DELIRIUM TREMENS - Narrativa Clássica de Loucura e Morte - Émile Zola



DELIRIUM TREMENS
Émile Zola
(1840 – 1902)


Cada dia Coupeau ficava mais feio. O veneno minava-o rudemente. O corpo, saturado de álcool, encolhia-se como os fetos conservados em frascos nas farmácias, e estava tão magro que, quando se punha diante de uma janela, a luz se via através das costas.

Com as faces caídas, os olhos asquerosos, destilando cera, capaz de abastecer uma catedral, só conservava florescente o nariz, formoso e vermelho, semelhando um cravo no meio de sua cara devastada.

Os que lhe sabiam a idade, 40 anos completos, experimentavam calafrio ao vê-lo passar corcovado, velho como as ruinas.

E o tremor das mãos aumentava, sobretudo a direita. Esta mão de tal modo estremecia que alguns dias se via obrigado a agarrar o copo com a ajuda da outra para leva-lo à boca. Oh, aquele diabólico tremor era a única coisa que o amedrontava  no meio de seu embrutecimento geral!

Ouviam-no grunhir injurias contra as mãos. Outras vezes, punha-se muitas horas a contemplar seu balanceio, vendo-as saltar como rãs, sem dizer nada, sem se enfadar, como se buscasse a explicação do mecanismo interior que as fazia obrigar a saltar daquela forma.

Passado algum tempo, a sua voz mudou por completo, como se a aguardente lhe tivesse posto nova música na garganta. Ficou surdo de um ouvido. Depois de poucos dias, a sua vista enfraqueceu a tal ponto que era preciso agarrar-se ao corrimão para não descer a escada aos trambolhões. Sofria dores de cabeça atrozes, vertigens que lhe faziam ver estrelas. De repente, era acometido de dores agudas nos braços e nas pernas, bramia como doido se se via obrigado a sentar-se numa cadeira, até que  uma vez o seu braço ficou paralítico um dia inteiro.

Em muitas ocasiões, teve que ficar na cama enrodilhado, ocultando-se debaixo da roupa, com o respirar forte e continuo de animal enfermo. Depois, inquieto, torturado por febre ardente, revoltava-se em loucos furores, rasgava a blusa e mordia os móveis com as suas mandíbulas em concussão, então comovia-se num grande enternecimento, exalando queixumes de criança, soluçando e lamentando-se  de que ninguém o estimava.

 Uma noite, sua mulher e filha, que regressavam juntas, não o encontraram na cama. No seu lugar, o infeliz tinha deitado o almofadão. E quando o acharam oculto entre o leito e a parede, rangia os entes e dizia que uns homens o viriam assassinar.

As duas mulheres tiveram que o tornar a deitar, tranquilizando-o como se ele  fosse um menino.

Certo dia, em que a mulher foi visita-lo no hospital, o médico  interrogou-a.

— O pai deste homem embebedava-se?

— Sim, senhor, um bocado. Morreu caindo de um telhado abaixo, num dia em que estava bêbado.

—E a mãe bebia?

— Sim, senhor, um copo aqui, outro ali... Oh, a família era menos má... Um irmão morreu muito novo atacado de convulsões.

— Você também bebe?

Ela tartamudeou, defendeu-se, pôs a mão sobre o coração, como que dando sua palavra de honra.

— Bebe... Tome cuidado; está vendo aonde leva a bebida... No dia em que menos se espera, morre-se assim.

Ao ouvir isto, ela apoiou-se contra a parede e olhou para o alcoólatra. Via-lhe as pernas saltar, o tremor tinha passado das mãos para os pés. Parecia uma marionete cujos fios eram puxados por mão oculta, remexendo-lhe os membros e o tronco.

A doença progredia vagarosamente. Dir-se-ia que debaixo da pele havia um relógio de música e que, de três em três segundos, começava a soar, rodando o cilindro um instante para depois parar e voltar logo a mover-se, exatamente como o ligeiro calafrio que ataca os cães perdidos, que se recolhem no inverno, nos esconsos das portas. Estranha demolição aquela! Morrer retorcendo-se como uma moça a quem as cócegas fazem efeito.

Entretanto, o desgraçado se queixava. Parecia que o picavam milhares de alfinetes. Na superfície da pele experimentava a sensação de peso, como se um animal frio e molhado se arrastasse sobre os seus músculos e lhe metesse as garras na carne. Depois, dizia que outros bichos se pegavam aos seus ombros, arranhando-lhe as costas com as unhas.

— Tenho sede! Tenho sede!  — grunhia continuamente.

O residente tomou um jarro de limonada que estava sobre uma tábua  e o estendeu para ele.

Ele agarrou o jarro com ambas as mãos e aspirou glutonamente, num trago, derramando metade do liquido pela roupa. Porém, imediatamente, deitou fora, com um asco furioso, gritando:

— Jesus! É aguardente...

Então o interno, a um sinal do médico, tentou fazer-lhe beber a água sem voltar o frasco.

Desta vez o doente tragou um gole,  gritando como se  tivesse engolido fogo:

— É aguardente!... É aguardente!...

Desde o dia anterior, tudo quanto bebia lhe parecia aguardente. Isto aumentava-lhe a sede, e já não podia beber nada, porque tudo o abrasava.

Tinham-lhe dado uma sopa e ele  disse que o queriam envenenar, pois a sopa tinha o gosto de ácido sulfúrico,  achava o pão  azedo e podre. Tudo era veneno. O quarto cheirava a enxofre. E até se queixava de que havia pessoas que o queriam emprestar queimando fósforos debaixo de seu nariz.

O médico acabava de se levantar e escutava. O doente via agora nas paredes fantasmas em pleno dia, teias de aranha tão grandes como velas de barcos. E logo essas velas se convertiam em redes com malhas que se estreitavam e se alargavam. E por entre as malhas circulavam bolas negras, verdadeiras bolas de escamoteador; a princípio grossas como de bilhar e depois como balas de canhão, inchando-se e contraindo-se com o único propósito de o imprensarem. De repente, pôs-se a gritar:

— Oh! Os ratos!... Os ratos estão voltando!...

Eram as bolas que se convertiam em ratos. Aqueles sujos animais aumentavam de tamanho, passavam através da rede e saltavam sobreo colchão, onde se evaporavam. Também via um mono que lhe queria comer o nariz e que saía da parede, tornando a entrar, aproximando-se cada vez mais dele, até o obrigar a retroceder.

Bruscamente a cena mudou-se. Parecia-lhe, sem dúvida, que as paredes dançavam, pois repetia cheio de terror e raiva:

— É isso: as paredes sacodem, mas não tenho medo. O teto já caiu!... Sim,  os sinos estão tocando...  Um montão de corvos... E tocam o órgão para que os meus gritos não sejam ouvidos. E esses miseráveis puseram uma máquina por detrás da parede... Ouço-a roncar perfeitamente, vai nos  fazer saltar... Fogo!... Fogo!... Não ouve gritar fogo?!... As chamas já estão subindo. Oh, isto se  ilumina!...  Todo o céu está ardendo! Fogos vermelhos, verdes, amarelos... Socorro!... Socorro!... Fogo!...

Os gritos perdiam-se num estertor. Já não soltava senão palavras sem nexo, com a boca cheia de espuma e a barba molhada de saliva. O médico coçava o nariz com o dedo, hábito que lhe era peculiar em presença de casos graves. E voltou-se para o residente, perguntando-lhe a meia voz:

— A temperatura sempre a 40 graus, não?

— Sim, senhor.

O médico fez uma careta e permaneceu dois minutos mais, olhando o enfermo.

Depois encolheu os ombros, murmurando:

— O mesmo tratamento: caldo, leite, limonada cítrica, extrato branco em poção... Não o abandone e mande logo chamar-me se houver novidade.

No dia seguinte, quando a esposa foi visitar o alcoólatra, ele estava furioso como um louco. Agitava-se no meio do quarto, dando socos por toda a parte: no seu próprio corpo, nas paredes, no chão, caindo e batendo no ar. E queria abrir a janela, ocultava-se, defendia-se, chamava, respondia, fazendo ele só toda essa algazarra, com o aspecto de um homem assediado por uma multidão de pessoas.

Depois a mulher compreendeu que o marido se achava em cima de um telhado, colocando placas de zinco. Imitava o fole com a boca, remexia os ferros no lume, punha-se de joelhos, passando os dedos nas bordas da goteira, julgando que a soldava, como que se lembrando de seu ofício de soldador.

Sim, lembrava.se de seu ofício e gritava e batia, porque, dizia ele, uns homens o impediam de executar seu trabalho. Em todos os telhados via esses homens rindo-se dele e ,como isto não bastasse, deitavam-lhe bandos de ratos nas pernas. Que animais asquerosos! Sempre os estava olhando. Em vão os enxotava, batendo o pé no chão com toda força; mas quando uns iam, num momento surgiam novas legiões, até cobrir o telhado. E via também aranhas. E a cada momento apertava as calças contra as carnes para as esmagar. Com mil bombas! Não o deixariam acabar a tarefa! Mas estavam decididas a perdê-lo? O patrão o mandaria para a cadeia. Então, apressando-se em concluir o trabalho, julgou que tinha no ventre uma máquina a vapor: abrindo completamente a boca exalava fumaça, uma fumaça espessa, que enchia o quarto e saía pela janela. Inclinado, soprava sempre, sempre, contemplando como se estendia lá fora a fita da fumaça que subia até o céu, obscurecendo o sol.

E permanecia acocorado diante da janela, como se seguisse com a vista, do alto de um telhado, um cortejo passando pela rua.

Aí vai a cavalgada; leões e panteras fazendo caretas... e seguem-se macacos disfarçados em cães e gatos... E, logo a seguir, a boa Clemence, com o seu chapéu cheio de plumas. Agora cai, mostrando tudo o que tem... Ouça, bichinha, é mister que nos besuntes. Eh! Malditos rocinantes... Quer deixá-la... Não a tire, com mil raios, não a tire!...

A sua voz elevava-se rouca, espantada, ele se agachava rapidamente, repetindo que a polícia e os calções vermelhos estavam lá embaixo e que havia homens que lhe apontavam espingardas. Na parede via o cano duma pistola assestada contra seu peito. Vinham arrebatar-lhe a filha.

—Não atire em mim! Jesus, não atire!...

Depois, as casas desabavam e ele imitava o estrépito de todo um bairro a desmoronar-se; tudo desaparecia, tudo se evaporava. Porém, apenas tinha tempo de respirar, já passavam diante dos olhos novos quadros, com uma rapidez extraordinária. Necessidade furiosa de falar enchia-lhe a boca de palavras, que emitia de modo incoerente, com um pigarro na garganta, levantando a voz a cada instante.

— Olá! Era você? Bom dia... Nada de brincadeiras! Não me faça comer os teus cabelos!

E passava a mão por diante do rosto e soprava para separar os pelos.

O residente  interrogou-o:

— O que está vendo?

— Minha mulher! 
E ao dizer isto, olhava a parede com as costas voltadas para a esposa. Esta teve medo e olhou também a parede para ver se lá estava a sua sombra.

Ele continuava:

— Não me engane mais!  Não quero ficar amarrado!... Demônio!... Está bonita!... Está com uma roupa muito chique... Onde ganhou isso? Vem da farra?... Estúpida! Espera um pouco que eu lhe faço as contas!... E oculta o seu amante por detrás das saias? Quem é ele? Cumprimenta-o para que eu o veja... Deus meu!... Mas ele...

Dando um salto terrível foi bater com a cabeça contra a parede, porém o acolchoado amorteceu-lhe a pancada, ouvindo-se somente o ruído do corpo sobre a esteira.

— Que vê agora?

— O chapeleiro!... O chapeleiro!...

O soldador estendia os braços exclamando:

—Aqui me tem, amiguinho. Será preciso, enfim, que eu o estripe?  Ah, com que então vem, sem cerimônia nenhuma, com minha mulher pelo braço para rir de mim m público? Pois bem! Vou estrangulá-lo,  sim, sim, eu  mesmo, e sem necessidade de calçar luvas! Não se faça de  fanfarrão!... Apanhe essa... Tome!... Tome!... Tome!...

E dava punhadas no ar. Então o furor adquiriu proporções colossais. Tendo encontrado a parede, ao retroceder julgou que o atacavam pelas costas e voltou-se, encarniçado contra o acolchoado. Dava socos, saltava de um canto a outro, batia com o ventre, com as nádegas, com o ombro, rolava pelo chão voltava a levantar-se. E acompanhava todo este exercício com ameaças atrozes, gritos guturais selvagens.

Contudo a batalha devia ter mau resultado para ele, pois a respiração ia-se tornando mais curta e os olhos sabiam-lhe das orbitas, vendo-se
pouco a pouco possuído d'uma covardia pueril:

— O assassino!... O assassino!...

E banhado em suor, os cabelos eriçados sobre a fronte horrível, começou a andar para trás, agitando os braços como se para afastar tão abominável cena.

Exalou dois lamentos que cortavam o coração e caiu de costas sobre o colchão onde se lhe tinham enredado os sapatos.

— Senhor!... Senhor!... Morreu... Disse a mulher cruzando as mãos.

O residente adiantou-se e estendeu o alcoólatra no meio do chão. Não, não estava ainda morto. Tinham-no descalçado; os pés nus saíam fora do colchão e bailavam sós, um ao lado do outro, a compasso, uma dancinha precipitada e regular.

Naquela ocasião entrou o médico. Vinha com dois colegas, um magro e outro gordo, condecorados como ele. Os três inclinaram-se sem dizer palavra, examinando o enfermo por todas as partes; depois, rapidamente, puseram-se a falar em voz baixa. Tinham descoberto o doente desde as pernas até os ombros. A esposa, alçando-se na ponta dos pés, pôde ver o tronco nu de seu marido. O tremor tinha baixado dos braços e descia às pernas; o tronco mesmo participava, agora, dos movimentos. E tudo dançava; os membros faziam vis-á-vis, a pele vibrava como o tampo de um tambor e os cabelos valsavam, saudando-se. Numa palavra, aquilo era a grande preparação para o combate, como se descêssemos  o galope final quando amanhece, e todos os dançarinos se agarram pelas mãos, batendo o chão com os tacões.

— Está dormindo — murmurou o médico diretor.


E chamou a atenção dos colegas para o rosto do enfermo. O alcoólatra, com as pálpebras cerradas sofria de pequenas sacudidelas nervosas, que lhe agitavam toda a face.

Estava espantoso, aprumado daquele modo, com a mandíbula saliente e a fisionomia deformada de um morto que tivesse padecido de pesadelo.

Porém os médicos notando-lhe os pés, puseram-se a observá-lo de perto com ar de profundo interesse. Os pés continuavam dançando sempre.  Eram verdadeiros pés mecânicos; pés que se divertiam, que dançavam a dança macabra.

Em certo momento, a esposa aplicou as mãos no tronco de seu marido e recuou horrorizada. Dançava tudo lá dentro, até o fundo da carne e, sem dúvida, até os ossos.

Os pés nus continuavam bailando, até que, depois de algumas  horas, ficaram rígidos e imóveis por completo.

Estava morto.

Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Vida Policial” (RJ), edição de 18 de abril de 1925.
A presente narrativa é uma tradução condensada de um capítulo  do romance “L'Assommoir”, de 1877.




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