à empregada que matasse uma galinha.
O
dia radiante havia arrancado os idiotas do banco. Assim, enquanto degolava a
galinha na cozinha, dessangrando-a lentamente ― Berta havia aprendido com sua
mãe este bom modo de bem conservar a frescura da carne ―, a empregada sentiu
algo como uma respiração atrás de si. Voltou-se e viu os quatro idiotas, com os
ombros colados um no outro, olhando, estupefatos, a operação... Vermelho...
vermelho...
―
Senhora! Os garotos estão aqui, na cozinha!
Berta
chegou. Não queria que eles jamais pisassem ali. E, nem mesmo nessas horas de
pleno perdão, esquecimento e felicidade reconquistada, podia evitar tão
horrível visão! Porque, naturalmente, quanto mais intensos eram os
arrebatamentos de amor ao marido e à filha, mais irritado era o seu humor com
os monstrinhos.
―
Pois que saiam, Maria! Ponha-os para fora! Ponha-os para fora, estou mandando!
As
pobres quatro bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, voltaram para o banco.
Depois
de almoçar, saíram todos. A empregada foi a Buenos Aires e o casal a um passeio
pelas quintas. Ao cair do sol, voltaram; mas Berta quis cumprimentar por um
momento as vizinhas da frente. A filha logo escapuliu para casa.
Entrementes,
os idiotas não haviam deixado o banco durante a tarde inteira. O Sol já havia
transposto o muro, começava a afundar-se, e eles continuavam olhando os
tijolos, mais inertes do que nunca.
De
repente, algo se interpôs entre seus olhos e o muro. A irmã, enfadada de cinco
horas de vigilância, queria obedecer por conta própria. Parada ao pé do muro,
olhava para o alto, pensativa. Queria subir, não havia dúvida. Por fim,
decidiu-se por uma cadeira sem assento, mas não era suficiente. Recorreu,
então, a uma lata de querosene, e seu instinto topográfico a orientou a
aprumá-la na vertical, com o que triunfou.
Os
quatro irmãos, com olhar indiferente, viram como a irmã conseguia pacientemente
dominar o equilíbrio, e como, nas pontas dos pés, apoiava a garganta na
plataforma do muro, entre as mãozinhas retesadas. Viram-na olhar para todos os lados, e buscar apoio com
o pé, para subir ainda mais.
Mas
o olhar dos idiotas havia-se animado; uma mesma luz insistente fixava-se em
suas pupilas. Não afastavam os olhos da irmã, enquanto uma crescente sensação
de gula bestial ia transformando cada uma das linhas de seus rostos.
Lentamente, avançaram até o muro. A pequena, tendo conseguido fixar um pé, já
ia montar a cavalo e passar ao outro lado, mas sentiu-se agarrada pela perna.
Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram medo.
―
Solte-me! Deixe-me! ― gritou, sacudindo a perna. Mas foi puxada.
―
Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai! ― chorou imperiosamente. Ainda tentou
agarrar-se à borda do muro, mas se sentiu arrancada e caiu.
―
Mamãe, ai! Ma... ― não pôde gritar mais. Um deles apertou-lhe o pescoço,
afastando-lhe os cachos como se fossem penas, e os outros a arrastaram por uma
perna até a cozinha, onde naquela manhã haviam dessangrado a galinha, bem
segura, arrancando-lhe a vida segundo por segundo.
Mazzini,
na casa da frente, julgou ter ouvido a foz da filha.
―
Acho que ela o chama ― disse a Berta.
Prestaram
atenção, inquietos, mas não ouviram mais nada. Contudo, um momento depois, se
despediram, e, enquanto Berta ia guardar o seu chapéu, Mazzini avançou ao
pátio.
―
Bertita!
Ninguém
respondeu.
―
Bertita! ― elevou mais a voz, já alterada.
E
o silêncio foi tão fúnebre para o seu coração sempre aterrorizado que a espinha
regelou com um horrível
pressentimento.
―
Minha filha! Minha filha! ― correu, já desesperado, para os fundos. Mas, ao
passar em frente à cozinha, viu no chão um mar de sangue. Empurrou
violentamente a porta entreaberta e lançou um grito de horror.
Berta,
que a seu turno já acorrera, ao ouvir o angustiante chamado do pai, escutou o
grito e respondeu com outro. Mas, ao precipitar-se na cozinha, Mazzini, lívido
como a morte, se interpôs, detendo-a.
―
Não entre! Não entre!
Berta
chegou a ver o chão inundado de sangue. Só pôde erguer os braços à cabeça e
afundar-se no marido com um suspiro rouco.
ameiiiiiiiiiiiiiii
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