O ALCE - Conto Clássico - Ficção Científica - Humberto de Campos
O ALCE
Humberto de Campos
(1886 – 1934)
Era nas margens do rio Cobar, ainda sem limo e sem nome,
que se escancarava, dia e noite, naqueles tempos inocentes do mundo, a boca
monstruosa da caverna. Aberta na rocha bruta pela força inconsciente das
grandes águas primitivas, a enorme furna constituíra o refúgio seguro dos
tímidos veados perseguidos, que ali iam repousar, assustados, contra a
voracidade dos leões do Deserto. Um rebanho de cabras silvestres habitava-a,
alarmando a ribanceira alta, quando o troglodita chegou, com a sua azagaia e a
sua clava, disposto a ocupá-la. Os caprinos partiram em tumulto, pulando de
rochedo em rochedo, estalando as unhas ásperas nas pedras escuras da margem, e
o homem ficou só com as suas armas e a sua coragem, diante da natureza
misteriosa.
Quatro
luas depois, a caverna das margens do rio era um lar, semente de uma família,
esboço indeciso de uma tribo. Viviam nela, em paz e em silêncio, Djeb, o
caçador de uros[1]; Elam, domesticador de
abelhas selvagens; e Heva, companheira e escrava de Elam. Vagavam, estes
últimos, quase perdidos, pela solidão daquelas florestas ocidentais, quando
encontraram o primeiro, e passaram a caminhar juntos, solidários contra os
perigos infinitos da selva. A caverna, descoberta por Djeb, serviu-lhes de
abrigo. À noite, aceso o fogo na pedra porejante, a goela enorme iluminava-se e
os ursos, os tigres, os auroques, os mamutes, os cervos, os leões, os
elefantes, os próprios cavalos bravios, paravam inquietos, perguntando-se em
silêncio que monstro era aquele, que abria a garganta vermelha, onde dançavam
línguas de chama, na encosta solitária da montanha.
A
vida na caverna era monótona, mas doce. Madrugada alta, quando vinham longe,
ainda, os primeiros alvores do dia, Djeb chegava à boca da furna, defendida por
grandes pedras amontoadas, consultava as horas pela marcha silenciosa das
estrelas, prendia mais ao seu pescoço de uro selvagem a grande pele de tigre,
examinava a extremidade da azagaia, cortada nas pontas agudas de um antílope, e
partia cauteloso, a surpreender os grandes herbívoros adormecidos. Às vezes,
desviavam-no no seu caminho bandos de cerdos, que perseguia na carreira,
abalando com o estrondo dos seus passos a enorme floresta repousada. Outras,
deixava-se ir sem destino, até sair, dia alto, nas grandes várzeas pontilhadas
do sangue dos cardos floridos, de onde rebanhos de cavalos, partiam correndo e
relinchando em galope largo, à sua aproximação. Nessas viagens de nômade,
passava o troglodita dias e dias comendo, nas mãos de grandes unhas, pedaços de
carne de uro mal tostada, e bebendo, de bruços, na correnteza dos rios ou, de
pé, no lençol espumante das cachoeiras. De repente, retrocedia sobre os
próprios passos, como se o perseguissem, uivando, todas as feras da floresta.
Penetrava na caverna, arrastava pelo braço a escrava do companheiro, atirava-a
sobre as folhas do leito, e amava, como os lobos, como os tigres, como os cães
errantes da selva, como todos os seres da terra bárbara. Em seguida tomava, de
novo, as suas armas, e partia sem rumo, - enquanto a mulher se erguia, sem revolta,
do monte de folhas, atirando para as costas o tumultuoso caudal dos cabelos
desordenados.
Uma
tarde penetrava Elam na caverna, quando ouviu, entre a queixa dos ramos do
leito, os rugidos de amor do companheiro que regressara. Sob a sua cabeça fulva
como a dos leões, os cabelos de Heva, mais fartos e mais claros, punham uma
grande mancha no verde esmaecido das folhas. Estacou, olhando-os, e retrocedeu.
Uma grande angústia enchia-lhe o abismo do coração. Sobre os seus ombros,
vergando-o, oprimindo-o, havia o peso de um mundo. À sua inteligência de
primitivo parecia que a floresta havia rolado, com toda a brutalidade dos seus
troncos e dos seus ramos, sobre a sua cabeça impotente. Um desejo irresistível,
teimoso, imperativo, chamava-o de novo para a furna, onde deixara, enlaçados
como dois lobos, o amigo e a companheira. Detinha-se, porém, indeciso, olhando
o chão, onde grandes formigas carregavam, ajudando-se mutuamente, pedaços de
folhas, cortadas de um tinhorão nascido sobre uma pedra. Olhou-as, e pensou:
–
As mulheres são, talvez, como o tinhorão que nasce na pedra; todas as formigas
podem devorá-lo...
Repeliu,
no entanto, o pensamento, e continuou a andar sem destino. Amanhecia quando o
domesticador de abelhas chegou, com a sua azagaia de caça, à orla da floresta,
longe do rio. A cautela involuntária com que andava tornou a sua aproximação
imperceptível aos habitantes da clareira. Um búfalo, apenas, suspeitou da sua
presença, aspirando com força o ar circunstante, desconfiado. Alguns cervos
ergueram a cabeça eriçada de galhos entrecruzados, afilando as orelhas para
maior percepção dos rumores. Tudo voltou, porém, à quietude, à serenidade, à
paz confiante, com a imobilidade de Elam, oculto, como um verme, pelo tronco de
uma grande faia de raízes à flor do solo.
O
nômade examinava, interessado, a vida harmônica das coisas, quando se aproximou
da orla da selva um grande alce cujas pontas ultrapassavam a altura de um
elefante. Atrás dele, caminhava, tosquiando a relva tenra, uma cerva de pelo
ruivo, que parecia tranquila, como se confiasse inteiramente a sua segurança à
coragem vigilante do companheiro. De repente, surgiu da floresta, dirigindo-se
em sentido contrário, outro alce solitário, que se pôs a marchar no rumo da
grande corça primitiva. O alce da várzea ergueu a cabeça semeada de pontas, e
berrou alto. O outro respondeu, e defrontaram-se. Um ruído de ramos secos
estalou, na fúria do encontro. Com os galhos emaranhados, cruzados,
confundidos, os dois quadrúpedes vergavam o dorso, em dois arcos enormes. Um
ruído mais forte anunciou que a luta ia terminar. Com a cabeça voltada, o alce
agressor tombou por terra, num berro convulsivo, trêmulo, estrangulado, que
assustou os uros distantes. O veado vitorioso desembaraçou-se do vencido,
recuou dois passos, investiu contra o corpo palpitante, perfurou-lhe o ventre
com duas marradas violentas, remexendo-lhe as vísceras, com as pontas agudas.
Em seguida, baliu, alto, chamando a companheira. Esta achegou-se amorosa,
lambendo-lhe o pelo, como num agradecimento comovido. E continuaram a pastar,
juntos, à claridade cariciosa do sol, a erva tenra da clareira...
Elam
acompanhara, imóvel, a grande luta dos cervos. Quando o combate acabou, o
bárbaro retomou a azagaia, examinando-lhe as pontas, e retrocedeu, na direção
da caverna.
Na
manhã seguinte, as águas do rio lavavam, pela primeira vez, na furna dos
trogloditas, o sangue de um homem.
Bom sinceramente não entendi essa historia mas tudo bem sou grato por postar aqui obrigado
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