A BRUXA DA ALDEIA - Conto de Terror - Aldo Addobbati
A BRUXA DA ALDEIA
Aldo Addobbati
V.Rev.ª. Sr. Frade Inquisidor:
Sinto-me na obrigação de participar
a V.Rev.ª. os acontecimentos que se sucederam à sua partida, com o
seu distinto séquito, no dia 26 de abril deste glorioso ano de Nosso Senhor
Jesus Cristo de 1475, após um reconfortante descanso dominical.
Lembra-se o senhor que, não faz muito
tempo, conduzi a viúva do antigo taberneiro da vila de Ulme à sua presença,
quando V.Rev.mª., por prudente e oportuna determinação do Arcebispo de Salzburgo, veio, em nome da
verdadeira Fé, a esta freguesia em trabalho de correição inquisitorial.
A mulher conduzida aos seus cuidados,
chamada Maria Tavernenhalter, tivera uma séria altercação, em plena rua, com
uma de suas vizinhas. Tomando conhecimento de que seu filho mais novo fora, por
fato de suma importância, imoderada e justamente surrado por Anna Schafverkäufer,
a viúva correu à procura de sua antiga desafeta em busca de satisfações. Satisfações indevidas, pois o seu filho, de seis anos, pisara — e pouco importa se intencionalmente ou não — o pé esquerdo da respeitável Anna, e todos sabem Ulme o quanto sofre a matrona com os calos que lhe causam as suas apertadas e graciosas botinas.
Como experto inquisidor, bem sabe o
senhor o quão é excêntrico e dissimulado o temperamento de Maria Tavernenhalter,
cujo nome é uma afronta à pureza da mãe de Deus. Os que só lhe conhecem a
superfície consideram-na uma mulher silenciosa, tranquila e reservada, talvez
até mesmo bondosa, porque não observaram com acuidade a malévola frieza de seu
olhar. A ruidosa Anna, de sua feita, era uma matrona corpulenta, de gestos
expansivos, por natureza agressiva e descomedida. Mas, tirantes estes excessos,
tão comuns em mulheres de índole sanguínea, deve reconhecer-se que era dona de
um bom coração.
Quando estes dois tão opostos
temperamento se acarearam bem à frente da pequenina Igreja dedicada a São Bento
de Núrcia, da qual eu sou o humilde pároco, era como se se confrontassem a noite
e o dia. Da mesma forma que sangra o céu em tal ocasião, era de se esperar que
algo de funesto estivesse por acontecer.
Maria se aproximou de Anna Schafverkäufer
e, com em voz baixa, quase inaudível, disse-lhe algo ao ouvido, cujo sentido
escapou aos circunstantes. Mas todos estão de acordo que não foi algo
lisonjeiro. Mal ouviu as surdas palavras da taverneira, a mulher roliça,
conforme a sua natureza imoderada e explosiva, desatou-se em impropérios e
insultos vigorosos. Maria Tavernenhalter, porém, manteve uma calma absoluta,
sustentando o olhar glacial, afiado como a ponta de uma flecha, nos olhos
frenéticos da oponente.
Sabe V.Rev.ª. que muitos destes
espíritos sóbrios, tão elogiados pela tranquila moderação, servem-se de uma
carapaça para esconder, abjetamente, uma alma escravizada pelo demônio.
Enquanto o rosto permanece sossegado, e todos os seus gestos evidenciam um
controle absoluto, cada fibra de seu ser agita-se e convulsiona como víboras no
ninho.
Pois, num átimo, num rompante
inesperado, a viúva avançou no pescoço de sua desafeta. E o fez com tanto vigor
que foram necessários quatro ou cinco homens para livrar a garganta de Anna
daquelas tenazes pálidas que eram os dedos de Maria.
Quando se sentiu agarrada e subjugada
pelos confrades aldeões, a viúva explodiu numa única e poderosa imprecação:
— Que o diabo te carregue, Anna Schafverkäufer!
Que o demônio te arraste, hoje mesmo, às profundezas do Inferno!
E foi tão poderosa e devastadora a
praga subitamente rogada, tão eficaz em seus propósitos maledicentes que, mal
Maria pronunciou tão nefastas palavras, o demônio penetrou no corpo da vizinha.
E, derrubando-a na calçada, fez com que, imediatamente, tivesse a perna e o
braço esquerdos paralisados.
Foi neste momento que eu, tendo
ouvido da sacristia toda aquela bulha, corri à rua bem a tempo de evitar que o
sangue de Maria fosse imediatamente derramado.
Surpresos e estarrecidos, vendo que
Maria — não com golpes de mão, mas com o simples poder da palavra — deixara a
inimiga inerte no chão, presa de moléstia arrasadora, os circunstantes
concluíram, judiciosamente, que somente com a providencial intervenção do demônio
aquela mulher tão frágil pudera vencer a inimiga. Amedrontados, quiseram matar
poderosa a bruxa ali mesmo, prontamente.
A minha intervenção, sabe melhor que
eu V.Rev.ª. , não teve por escopo proteger a feiticeira de seus algozes.
Em fazendo a bruxa escapar por entre as mãos de seus inimigos, agi em defesa da
Fé cristã, pois não é admissível que se entregue a uma turba ignota a punição
que somente é reservada aos espíritos sublimes e às almas elevadas dos prelados
da Santa Inquisição. Permiti-lo seria a maior e mais grave espécie de heresia
que um padre de aldeia poderia cometer.
Lembra-se o senhor que o demônio, ao
invadir o corpo da pobre mulher, não lhe quis apenas macular o corpo, senão,
sobretudo, fazer-lhe perder a própria alma.
A astúcia do demônio vai muito mais além do que imaginamos.
Quando, naquela noite, quis eu ouvir
a confissão da mulher semiparalisada, para encomendar-lhe a alma imortal ao
Todo-Poderoso, não o pude. Fui impotente, ademais, de fazer com que a mulher
comungasse e recebesse a extrema-unção.
Sim!
Para a minha surpresa, vi que não
apenas os membros daquela robusta e até então saudável senhora foram afetados
pela maledicência do demônio. O diabo havia repuxado os seus lábios e travado a
sua língua. Por mais que a mulher se
esforçasse, não podia confessar os pecados, porque, com a língua habilmente
tolhida pelo dianho, somente sons pastosos e inarticulados, completamente
incompreensíveis, saíam de sua boca retorcida. Sabia muito bem o astuto diabo
que, travando a sua fala, impedia-a de confessar e de receber a Santa Comunhão.
E que, sem a confissão e comunhão, morreria a mulher em pecado, já que há pouco
imprecara contra a inimiga. O vaticínio da viúva Maria se cumpriu presta e
rigorosamente: Lúcifer arrastou a alma de Anna Schafverkäufer, naquela mesma
noite, às profundezas do Inferno. Se dúvidas havia quanto à tenebrosa natureza
do sortilégio que a matara naquela noite de primavera, agora estavam todas
dissipadas.
Já na manhã seguinte, conduzi a
prisioneira à sua augusta presença e lhe relatei tudo o quanto havia sucedido.
Mas, já ao cair da noite, chamou-me V.Rev.ª.
Como é perspicaz, como é sagaz o
Demônio!
Contou-me o senhor, quando acudi ao
seu chamado, que Maria Tavernenhalter não chegara a confessar; que, ao simples
vislumbre dos úteis instrumentos de tortura, caiu prostrada sob as lajes da
cave, tomada de um pavor indizível; que, prontamente, parou de respirar; que
seus membros se contraíram numa rigidez marmórea; que, enfim, astutamente, o
diabo a livrara da purificante morte na fogueira. Poupara o demônio a sua
discípula da Santa Justiça instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra.
Quando, na manhã seguinte, os
familiares da defunta reclamaram-lhe o cadáver, V.Rev.ª. não o negou. Mas
impôs a condição de que a inumação deveria ser feita para além da área
consagrada do cemitério da aldeia, no lugar onde se enterram os infiéis, os
hereges e os suicidas. Determinou,
também, que o corpo da defunta fosse metido num ataúde, ainda que improvisado,
para que não trouxesse infertilidade aos campos lindeiros ao cemitério aldeão.
Assim foi feito.
Na mesma noite em que a bruxa desceu
à sepultura, todavia, o demônio operou o seu mais portentoso prodígio.
À hora em que alguns poucos aldeões
retornavam para casa, após a faina no campo, depararam-se com um fato
aterrador.
Um enorme cão negro, enviado pelo
diabo, escavava o sepulcro da feiticeira. Agitava as patas com fúria e
impaciência, lançando para trás e para o ar punhados e mais punhados da terra
sacrílega. Sôfrego, gania alucinado, enquanto cavoucava, sinistramente, quase
em delírio, a terra embrutecida pela hediondez daquilo que lhe habitava as
entranhas. Às vezes, de entremeio a ganidos roucos, quase humanos, estacava
aquele revoar de patas ensandecidas. Uivava, latia e babava. Latia e voltava a
uivar numa lástima assustadoramente plangente. E, depois, repunha-se a escavar
com ansiedade e rapidez redobradas. Dúvida haveria que aquela premência não era
coisa de Satanás?
Os aldeões aproximaram-se da cova e
olharam para o enorme buraco aberto pelo cão. Então viram que a parte do caixão
exposta à superfície tremia e que de seu
interior vinham ruídos desesperados de socos e pontapés. Ouviu-se, depois, o
estalo seco da madeira leve fraturando e viu-se uma mão ensanguentada
insinuar-se por entre a fenda recém-aberta.
Tomados de pavor, os camponeses acorreram
à minha procura. Logo a notícia se espalhou pelo povoado. Corremos todos, de
tochas às mãos, ao cemitério e constatamos que o que se dissera era verdade.
Mandei remover por completo a tampa esfacelada do caixão.
A bruxa estava viva!
Veja V.Rev.ª. o que Satanás é
capaz de fazer! Primeiro, arrasta consigo ao Inferno uma alma que poderia ser
salva; depois, devolve à Terra uma alma condenada. À cristã, confere o Inferno;
à herege, o mundo. O demônio ressuscitou a discípula, depois de subtraí-la ao
fogo purificador, para que pudesse, por intermédio da bruxa, perpetrar novos
malefícios na Terra.
Mas Deus não permitiu que se
consumasse tão horrendo sortilégio. Como instrumento oportuno de Nosso
Salvador, eu estava presente. Devolvi a bruxa aos grilhões e a encerrei na
cadeia.
Deu-me V.Rev.ª. — investido que está, por desígnio do arcebispo
de Salzburgo, na autoridade de Inquisidor-Geral de nossa região —, antes de
partir, em razão dos graves delitos contra a fé que aqui se cometem, poderes
extraordinários de inquirição.
Pessoalmente, procedi ao interrogatório
da nefanda mulher. Às primeiras dores redentoras da tortura, ela logo
confessou. Disse que copulava com o diabo desde que o seu marido faleceu; que,
com ele, aprendeu a arte dos sortilégios e das pragas fulminantes; que desceu
ao Inferno e lá permaneceu por dois dias; que voltou ao mundo por obra e graça
do próprio Satanás.
Amanhã, esta tão terrível e poderosa
bruxa, que tantos malefícios e sofrimentos causou ao povo de nossa vila (não
apenas para o gozo e regozijo próprios, mas, também, para de delícia de Satanás)
será queimada viva.
Assim seja.
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