A CRUZ DO DIABO - Conto Clássico de Terror - Saturnino Calleja



A CRUZ DO DIABO
Saturnino Calleja
(1853 - 1915)
Tradução de Paulo Soriano


Numa cidade de Navarra, havia um senhor que era o terror de todas aquelas terras: ele era tão malévolo que até mesmo o demônio o invejava.

Era ele tão perverso que o rei o repreendeu e o desterrou do reino.

Enquanto ele vivia naquelas plagas, ouvia-se continuamente a trombeta de caça. Os cavalos daqueles homens e os de seus amigos devastavam as terras semeadas, atropelavam casas, matavam jovens e anciãos, punham fogo nas vivendas, choças e casas. E tal medo infundiam no ânimo daquelas pobres gentes que, mal soava a trombeta de caça nas portas do castelo, ou viam chegar a turba em cavalgada, punham-se a tremer, fechavam as portas e janelas e não cessavam de rezar.

Quando o senhor foi desterrado, a região ficou tranquila, recobrando a vida que antes tinha. Os campos frutificavam e produziam tanto que era uma bênção de Deus.

Passaram-se os anos e o castelo entrou em ruínas.

Ninguém mais se recordava daquele senhor, nem de suas façanhas, quando se apossou do castelo uma súcia de bandoleiros, tão invisível quanto impossível de encontrar, que já corria de boca em boca que eram fantasmas e almas penadas mandadas pelo senhor do castelo, que tão malévolo havia sido em vida.

Justificava tais rumores o fato de que o capitão envergava a mesma armadura que aquele infame havia usado, e que vestia quando o proscreveram.

Voltaram a acender os lumes à noite, a entoar os cantos orgíacos, a roubar as casas, a queimar e arrasar os campos. E renasceram a intranquilidade e o desassossego.

Todas as noites acendiam, numa das mais altas torres do castelo, um lume rubro, que parecia um enorme olho, cuja luz atravessava a espessura do bosque, iluminando-o com uma luz sinistra que antes parecia um incêndio.

Alguns corajoso das localidades imediatas, que se atreveram a acercar-se do castelo, ouviram coisas tais que voltaram correndo para as suas casas com o cabelo eriçado e dando dente com dente.

— Mas, o que vós ouvistes? — perguntaram-lhe as autoridades.

— Ai, ai, ai! — gritavam cheios de terror.

— Mas, o que ouvistes, covardões? — repetiam.

— Pois, verão os senhores — diziam aqueles infelizes enquanto acalmavam-se. — Às doze da noite, assomamos à porta do castelo, e ao soar a meia-noite, ouvimos ruídos de correntes, alaridos horríveis e gargalhadas aterradoras. Arrepiamo-nos todos e saímos correndo como gamos.

—Sois uns covardes! — gritou o juiz. — Por nada vos assustais!

— Então, vá lá o senhor!  — exclamaram aqueles infelizes, tremendo. — O senhor verá o que é bom...

O juiz chamou imediatamente o aguazil e quinze ou vinte moços armados de flechas e lanças, e partiram para o castelo. Ao sair da vila, seguiam muito decididos. Mas, conforme se afastavam, se lhes ia passando o entusiasmo, e por pouco estariam determinados a correr à entrada do bosque, se o juiz, que era um homem de coragem, não lhes sobrepujasse o medo com o seu exemplo.

Quando se aproximaram da porta do castelo, ouviram o rumor de uma orgia. Canções, gritos, entrechocar de copos e, destacando-se sobre tudo isto, uma voz aterrorizante — a do capitão —, que dizia:

—Ânimo, companheiros! Brindemos à Saúde de Satanás!

Uma gargalhada acompanhou aquele brinde e se ouviu o entrechocar de taças.

Os moços que acompanhavam o juiz, profundamente espantados, de boa vontade teriam fugido, se o juiz não lhes gritasse energicamente:

— Mesmo que seja o diabo em pessoa, eu o levarei amarrado até a prisão da vila!

E, empunhando o bastão, deu três golpes na porta, exclamando:

— Abri em nome da Justiça!

Naquele instante, a porta se abriu, por si mesma, sem fazer o menor ruído, e o juiz, precedido de alguns moços providos de archotes, penetrou resolutamente no castelo.

Percorreu um por um os recintos e encontrou apenas sinais de que ali celebrara-se um banquete. E, sobre uma mesa desarrumada, viu várias taças caídas, destilando um líquido semelhante ao vinho, mas que recendia a enxofre a dez varas de distância.

Não contente com isto, o juiz desceu aos porões do castelo e ali encontrou o panteão onde repousava o seu dono, aquele cujas qualidades lhe fizeram merecer o ódio de todos. E, avançando à tumba, tocou com o seu bastão na lápide, dizendo:

— Em nome de Deus e da Justiça, eu te ordeno que compareças à minha presença, para que recebas o castigo que mereces pelos teus crimes.

Ressoou de dentro da tumba uma horrível gargalhada, que estremeceu a todos, menos ao juiz, que gritou:

—Eu te prometo, por Deus que nos ouve, que não hás de tardar muito em pagar o teu merecido na Terra, já que seguramente o estás purgando no Inferno!

Dito isto, retirou-se, acompanhado de todos os que o escoltavam e que estavam admirados da temerária impavidez do juiz.

Todavia, os saques e as devastações continuaram.




As lágrimas de dor e o luto dos mortos por aqueles infames, o desespero dos pais e das famílias formaram um coro tal que chegou aos ouvidos dos reis e estes enviaram uma torrente de forças militares e juízes inquisidores para dar cabo a tanta iniquidade.

As forças conseguiram apoderar-se dos ladrões, até mesmo de seu capitão, e, uma vez presos, julgados e sentenciados, foram todos enforcados, exceto o chefe, que logrou evadir-se da prisão.

Enforcados os vinte bandidos, parecia natural que a região recobrasse a sua tranquilidade.

Enquanto esteve preso o chefe, as luzes nas ruínas não foram acesas, nem se ouviu o ruído da orgia, nem se devastaram os campos, nem se cometeram delitos. Mas, assim que ele conseguiu escapar, repetiram-se estas cenas aterrorizantes.

Organizou-se, então, uma cruzada em todo país: para os soldados, juízes, inquisidores e magistrados era questão de honra prender aqueles desalmados e acabar com eles.

Certa noite, à hora em que aqueles homens celebravam as suas reuniões, penetraram no castelo e prenderam os companheiros dos enforcados e mesmo o capitão.

Encarceraram todos, inclusive o capitão, que estava encoberto pela amadura de ferro, e no qual amarraram a uma argola.

Um dia, quando iam julgá-los, o carcereiro entrou para levar a comida ao preso. Mas este desabou à sua vista, desfazendo-se as peças de sua armadura, de modo que não cabia dúvida quanto à desaparição de seu dono. Ao desfazer-se a amadura, uma gargalhada infernal o aterrorizou.

Deu parte à Justiça, e esta mandou que recolhesse a armadura e a guardasse como prova material. Mal foram colhidas as peças da armadura, esta, armando-se de repente, escapou do lugar em que a haviam colocado.

Voltaram os terrores, até que novamente foi preso o capitão.

Então, um velho inquisidor, supondo que fora o diabo quem se havia metido na armadura do capitão, propôs — no que foi atendido — que a armadura e o cavaleiro fossem fundidos, e que se fizesse com o ferro resultante uma cruz.

Assim se fez. Fundiu-se a cruz, que foi colocada como sinal nos lugares em que o cavaleiro mais havia frequentado.

Enquanto fundiam a armadura, dela saíam gargalhadas cavernosas e horrendas, que atemorizaram os fundidores.

Onde era colocada a cruz, a relva secava, e tão só o seu aspecto fazia tremer o caminhante. Daí o seu nome de cruz do diabo.

Mas, quando consagrada pelo sacerdote do local, brotaram ao seu redor lindas flores, e sua sombra foi benéfica, porque o poder de Deus a tudo purifica.

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